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Carta ao Editor


Nem uma flor sequer para o fundador da moderna química de coordenação...

Nicolás A. Rey Departamento de Química, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro - RJ, Brasil - E-mail: nicoarey@puc-rio.br

Publicado na web em 01/07/2019


Um relato pessoal da busca pelo túmulo de Alfred Werner em Zurique, no centenário de falecimento de quem é considerado um dos maiores químicos de todos os tempos.

Era 31 de dezembro de 2018 e estávamos em Zurique. O nosso trem para Genebra partia da Hauptbahnhof (Estaçao Central) às 13:03 h e nós havíamos deixado para o último dia a visita, a modo de homenagem, ao túmulo de Alfred Werner, prêmio Nobel de Química em 1913. O primeiro químico inorgânico a conseguir tal feito! O próximo Nobel para a Química Inorgânica só viria após 60 anos de espera, sendo outorgado conjuntamente a Fischer e Wilkinson em 1973 pelo seu trabalho envolvendo compostos organometálicos.

Werner mudou radicalmente a forma como nós compreendemos a hoje chamada Química de Coordenaçao, estendendo às substâncias nitrogenadas, inicialmente, e aos "compostos moleculares" (nossos atuais complexos) depois o trabalho pioneiro sobre estereoquímica de van't Hoff e Le Bell. Em seu tempo livre, Werner era considerado um homem muito sociável, que adorava uma partida de bilhar ou xadrez, assim como o jogo de cartas suíço conhecido como Jass. Ele viajava muito ao exterior para participar de conferências científicas e proferir palestras, e gostava de passar férias nas montanhas com a família.

Embora tenha se naturalizado suíço em 1895, trabalhado e falecido na cidade de Zurique, nao foi fácil encontrar informaçoes sobre o local em que o seu corpo descansava. Após longa busca na internet, conseguimos enfim garimpar o valioso dado: ele se encontraria no Friedhof (cemitério) Enzenbühl. Chegamos lá passadas as 11:00 h e, imediatamente, começamos a procurar entre os inúmeros túmulos existentes no lugar, tentando adivinhar qual deles "teria a cara" do primeiro prêmio Nobel da Química Inorgânica. Haveria uma estátua esculpida em sua memória? Ou talvez um octaedro entalhado na pedra de sua lápide? Estávamos literalmente correndo contra o tempo! O trem nao iria nos esperar, a nossa tentativa de tributo decerto nao deteria o implacável compasso do relógio... Ouvi dizer certa vez que acreditar, em determinada situaçao, que nada de pior poderá vir a acontecer é pura falta de imaginaçao: pois é, começou a garoar... Timidamente no início, com mais vigor depois. Bem, "está na chuva, é pra se molhar", pensamos... Após mais de meia hora circulando entre as incontáveis e labirínticas passagens do campo-santo, as roupas encharcadas e os sapatos completamente cheios de lama, resolvemos bater numa pequena casa que parecia ligada à administraçao local. A nossa esperança de encontrar o túmulo do cientista que tanto admiramos estava se desfazendo. Um funcionário que nao falava inglês e parecia estar surpreso por alguém tê-lo tirado dos seus aparentemente soporíferos afazeres nos atendeu após alguns minutos. Demos o nome de Alfred Werner e, passado algum tempo, ele voltou com um papelzinho indicando o número do jazigo, no outro lado da rua... Estávamos procurando no cemitério errado! Como se isso fosse pouco, nos preocupava também o ano de falecimento informado: 1954!? O rapaz definitivamente devia ter se enganado. Atravessamos com pressa a Enzenbühl-Strasse rumo ao antecessor do Friedhof Enzenbühl, e uma das necrópoles mais antigas de Zurique ainda em operaçao: Rehalp. Uma vez lá, foi relativamente fácil encontrar o que buscávamos, num canto meio escondido à esquerda da entrada do parque. Ao chegar, me surpreendeu bastante a simplicidade da cripta. Nada havia naquele lugar que remetesse às glórias científicas do grande homem. Apenas uma estela de pedra ladeada por duas colunas dóricas e, na sua frente, um pequeno vaso de formato retangular que se dispunha a receber tributos na forma de flores. Contudo, ele estava totalmente vazio...

Me senti muito mal, principalmente porque, na correria, nós mesmos esquecemos de comprar os crisântemos que pretendíamos levar. Um pouco por causa disso, prometi a mim mesmo escrever sobre o esquecido túmulo de Alfred Werner, localizado no "cemitério errado", sem mençao ao Nobel na lápide, sem pompa, sem flores...

 


Cripta familiar dos Werner - Friedhof Rehalp (foto do autor)

 

Penso que, neste ano de 2019, por ocasiao de centésimo aniversário de falecimento do pai da moderna Química de Coordenaçao, a comunidade inorgânica brasileira possa (talvez mais apropriado seria dizer "deva"?) programar homenagens, mesmo que singelas (na forma de palestras, workshops, exposiçoes, etc.), com o intuito de divulgar a vida e obra deste ator fundamental para o progresso da nossa ciência, assim como refletir igualmente sobre a importância da audácia e da intuiçao no processo da descoberta científica. Sei que se fala de Werner nos cursos introdutórios, mas considero necessário falar ainda mais!

Alfred Werner, falecido um 15 de novembro de 1919 à idade de 52 anos, encontra-se sepultado no túmulo no. 85067 do Friedhof Rehalp, junto à sua esposa Emma Werner-Giesker e seus filhos Alfred e Charlotte. A confusao com o ano de falecimento se deu por conta de seu filho (1897-1954), médico e homônimo do pai. Pelo seu significado, o local certamente vale a visita. Descanse em paz, mestre. Eterno exemplo para todos nós...

 

AGRADECIMENTOS

O autor é profundamente grato aos professores Henrique Eisi Toma (Instituto de Química - USP) e Carlos Alberto Lombardi Filgueiras (Departamento de Química - UFMG) pela leitura criteriosa desta crônica e pelas suas palavras de incentivo.

On-line version ISSN 1678-7064 Printed version ISSN 0100-4042
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