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14:58, ter dez 10

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Assuntos Gerais


O vidro e sua importância na vida e na química
Glass and its importance in life and in chemistry

Wladmir Teodoro da Silva; Carlos A. L. Filgueiras*

Departamento de Química, Universidade Federal de Minas Gerais, 31270-901 Belo Horizonte - MG, Brasil

Recebido em: 24/11/2022
Aceito em: 20/01/2023

Endereço para correspondência

*e-mail: calfilgueiras@gmail.com

RESUMO

Glass is one of the most important materials both in ordinary life, in which its presence is felt everywhere, as in the laboratory, be it a chemical or any other laboratory. This article discusses glass in many aspects, including its composition, or compositions, history and applications, both as a component of civilization as a practical and ordinary component in thousands of uses as an indispensable material. Also will be discussed many of its scientific applications, particularly in chemistry. A survey will also be presented of the origins and present state of glass techniques in Brazil.

Palavras-chave: glass; structure of glass; types of glass; scientific glass; glass-making in Brazil.

INTRODUÇÃO

Na maioria das vezes, ao se perguntar a um estudante iniciante qual é o material mais usado nos laboratórios preparativos de Química, dificilmente a resposta será vidro. A água é um candidato mais usual como resposta, embora talvez hoje haja mais preparações realizadas em outros solventes, ou mesmo sem solventes. No entanto, há séculos o vidro é o material usado como suporte para uma infinidade de operações químicas, razão pela qual se decidiu aqui examinar suas origens, versatilidade, usos e desenvolvimento, sobretudo nos laboratórios de pesquisa brasileiros.

Contudo, o vidro é um material de tamanha importância em nossas vidas, seja na ciência ou em nosso quotidiano, que ele merece uma abordagem que reúna muitos dos tópicos que o tornam tão universal. É claro que toda essa abordagem terá a ciência como fio condutor, pois é o estudo científico do material e suas propriedades que pode ilustrar as características que o tornaram tão universal desde o início da civilização e que lhe auguram uma presença por muito tempo na sociedade tecnológica.

O presente artigo busca, portanto, explorar vários lados distintos deste material tão versátil, em virtude da exiguidade de artigos dessa natureza na literatura brasileira, sobretudo na literatura química, ligando a variedade de considerações que se podem reunir sobre o vidro. Com este fim, o texto foi dividido em várias seções, que abordam diferentes aspectos do vidro, seja como material intimamente ligado a diversos usos na vida humana, tanto de interesse estrutural, histórico, estético, funcional ou científico. Neste último aspecto incluiremos uma discussão sobre a hialotecnia que se pratica atualmente no Brasil.

Composição e origem do vidro

O vidro é um material com uma grande variedade de composição e propriedades, cujo componente principal é o silício. Este elemento está presente em grande abundância na crosta terrestre, seja como sílica, ou óxido de silício, que ocorre naturalmente como areia ou quartzo, ou na forma de silicatos. O vidro natural mais comum, ou obsidiana, é um material produzido em erupções vulcânicas em que a sílica se funde junto às lavas produzidas nesses fenômenos. A obsidiana foi utilizada nas culturas mais antigas, ao redor do mundo, pela sua facilidade em ser cortada para formar pontas de flechas ou lâminas cortantes. Com um aumento da técnica ela também foi usada para produzir frascos e objetos artísticos de grande beleza, por exemplo entre alguns povos antigos do continente americano, como os astecas. Além da obsidiana, existem também outros tipos de vidro natural menos comuns, como os tectitos, que são pequenas rochas de vidro que se acredita provenham do impacto de meteoritos na crosta terrestre. Uma terceira categoria é constituída pelas fulguritas, formações produzidas quando um raio atinge um local da superfície da terra que contenha sílica. A descarga elétrica e as altas temperaturas correspondentes podem fundir parte do material natural, produzindo as fulguritas, cujo nome vem do latim para raio.1

A origem da própria palavra química está envolta numa disputa que envolve muitos especialistas, e pode ter a ver com as origens do vidro no Egito. Uma corrente defende que a palavra de onde veio química provenha do egípcio kmt, relacionado ao pigmento negro usado como pintura dos olhos, lembrando que os egípcios, como muitos povos orientais, não grafavam os sons das vogais; uma outra versão seria sua derivação do verbo grego chema, relacionado à fusão. Já Marco Beretta2 propõe uma terceira hipótese, em que química poderia provir do termo egípcio para vidro negro, ou obsidiana, que é Aner chem, ou pedra negra. De qualquer maneira, não existe consenso quanto à etimologia de química, mas é interessante que poderia estar relacionada ao vidro.

Na sílica, ou dióxido de silício, de fórmula mínima SiO2, os átomos de silício estão no centro de um tetraedro, formando uma estrutura regular polimorfa. Já no vidro essa perfeita regularidade observada na sílica dá lugar a uma estrutura irregular, em que regiões microcristalinas formam uma estrutura irregular. Por essa razão se diz que o vidro é um sólido amorfo, sem formar um cristal verdadeiro como a sílica, de tal sorte que diferentes vidros podem apresentar distintos pontos ou faixas de fusão, ao contrário do quartzo que, como um cristal definido, funde-se a uma temperatura definida. O quartzo é a única forma estável abaixo de 870 oC.3 Várias formas cristalinas de quartzo existem, como as tridimitas e cristobalitas. A forma β-cristobalita do dióxido de silício, por exemplo, funde-se a 1722 oC.4

O vidro, ou os vidros, ao contrário, não formam cristais regulares, mas antes apresentam uma estrutura irregular que se costuma comparar à estrutura de um líquido, mas de um líquido super-resfriado com alta viscosidade, que não flui às temperaturas ordinárias. A Figura 1 ilustra a situação existente no quartzo, com cristais regulares, e aquela dos vidros, em que a disposição dos tetraedros de SiO4 é irregular.5

 


Figura 1. Os tetraedros de SiO4 e as maneiras como eles podem associar-se. A estrutura rotulada como (c) corresponde a um arranjo regular, como ocorre na sílica. Já a estrutura (d) é desordenada, embora possa ter alguma microcristalinidade, como sucede nos vidros

 

A origem histórica e o desenvolvimento das técnicas de produção de vidro

A importância do vidro na evolução da cultura e da civilização teve um protagonismo que justifica uma breve descrição histórica de como se deu este processo.

A descoberta do vidro sintético, em oposição ao vidro natural, ou obsidiana, foi uma das mais antigas conquistas humanas, na aurora da civilização. Provavelmente isso aconteceu independentemente em mais de um local, como sucedeu com várias outras descobertas. Quimicamente o vidro tem parentesco com outros materiais, como as cerâmicas, entre as quais as faianças, e os esmaltes, como ocorre no caso dos azulejos. Tanto azulejos ou cerâmicas azulejadas começaram a ser produzidos alguns milênios antes da era cristã. Existem muitos exemplos disso provenientes de vários locais do Levante, como na Mesopotâmia ou no Egito.

No caso da manufatura do vidro, a fonte de sílica era a areia ou pedaços de quartzo. Todavia a temperatura necessária para fundir a sílica era da ordem de 1710 oC, mas a adição de um fundente, como a soda, ou Na2CO3.10H2O, fazia que a temperatura de fusão caísse para menos de 1000 oC. A soda, também conhecida como barrilha, era muito comum no Egito, por exemplo, e era conhecida como natron. Como também era um dessecante, era muito utilizada no processo de mumificação dos corpos. Muitas vezes a soda continha alguma cal ou magnésia, ou seja, carbonato de cálcio ou magnésio, o que dava ao produto final estabilidade química, uma vez que o silicato de sódio é solúvel em água.5

Uma combinação de evidência arqueológica e análise das fontes antigas aponta para uma origem mesopotâmica para o fabrico do vidro, datando-o de cerca de 2500 AC. Em torno de 1400 AC, durante o reinado do faraó Akhenaten, a técnica e seus praticantes teriam migrado para o Egito, onde esta técnica se desenvolveu consideravelmente, tendo permanecido insuperável por séculos. Assim como na Mesopotâmia, o vidro egípcio se desenvolveu a partir das artes da faiança e do esmalte.6

O vidro antigo era muitas vezes produzido na forma de pasta de vidro, frequentemente colorida pela presença de sais metálicos, o mais comum sendo o ferro. Mesmo hoje em dia muitas garrafas de vidro ordinário, como aquelas usadas para muitos vinhos são esverdeadas pela presença de ferro na massa do vidro. O vidro soprado foi uma grande conquista, tendo surgido no Oriente Próximo, provavelmente após 300 AC. O grande centro produtor de vidro soprado foi a Síria, possivelmente com a intervenção de artesãos fenícios.7 Logo o chamado "vidro romano" se espalhou e passou a ser produzido por todo o território do Império Romano. O Museu Nacional do Rio de Janeiro tinha uma grande coleção de vidro romano obtido em escavações arqueológicas na Itália, sobretudo em Pompéia, por iniciativa da Imperatriz Teresa Cristina. A Figura 2 mostra espécimes dessa coleção, tanto de vidro romano soprado como moldado, num processo de técnica mista, que também incorporava a adição de filetes de vidro soldados à peça posteriormente. Já a Figura 3, também da coleção mencionada, mostra um exemplar de vidro romano soprado, com uma grande semelhança com nossos modernos balões de laboratório. A conquista da técnica de produzir vidro soprado foi um importantíssimo avanço tecnológico e tornou o vidro um material acessível à maior parte da população.

 


Figura 2. À esquerda, exemplar de frasco de perfume romano feito por técnica mista; à direita, queimador de incenso moldado. Ambos da coleção do Museu Nacional, em fotos de antes do incêndio do museu em 2018

 

 


Figura 3. Balão de vidro romano soprado, Museu Nacional. Foto anterior ao incêndio do museu em 2018

 

O vidro soprado que se desenvolveu entre os romanos até hoje tem grande voga em muitos lugares do mundo, sobretudo por sua beleza, e é muito imitado. A Figura 4 mostra exemplares modernos fabricados em Alexandria, no Egito, da mesma maneira como se fazia naquela cidade sob o domínio romano. A cor azul, sempre muito apreciada, vem da adição de sais de cobalto ao vidro. Os íons de cobalto formam um composto de coordenação com os oxigênios dos íons silicato, originando a cor azul. Este composto de coordenação absorve luz de baixa energia, isto é, na faixa do vermelho ou próximo deste, restando a luz azul, que é característica neste caso. Vários outros sais metálicos são usados para colorir o vidro. Um dos mais famosos e importantes é o cloreto de ouro, ou púrpura de Cássio, que produz vidros de uma bela cor vermelha, que corresponde ao dímero Au2Cl6. Uma das aplicações mais apreciadas hoje deste vidro vermelho ocorre nos chamados cristais da Boêmia.

 


Figura 4. Exemplares de vidro soprado moderno, fabricados em Alexandria, no Egito, segundo a maneira dos antigos romanos

 

Um grande naturalista da antiguidade, Plínio, o Velho, que morreu ao tentar salvar vítimas da erupção do Vesúvio em agosto do ano 79, deixou-nos em sua magnífica História Natural uma descrição minuciosa do fabrico de vidro pelos romanos e por outros povos. Ao referir-se ao progresso no fabrico do vidro, assim diz ele: "logo, de acordo com o gênio inventivo do homem, ele não mais se contentou em misturar apenas soda (à sílica). Ele começou a adicionar compostos de magnésio". E mais além: "Algum vidro recebe sua forma pelo sopro, e outro recebe sua forma num torno, e alguns são gravados como prata. Sídon já foi renomada por suas fábricas de vidro; os espelhos de vidro, entre outras coisas, foram inventados lá".8

A Idade Média, da qual herdamos tantas inovações importantes, foi também responsável por grandes avanços no fabrico de vidro. Os árabes foram grandes produtores de vidro de excelente qualidade, assim como os vidreiros ocidentais, que criaram obras-primas magníficas ao desenvolverem vitrais coloridos nas igrejas ou castelos, como mostrado na Figura 5. Veneza, em particular, conseguiu fazer vidro de qualidade excepcional, num virtuosismo que perdura até hoje, sobretudo na Ilha de Murano, na Laguna de Veneza. Foi a excepcional qualidade do vidro veneziano, a partir do século XIII, que possibilitou fazer lentes de óculos. Os venezianos aperfeiçoaram a tal ponto a arte de fazer vidro que este passou a ser utilizado em muitas outras aplicações, que antes inexistiam porque dependiam de haver vidro de altíssima qualidade. Basta mencionar o caso já mencionado do aparecimento dos óculos de leitura na Idade Média, como testemunham muitas pinturas daquela época conservadas em inúmeros museus.

 


Figura 5. Vitrais do século XI, na Catedral de Augsburgo, na Alemanha

 

Um aspecto importantíssimo na evolução do vidro foi a descoberta da técnica de produzir vidro plano, que na antiguidade era raríssimo. Os vidreiros medievais alcançaram esta técnica, que era essencial para fazer os segmentos de vidro colorido dos vitrais, assim como os vidros usados nas vidraças dos edifícios e casas aristocráticos. Hoje temos acesso a cópias de alguns manuscritos medievais que ilustram os vários métodos e processos usados na fabricação do vidro. Um desses manuscritos, dos primeiros anos do século XII, é atribuído a um certo monge Theophilus, cuja verdadeira identidade tem sido muito discutida, mas que não nos interessa no momento. O importante, do ponto de vista do presente estudo, é que há vários exemplares de tais manuscritos do século XII, e eles são atribuídos ao tal Theophilus. Felizmente, o texto foi traduzido do latim original e publicado em edição facilmente acessível.9 No manuscrito de Theophilus se ensinam muitas técnicas usuais na época, e entre elas está o segredo de fazer vidro plano. Este consiste em soprar o vidro fundido sobre uma pedra plana e ir girando o tubo de sopro apertando o material sobre a pedra. Ao cabo de algum tempo obtinha-se o vidro plano, que era então liberado do tubo de soprar e cortado de acordo com aquilo que se desejava. Não obstante, durante séculos só se pôde produzir vidro plano de pequenos formatos, uma vez que a técnica descrita não permitia produzi-lo em grandes placas, como para espelhos. Esta foi uma inovação que teve que esperar até o século XVII para surgir.

Em 1665 o Rei Luís XIV fundou na França, sob inspiração de seu ministro Jean Baptiste Colbert, a Manufatura Real de Vidros Saint Gobain, que desenvolveu um novo processo para fabricar painéis de vidro de grande tamanho. Descrevendo de forma simplificada, o vidro líquido era despejado em superfícies lisas e depois resfriado. O objetivo inicial era o de obter grandes espelhos, para os quais o vidro recebia a adição de prata e estanho. O processo permitiu, entre outras aplicações, a criação da grande Galeria dos Espelhos no Castelo de Versalhes, executada entre 1678 e 1684, com 73 metros de comprimento, compreendendo 357 espelhos. A Galeria logo se tornou um grande objeto de desejo de toda a realeza e aristocracia europeia, resultando num crescimento extraordinário da Manufatura de Saint Gobain, que hoje é um dos maiores conglomerados industriais do mundo.10

O grande aumento e a diversidade na produção de vidro na Idade Média continuaram na Renascença e o material penetrou maciçamente nos instrumentos e recipientes dos laboratórios alquímicos e químicos. A Figura 6 ilustra uma oficina de produção de vidro na Alemanha do século XVI, como mostrada em gravura no famoso livro de Georg Bauer, ou, na forma latinizada do nome, Georgius Agricola, de 1556, De Re Metallica.11 Já a Figura 7 mostra uma outra oficina de um livro do século seguinte, desta vez o livro de mineração e metalurgia Aula Subterranea, escrito por Lazarus Ercker e publicado em 1673.12 A Figura 7 provém do capítulo do livro de Ercker relativo à mineração de ouro.

 


Figura 6. Oficina de vidro na Alemanha do século XVI, do livro De Re Metallica, de Georgius Agricola, 155611

 

 


Figura 7. Figura do livro Aula Subterranea de Lazarus Ercker, de 1673,12 com um laboratório dominado por frascos de vidro

 

A partir de então, o vidro esteve cada vez mais intimamente associado à ciência, particularmente à Química. As Figuras aqui exibidas mostrarão exemplos dessa estreita associação entre a ciência e o uso do vidro.

O século XVIII testemunhou enormes avanços na técnica vidreira. Particularmente no que tange ao vidro científico, existem exemplos magníficos que se podem ver em inúmeros museus ao redor do mundo. A vidraria do laboratório de Antoine Lavoisier, por exemplo, datada da segunda metade do século XVIII, é de altíssima qualidade, e se salvou de todos os percalços da Revolução Francesa e de outros eventos. Hoje se podem ver os equipamentos do laboratório de Lavoisier, não só a vidraria, mas também outros itens, como suas notáveis balanças de precisão, no Museu de Artes e Ofícios de Paris. Todavia, como ilustrações destes itens são corriqueiramente encontrados com muita facilidade em muitas publicações, optou-se aqui por mostrar outros itens importantes de vidro usados por Lavoisier. Trata-se das chamadas "lentes ardentes", enormes lentes de vidro que ele utilizou em seus experimentos de 1772 para focalizar a luz do sol sobre diamantes e queimá-los, produzindo apenas gás carbônico. Esta foi a demonstração prática de que os diamantes são formados por carbono puro. A gravura setecentista que mostra o experimento do químico francês, executado em praça pública, foi extraída de suas obras completas,13 publicadas sob a direção de Jean Baptiste Dumas no século XIX, e está reproduzida na Figura 8.

 


Figura 8. Lavoisier, de óculos escuros, executando seu experimento de queimar diamantes com auxílio de gigantescas lentes de vidro, em 1772. Foi a partir deste experimento que ele pôde demonstrar que os diamantes consistem em carbono puro

 

O primeiro químico brasileiro, Vicente Coelho de Seabra Silva Telles, publicou em seu livro Elementos de Chimica,14 saído à luz em 1788-90, uma única gravura, na segunda parte do livro, e esta representa justamente um equipamento com partes em vidro, que ele denominou "Apparelho Pneumato-Chimico com balão". Trata-se de uma instalação para a produção e coleta de gases, que ainda se pode ver hoje no Museu de Ciências da Universidade de Coimbra, onde trabalhava Vicente Seabra, e está reproduzida na Figura 9 a partir da gravura existente na obra original do químico brasileiro.

 


Figura 9. Aparelho para a produção e recolha de gases, Vicente Seabra, Elementos de Chimica, 2ª parte, 179014

 

O século XIX presenciou a produção industrial em massa de aparelhos científicos de vidro, e viu o aparecimento de inúmeros itens que se tornaram padronizados e corriqueiros nos laboratórios, como béquers, erlenmeyers, pipetas, buretas, condensadores de vários tipos, destiladores, dessecadores, aparelhos de Kipp e uma infinidade de outros itens. Uma iniciativa pioneira de fabricação de vidro laboratorial em escala industrial deveu-se a Gay-Lussac no início do século XIX, mas o grande desenvolvimento da área do ponto de vista industrial nos anos oitocentos surgiu com grande força na Alemanha, sobretudo em Jena, onde a indústria de vidro científico fundada em 1884 por Schott e Genossen veio a granjear imensa reputação.15

Apenas como demonstração mostram-se na Figura 10 duas gravuras que representam um aparelho para executar a eletrólise da água acidulada, assim como uma montagem que ilustra o processo de Dumas e Boussingault para sintetizar água pura e determinar sua composição centesimal. Ambas ilustrações constam de um notável livro do final do século XIX no Brasil, os Apontamentos de Chimica,16 obra publicada em 1882 pelo cearense Álvaro Joaquim de Oliveira, professor na Escola Politécnica do Rio de Janeiro. Estas gravuras mostram como já era comum naquela altura a prática no Brasil da hialotecnia, ou técnica de usar e trabalhar o vidro, no ensino e na pesquisa.

 


Figura 10. (a) Aparelho para efetuar a eletrólise da água acidulada, (b) aparelho que ilustra o método de Dumas e Boussingault para obter água pura e determinar sua composição centesimal. Gravuras do livro Apontamentos de Chimica, de Álvaro Joaquim de Oliveira, de 188216

 

A partir do século XIX a variedade de tipos de vidro aumentou consideravelmente, de acordo com as utilizações a que ele se destinava.

Um dos tipos mais comuns é o vidro borossilicato, também conhecido como vidro Pyrex, extremamente usado em laboratórios ou em qualquer utilização que requeira resistência à variação de temperatura. Um vidro borossilicato típico contém cerca de 13% de B2O3 em sua composição. Estes vidros apresentam baixos coeficientes de expansão térmica, cerca de 1/3 do valor dos vidros comuns, o que os torna mais resistentes ao choque térmico que os vidros comuns. Eles podem suportar variações de temperatura de 165 oC sem se romperem. Por isso eles são em geral usados para a confecção de frascos de laboratórios, assim como de lâmpadas, materiais eletrônicos e utensílios usados em culinária.

O vidro borossilicato foi desenvolvido ao final do século XIX em Jena pelo vidreiro alemão Otto Schott. Nos Estados Unidos a Companhia Corning o introduziu a partir de 1915 com o nome comercial Pyrex, que em muitos lugares passou a significar vidro borossilicato.17

O chamado vidro chumbo, ou vidro "cristal" contém cerca de 22% a 24% de PbO, e nele o íon chumbo substitui o cálcio. A adição de chumbo ao vidro aumenta seu índice de refração, tornando o vidro mais parecido ao cristal de rocha, ou quartzo, donde ele ser chamado de "cristal". O íon de cálcio do vidro comum, por ser menor que o íon chumbo está mais fortemente ligado na estrutura do material vítreo. Já a ligação do íon chumbo à estrutura vítrea é menos rígida. Por esta razão, quando se bate numa peça de vidro "cristal", ele tilinta, ao contrário do vidro comum, com cálcio, que produz um som surdo. O vidro chumbo é conhecido desde a antiguidade, mas seu uso generalizado se disseminou na Europa a partir da Idade Média e da Renascença. Em tempos mais recentes, o temor de uma possível lixiviação do chumbo, um metal tóxico, em frascos de bebidas ácidas, como copos de vinho, por exemplo, levou ao aparecimento de vidro "cristal" contendo outros íons metálicos no lugar de chumbo, como aqueles que apresentam titânio, na forma de TiO2, embora este temor seja objeto de muita controvérsia.18

A Figura 11 mostra um belo exemplo de vidro cristal, formando um poliedro de 26 faces, alternadamente quadradas e triangulares.

 


Figura 11. Poliedro de vidro cristal com 26 faces, alternadamente quadradas e triangulares

 

 


Figura 12. Jornal Idade d'Ouro do Brazil, nº 71, de 03 de setembro de 1813, que traz os preços cobrados pela fábrica. Biblioteca Nacional Digital do Brasil29

 

Entre os muitos tipos de vidro disponíveis hoje deve também ser mencionado o vidro temperado. Este é um vidro de segurança obtido por tratamento térmico e químico que aumenta sua resistência em comparação com o vidro comum. O processo de sua preparação coloca a parte externa do vidro sob compressão e a parte interna sob tensão. Em virtude disso, ao quebrar, o vidro se rompe em pequenos grânulos no lugar de pedaços pontiagudos, como ocorre com o vidro comum. Por isso o vidro temperado é muito usado em janelas de veículos, portas de banhos, aquários, portas de edifícios, tampos de mesas, componente de vidros à prova de balas, máscaras de mergulho, além de pratos e utensílios culinários.19

Naturalmente existem muitos outros tipos de vidro, e seria uma tarefa impossível querer discuti-los todos nesta visão geral. Por isso optamos por apresentar inicialmente aspectos da composição e da história do vidro, abordando também alguns tipos, que talvez sejam aqueles mais representativos desse material em nossa vida quotidiana, e deixando para a parte a seguir a discussão do vidro científico no Brasil, incluindo aspectos históricos e da disseminação da hialotecnia entre nós.

O Vidro no Brasil

Este tópico também constará de uma revisão histórica, que raramente se lê quando se trata do vidro no Brasil, até chegarmos à situação atual, que procurará mostrar a situação da produção de vidro científico no país, sobretudo nos laboratórios de hialotecnia científica, que têm sofrido um acentuado sucateamento, o que é preocupante, dada a necessidade crescente de vidro científico nos laboratórios, especialmente de Química.

Como já se apontou, as publicações existentes no Brasil sobre o vidro são relativamente escassas, num flagrante contraste com o enorme uso do material e do volume de sua produção no país. Entre as poucas obras gerais sobre o vidro publicadas no país por autor brasileiro é interessante citar o livro do Prof. Samuel Berg Maia, da UFRJ, obra que contempla inúmeros aspectos ligados ao vidro, sua história, fabricação composição, produção e usos.20

As origens do fabrico do vidro no Brasil são ainda um pouco nebulosas, mas estão ligadas à história do tráfico comercial marítimo que se estabeleceu na colônia. Durante a colonização portuguesa o vidro usado no território brasileiro para recipientes ou vidraças era normalmente importado de Portugal, a partir das oficinas instaladas em Lisboa, Abrantes, Coimbra, Vila Viçosa e Marinha Grande.21,22 Uma exceção a esta regra geral aconteceu durante o período da ocupação holandesa do Nordeste do Brasil, sobretudo durante a administração de Maurício de Nassau, entre 1637 e 1644. Nassau trouxe para o Brasil profissionais que dominavam várias técnicas ligadas à manipulação do vidro. De acordo com Sergio de Paula Santos, teriam vindo com Nassau quatro "vidraceiros" que fabricavam vidros planos para o uso em janelas, além de fazerem copos e vasilhames para bebidas diversas.23 Mariana de Campos Françozo nos apresenta seus nomes como sendo, Anthony de Later, Jacob Pauwelsen, Paulus Auwaarts e Pieter Coninxloo.24 Este último também aparece nos trabalhos de Evaldo Cabral de Mello, apesar do mesmo, citar apenas três vidraceiros vindos com Nassau, sem todavia, especificar os nomes dos outros dois vidraceiros.25

Provavelmente, todavia, vidraceiro tem mais a ver com os profissionais que trabalhavam com a aplicação de vidro plano em vidraças. Outros autores como Janaína Borges de Moraes utilizam o termo "vidreiro" para se referirem a esses profissionais que compunham a comitiva de Nassau.26

Em Olinda se estabeleceu uma oficina com dois objetivos principais: a produção de vidro para uso em janelas, produzido por estiramento e prensagem manual, assim como a produção de copos e frascos por meio das técnicas de sopro e rotação. Após a saída dos holandeses do Brasil, cessou a incipiente produção local de vidro.27,28

Entre os muitos percalços para se fazer vidro no Brasil concorreu o famoso alvará de 1785 da Rainha D. Maria I proibindo as manufaturas na colônia. Assim sendo, a primeira fábrica de vidro no país surgiu em 1810, após a instalação da corte portuguesa, e entrou em atividade na Bahia, por iniciativa do português Francisco Ignácio de Siqueira Nobre. Ele recebeu a concessão de duas léguas de terra e uma licença de exclusividade para produzir artefatos de vidro por 20 anos. Esta Real Fábrica de Vidros da Bahia ficava em Jiquitaia, um lugarejo pertencente à atual cidade de Campo Alegre de Lourdes, a 872 km de Salvador, e próximo à Província do Piauí. Os vidreiros que nela trabalharam foram trazidos de Portugal e da Inglaterra, e recebiam o incentivo de dispensa do alistamento militar.27,28

Em 3 de setembro de 1813, cerca de um ano após o início da produção de vidro na fábrica baiana, o primeiro jornal impresso da Bahia e segundo do Brasil, a Idade d'Ouro do Brazil, que surgira em 14 de maio de 1811, na edição de número 71 publicava uma lista com 50 produtos de vidro de tamanhos e volumes diversos. Nele é possível observar-se que os valores cobrados eram tabelados conforme o preço em Lisboa e que os pedidos acima de 100$000 (cem mil réis) teriam um desconto de 5% caso fossem pagos antecipadamente, e à vista o desconto poderia chegar a 10%. Outro aspecto importante e que se assemelha aos laboratórios de hialotecnia atuais é que os vidreiros da Real Fábrica de Vidros da Bahia fabricavam peças de vidro tanto a partir de amostras dos clientes como desenvolviam novas vidrarias a partir de desenhos.

A partir da implementação da Real Fábrica de Vidros da Bahia seguiram-se sucessivas outras fábricas com processos totalmente artesanais, como a Fábrica de Vidros São Roque, no Rio de Janeiro, em 1839, seguida bem mais tarde pela Companhia da Fabrica de Vidros e Crystaes do Brazil, conhecida como Fábrica de Vidros Esberard, no Rio de Janeiro, fundada pelo francês Francisco Antonio Maria Esberard em 1878.30-35 As referências 30 a 35 englobam várias publicações que discutem o problema da data de fundação da fábrica. Esta fábrica aproveitava a areia do mar como fonte de sílica para seus vidros. Ela utilizava máquinas a vapor, quatro fornos grandes e três menores, e tinha cerca de 600 funcionários entre operários e vidreiros, e seus principais produtos eram vidros para lampiões, copos e vidros planos para janelas. Um produto da fábrica Esberard muito conhecido até hoje são as galinhas e compoteiras de vidro colorido, usadas por longo tempo, objetos do tipo conhecido como "carnival glass".30 Nos Estados Unidos, onde muito se produziu desses utensílios, a palavra carnival significa parque de diversões, e esses objetos de vidro eram dados como brindes ou prêmios nas competições dos parques. A Figura 13 mostra uma foto antiga da fábrica Esberard e a Figura 14 apresenta um folheto de propaganda do século XIX. A fábrica Esberard funcionou no mesmo local até o ano de 1940.36

 


Figura 13. Fábrica de Vidros Esberard no bairro São Cristóvão no Rio de Janeiro. Do outro lado da rua General Bruce, que aparece na foto, estava o cais da empresa na Baía de Guanabara por onde recebia a areia vinda de Niterói34

 

 


Figura 14. Folheto de propaganda da Companhia da Fabrica de Vidros e Crystaes do Brazil

 

No início do século XX surgia no Rio de Janeiro a empresa Cisper (Companhia Industrial São Paulo e Rio), que foi a primeira a abandonar completamente a produção artesanal de sopro e a utilizar integralmente máquinas automáticas americanas desenvolvidas por Michael J. Owens. Fundada por dois engenheiros, Olavo Egydio de Souza Aranha e Alberto Monteiro de Carvalho, hoje com fábricas em São Paulo, Rio de Janeiro e Manaus, seus principais produtos eram garrafas e copos e seus principais clientes eram as empresas de bebidas, sendo que em 1918 sua primeira venda foi de garrafas para a empresa Brahma.37,38

A indústria de produção de vidros no Brasil se expandiu alcançando um mercado que produziu 7.530 t/dia de vidro plano em 2020 com um faturamento aproximado de R$ 4,5 bilhões.39

Para uma percepção cronológica da inserção da indústria vidreira no Brasil e os diversos nichos de mercado em que ela atua ou atuou, no Quadro 1 são apresentadas as principais fábricas de vidro instaladas no Brasil a partir de 1810 e seus produtos. Essas empresas estão divididas conforme o consumo em quatro grandes áreas: vidros planos, embalagens, vidros de uso doméstico (vidros artesanais e utilitários) e vidros especiais de uso técnico, nicho no qual está inserida a produção de vidraria científica.39

 

 

Das 47 empresas listadas, somente 9 atuam ou atuaram especificamente com produção de vidraria científica. Certamente isso está relacionado à pequena produção de vidros especiais no Brasil, que em 2011 atingiu a marca de apenas 5,5% da produção nacional frente a 94,5% da produção de vidros planos, embalagens e vidros domésticos.41

Outro fator verificado em visitas técnicas realizadas por um dos presentes autores (W. T. S.) de 2018 a 2020, é a dificuldade de expansão das empresas por falta de mão de obra especializada, visto não haver atualmente no Brasil centros de formação e capacitação em hialotecnia.

Para além do crescimento da produção de vidro, o desenvolvimento tecnológico em vidro no Brasil teve vários aspectos históricos de constante diálogo entre produção tecnológica, inovação, comércio e ciência.

Em 1975 o Prof. Aldo Craievich, do Instituto de Física da Universidade de São Paulo, em São Carlos, publicava a primeira tese sobre materiais vítreos no Brasil, intitulada "Mecanismos de Separação de Fases em Sólidos Vítreos".42 Em 1976 era fundado no Brasil o primeiro laboratório dedicado exclusivamente a estudos em materiais vitro-cerâmicos, o Laboratório de Materiais Vítreos (LAMAV) da Universidade Federal de São Carlos, e em 2017 um brasileiro, o Prof. Edgar Dutra Zanotto, da UFSCar, juntamente com o americano Prof. John Mauro, da Penn State University, publicavam sua definição de vidro, como:

"O vidro é um estado fora do equilíbrio termodinâmico e não cristalino da matéria, que parece sólido em uma curta escala de tempo, mas que relaxa continuamente em direção ao estado líquido."43

Em meio a todo esse histórico de desenvolvimento tecnológico ligado ao vidro, quando surge no Brasil o que chamamos de Hialotecnia e qual a sua interação com a ciência?

A seguir se descreverá o que é Hialotecnia e como ela é implementada nas Instituições de Ciência, Tecnologia e Inovação no Brasil a partir da Reforma Universitária em 1968. Também será abordado o seu perfil histórico-técnico-demográfico após mais de 100 anos da "fundação" da primeira universidade brasileira, a Universidade Federal do Rio de Janeiro e do primeiro laboratório de Hialotecnia ligado diretamente a uma Instituição de Ciência, Tecnologia e Inovação.

A hialotecnia no Brasil

A palavra hialotecnia vem da junção de dois termos de origem grega, hialos, vidro ou substância transparente, e techne, que pode ser arte ou técnica. Assim sendo, a hialotecnia pode significar a arte ou técnica de trabalho em vidro. Dessa maneira, a hialotecnia pode ser descrita como o campo do conhecimento relativo ao desenvolvimento e produção de vidraria científica.

Às vezes, pode-se usar o termo até para mostrar novos usos do vidro em atividades científicas diversas, que nem apresentam a produção de novos produtos de vidro, mas simplesmente novos usos de materiais já existentes. Um exemplo curioso disso é dado numa aplicação publicada há alguns anos na revista Química Nova, que descreve um experimento de eletroquímica usando um engenhoso coulômetro de sódio.44 A difusão do sódio através do vidro, que forma a base do coulômetro de sódio, foi revista e modificada, aplicando-a numa lâmpada incandescente comum, que está normalmente cheia com um gás inerte a baixa pressão. Os coulômetros são capazes de medir a quantidade de carga elétrica que circula num circuito elétrico. A determinação pode ser feita pela medida da diferença de massa em um dos seus eletrodos. Este equipamento permite demonstrar elegantemente as Leis de Faraday, realizar uma determinação precisa de massas atômicas e estabelecer correlações entre a carga do elétron, o número de Avogadro e a constante de Faraday. Modernamente, existem versões sofisticadas desse instrumento, totalmente eletrônicas, mas pouco após o início do uso generalizado de lâmpadas elétricas, propôs-se uma modalidade diferente de coulômetro. Para tal, realizava-se a deposição eletrolítica de sódio metálico dentro do bulbo de uma lâmpada, sem romper o vidro. A pesagem da lâmpada antes e após o experimento, permitia determinar a quantidade de sódio formado depois de um certo tempo de eletrólise. Este resultado interessante da difusão do sódio metálico através do vidro pode ser visto claramente ao término do experimento, como mostra a Figura 15.

 


Figura 15. Uma lâmpada incandescente usada como coulômetro de sódio, mostrando a deposição do metal nas paredes da lâmpada após sua difusão através do vidro

 

Para a realização desse experimento, que mostra elegantemente a permeabilidade do vidro aos íons sódio, usou-se uma lâmpada incandescente de alto vácuo com seu bulbo de vidro parcialmente imerso em nitrato de sódio fundido. O filamento da lâmpada foi aceso de maneira usual, e um miliamperímetro intercalado entre um dos polos da lâmpada e um eletrodo, também imerso no banho salino, e que funciona como condutor dos elétrons. Após certo tempo de eletrólise, aparece um depósito brilhante de sódio metálico, na parte do vidro mais fria, como mostra a Figura 14. O vidro da lâmpada, do tipo cal-soda, tem um teor elevado de íons sódio (12 a 17%), e esses íons têm no vidro uma mobilidade muito boa. O eletrodo, imerso no sal fundido, encontra-se em uma referência positiva em relação ao potencial elétrico presente no meio do filamento. Os íons sódio do sal migram pelo vidro para o interior do bulbo da lâmpada, sendo neutralizados pelos elétrons de origem termoiônica, emitidos pelo filamento.

Com a evolução das técnicas e dos produtos, a atividade vidreira tornou-se cada vez mais específica, surgindo com o tempo vidreiros que trabalham com vidraria laboratorial, com desenvolvimento de diferentes tipos de vidro, outros com vidro plano e recipientes para alimentos, além dos conhecidos mestres vidreiros que permanecem desenvolvendo peças artesanais.

Esta última expressão, vidreiro, ainda é utilizada em nossos dias por muitos profissionais no Brasil, até mesmo pelos que desenvolvem vidrarias para pesquisa. Isto ocorre em função da formação de muitos desses profissionais advir historicamente de forma artesanal e transmitida em diversos casos entre familiares, sem um curso ou escola de formação específica. Esta maneira de formar os hialotécnicos no Brasil é tradicional há muitas décadas, e lembra a formação antiga que se dava entre artesãos desde a Idade Média, de mestre a aprendiz. Por isso é importante que chamemos a atenção para a necessidade de formar mais hialotécnicos no país, e que esta formação receba um cuidado maior, com a criação de mais centros e cursos da especialidade. Isto deve ser encarado com urgência, pois a escassez de mão de obra na área já se sente em muitos locais.

Pela Classificação Brasileira de Ocupações, elaborada desde 1982, o antigo Ministério do Trabalho "reconhece, nomeia e codifica os títulos e descreve as características das ocupações do mercado de trabalho brasileiro".45 Essa classificação faz distinção entre os profissionais que trabalham com o vidro por processos industriais e os que trabalham com técnicas manuais ou semi-industriais. Aqueles que trabalham na produção de vidros artesanais são chamados de artesãos ou mestres vidreiros e os que fabricam instrumentos vítreos para laboratório, de hialotécnicos ou técnicos vidreiros científicos. Estes

"planejam atividades de sopro e moldes de vidros e cristais, dando forma ao vidro incandescente, soprando, modelando e moldando-o, manualmente ou operando equipamentos de vidraria para fabricar peças artístico-artesanais, materiais de laboratório, utilitários domésticos, embalagens, entre outros. Controlam a qualidade do produto e do processo de produção e trabalham segundo as normas de qualidade, segurança no trabalho, saúde ocupacional e preservação ambiental."45

Vale ressaltar que existe uma diferença técnica peculiar entre o hialotécnico e o soprador de vidro de laboratório. O primeiro trabalha em todas as etapas da produção das vidrarias de laboratório a partir do tubo de vidro. O segundo trabalha em etapas específicas da produção dessas vidrarias. Um exemplo seria a fabricação de um condensador de bolas, uma vidraria muito utilizada em laboratório em processos como extração de materiais orgânicos. Esse equipamento é produzido a partir de 4 partes distintas fabricadas separadamente (olivas, juntas cônicas, tubo interno soprado, e tubo externo) de um processo total de 5 etapas de fabricação. O soprador de vidro pode atuar em uma ou mais etapas da produção desse condensador. Já o hialotécnico, atua em todas as etapas, partindo do tubo de vidro à peça finalizada para uso em laboratório.

Das classificações, igualmente ressalta-se o papel do artesão modelador de vidros, também denominado mestre vidreiro, termo muito comum entre os profissionais do Brasil. Mediante o uso de canas de vidro ele utiliza técnicas manuais através de sopro e moldes de vidro a altas temperaturas que podem alcançar 1300 ºC, variando conforme o tipo de vidro que manipula na produção de artefatos artesanais e/ou artísticos, a utensílios domésticos. Suas técnicas ainda são similares às da antiguidade, e apesar de manipularem diversos tipos de vidro como o vidro borossilicato e os vidros sodo-cálcicos, comuns em laboratórios de hialotecnia, o tipo de vidro mais comumente utilizado por eles é o vidro chumbo ou vidro de titânio, ou, como são frequentemente conhecidos, os "cristais".

Formação Profissional do Hialotécnico

Quanto à formação e experiência necessária para exercer a atividade de vidreiro científico ou artesanal, requer-se, segundo o Ministério do Trabalho e Emprego, ensino médio completo e curso básico de qualificação profissional de aproximadamente 200 h/aula. Todavia ressalta-se que para o aperfeiçoamento requer-se um mínimo de um a cinco anos de atividade profissional, dependendo da ocupação.41 Esta sequência de aprendizado irá variar na formação dos profissionais que trabalham como hialotécnicos nas Instituições de Ciência, Tecnologia e Inovação. Todavia, hoje mesmo os profissionais autônomos ou em empresas do ramo possuem uma formação curricular e profissional extremamente variada.

Os autores do presente trabalho dispõem de dados pormenorizados sobre as diversas oficinas de hialotecnia existentes num grande número de instituições brasileiras, sobretudo universidades e institutos técnicos, mas também empresas privadas com foco no desenvolvimento de vidro científico e artesanal. Estes dados são demasiado extensos para serem aqui incluídos, mas poderão ser fornecidos a quem assim o desejar.

 

CONCLUSÃO

Este artigo tem como propósito mostrar a importância do vidro como um material onipresente em nossas vidas e também na maioria das atividades de pesquisa, não só em Química como nas outras ciências e suas aplicações. Isto foi feito discutindo muitas de suas propriedades e características, sejam elas químicas, ópticas, estruturais e mecânicas, que o tornam um material tão versátil e imprescindível. É difícil vislumbrar que ele possa perder sua importância, levando em conta tantas aplicações a que se presta, e que só têm crescido com o tempo. Ao contrário, considerando a multiplicidade de seus usos, é de se esperar que estejamos diante de um material que poderá diversificar-se cada vez mais em novas modalidades, estruturas e usos. Basta atentar para a imensa variedade de vidros que surgiram ao longo do tempo, com composições, estruturas e propriedades antes insuspeitadas. Assim, além das considerações científicas e técnicas, uma discussão sobre o vidro na história é parte integrante do tema. Por todas as razões mencionadas, é conveniente que uma revista como Química Nova leve a seus leitores reflexões a respeito de um material de tamanha relevância.

 

REFERÊNCIAS

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