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Profa. Dra. Ana Rosa Kucinski Silva Dr Ana Rosa Kucinski Silva |
Dalva L. A. de FariaI,II,*
I. Departamento de Química Fundamental, Instituto de Química, Universidade de São Paulo, 05508-000 São Paulo - SP, Brasil Recebido: 19/05/2024 *e-mail: dlafaria@iq.usp.br Ana Rosa Kucinski Silva, lecturer in the Department of Chemistry at the University of São Paulo (São Paulo, Brazil), had her academic career violently interrupted in April 1974 when was kidnapped, tortured, and murdered by the repression forces of the military dictatorship (1964-1985). Since then, papers and books were written about her, emphasizing her political activities but much less is known on her academic activities. Fifty years after her disappearance, this work aims to contribute to fill this gap. INTRODUÇÃO "Tirar uma vida, diz a sabedoria hassídica, é o mesmo que tirar milhares de vidas, pois desaparecem também os filhos que nasceriam daqueles que morreram, e os filhos desses filhos, e assim por diante, até o fim dos tempos".1 No meio acadêmico, há ainda que se levar em conta os alunos que deixaram de ter orientação, os alunos desses alunos e o brotar de uma árvore científica, frondosa e com raízes profundas. As contribuições científicas e tecnológicas que deixaram de ser dadas ao país e à humanidade, e o impacto de sua relevância não podem ser medidas e avaliadas. É uma privação incomensurável. Em 22 de abril de 1974 Ana Rosa Kucinski Silva, Professora Doutora do Instituto de Química da USP, e seu marido, Wilson Silva, desapareceram por volta do horário do almoço. Apesar de todos os esforços da família e amigos não foram encontrados; os órgãos de repressão nunca reconheceram a responsabilidade por seu desaparecimento. Um ano depois, em abril de 1975, Ana Rosa foi demitida por abandono de emprego.2 Apesar de todas as evidências de que ela não havia se afastado voluntariamente, o terrorismo oficial da ditadura militar dobrou os joelhos da maior Universidade da América do Sul, e o fez a tal ponto que o controle ideológico chegou a ser coordenado por um gabinete especial, situado ao lado da sala do reitor, chamado de Assessoria Especial de Segurança e Informação (AESI),3 cujo chefe (Krikor Tcherkesian)4 surpreendentemente se tornaria empresário do cantor e compositor João Gilberto anos mais tarde.5 No caso dos docentes, aquela Assessoria funcionava impulsionada pelo medo gerado pela violência dos militares, afinal autorizada por medidas de exceção como o AI-5, e pelo oportunismo de alguns que viam na delação e perseguição política de colegas uma possibilidade de se livrarem de profissionais mais capacitados ou com posições, não necessariamente políticas, com as quais discordavam, como evidenciou Paulo Duarte em seu pronunciamento no Conselho Universitário em 1967, referindo-se à prisão de Isaias Raw:
A revogação da demissão de Ana Rosa foi formalizada por ato do reitor Flavio Fava de Moraes em 1995 (processo No. 74.1.17459.1.7, despacho de 18/7/1995),2 mas somente foi levada a efeito pela Congregação do Instituto de Química quase 10 anos depois. Bernardo Kucinski irmão de Ana Rosa lembra, entretanto, que apesar da ordem do reitor em 1995 "para que fosse cancelada a demissão, e "restaurada a verdade histórica no prontuário e no processo de minha irmã", ficou faltando a mesma restauração da verdade histórica no âmbito da burocracia e do sistema de poder da universidade em si."7 Finalmente, em 2014 por decisão unânime em reunião da Congregação do Instituto de Química (IQ) realizada em 17 de abril foi oficializada a anulação da demissão de Ana Rosa e, além de um pedido formal de desculpas à família, a diretoria do IQ realizou uma homenagem à Professora em ato público no Instituto em 22 de abril daquele ano. O anfiteatro, informalmente chamado de "Queijinho", foi batizado com o nome de "Complexo Ana Rosa Kucinski", sendo também feita a inauguração de um memorial com uma escultura da artista plástica Kimi Nii na entrada da instituição (Figura 1) na qual se lê:
ANA ROSA KUCINSKI
Professora sequestrada e morta pela ditadura 18/01/1942 desaparecida em 22/04/1974 Que sua lembrança inspire as futuras gerações a lutar, como ela, contra os que tentam sufocar a liberdade. Abril de 2014
Alguns livros foram publicados8,9 e relatórios de comissões de investigação3,10,11 foram produzidos, analisando os aspectos políticos do desaparecimento de Ana Rosa, entretanto, pouco se sabe sobre sua atuação profissional na Universidade. Considerando os impactos terríveis decorrentes de sua ausência, a falta de informações acadêmicas não é certamente o aspecto mais relevante dessa imperdoável, brutal e nefasta perda de sua vida familiar, cidadã, intelectual, afetiva e profissional. Mas é em nome de valores que a Universidade reverencia e pelos quais pugna que este texto foi redigido, 50 anos após seu desaparecimento. Buscou-se aqui resgatar a história e o espaço da Profa. Dra. Ana Rosa Kucinski Silva no IQUSP, desde seu ingresso no curso de Química em 1961, até seu desaparecimento em abril de 1974. Há muitas verdades não contadas ou evitadas pelo comprometimento de pessoas e instituições, mas trazer à luz a trajetória da Profa. Kucinski nos 13 anos em que fez parte da comunidade do Instituto de Química da USP, seja como aluna ou como docente, é muito importante para que não se esqueça o que aconteceu a ela, para que nunca se repita.
A OPÇÃO PELA QUÍMICA Filha de imigrantes poloneses (Majer e Ester Kucinski), Ana Rosa nasceu em São Paulo em 12 de janeiro de 1942, assim como seu irmão Bernardo alguns anos antes (1937). A história da família, desde antes da chegada ao Brasil, foi detalhadamente contada no livro Kaddish - Prece por uma Desaparecida9 e foge ao escopo deste texto, mas Majer emigrou para o Brasil em 1935 (Figura 2) e Ester veio um ano depois, trazendo Wulf, o filho primogênito do casal nascido na Polônia em 1932.12
Ana Rosa era uma mulher extremamente culta; tocava piano, pintava e costumava ler livros que não eram comumente encontrados nas estantes de seus colegas à época. Não está claro como surgiu seu interesse pela química como carreira profissional. No livro Kaddish,14 depoimentos indicam que ela expressou essa vontade a amigos no final de 1959. Ingressou no curso de Química ainda pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL), através de Concurso de Habilitação, como era então chamado o que conhecemos hoje por vestibular. Em sua primeira tentativa (1960) não foi aprovada; em Kaddish, a autora Ana Castro reconstrói esse momento a partir da lembrança de um amigo: "Os dois ficaram vagando pelo centro de São Paulo até entrarem na Igreja Nossa Senhora da Consolação, que fica na Praça Roosevelt. Ali ficaram por muito tempo. Ele em silêncio, ela chorando".14 No ano seguinte participou novamente do concurso, que possuía uma etapa escrita e outra oral, e foi um dos 17 candidatos aprovados dos 68 inscritos. A banca avaliadora era formada por Giuseppe Cilento, Blanka Wladislaw e Luiz R. M. Pitombo. Dentre os outros aprovados, destacam-se alguns nomes que fizeram carreira acadêmica no IQUSP, como Fernando Galembeck, Sérgio Massaro e Rogério Meneghini. O Concurso de Habilitação à carreira compreendia provas de química, matemática, física, português e francês; as maiores notas de Ana Rosa foram em química e francês.
O CURSO DE QUÍMICA Os depoimentos de todos os que conviveram mais diretamente com Ana Rosa no então Departamento de Química da FFCL da USP e depois no IQ a descrevem como uma pessoa sensível e sociável, além de muito culta, compartilhando seu gosto refinado na música, literatura, poesia, cinema e teatro com amigos. Era também uma pessoa extremamente franca, direta, que não suportava alienação e era avessa ao conservadorismo. É fácil compreender que no ambiente acadêmico austero do IQ (e, infelizmente, da própria Universidade) não foram poucos os que não se afinaram com seu modo de ser, com sua visão de mundo e com a postura crítica para com a política nacional então autoritária e persecutória. No início da década de 1960, ainda não havia o campus do Butantã e as disciplinas eram ministradas em lugares diferentes: as aulas experimentais de química aconteciam na Alameda Glete, as aulas de matemática na Faculdade de Filosofia situada à Rua Maria Antônia e as de física eram ministradas nos novos laboratórios do Departamento de Física, que já em 1965 eram na Cidade Universitária.15 Apenas em 1966, todas as disciplinas passaram a ser ministradas no campus do Butantã.16 Seu desempenho no primeiro ano de graduação foi péssimo e apenas logrou aprovação na disciplina Complementos de Matemática. Naquele ano (1961), sua mãe fora diagnosticada com um câncer de mama agressivo e era cuidada apenas por Ana Rosa, o que provavelmente explica seu desempenho inexpressivo nas disciplinas. Infelizmente sua mãe veio a falecer em janeiro de 1962 e, a partir desse ano, seu histórico escolar registra apenas aprovações em todas as disciplinas cursadas, confirmando o impacto do drama vivido por sua família em seu primeiro ano de Universidade. Concluiu o bacharelado e a licenciatura em Química em 1965 e, dentre os formandos daquele ano, estão colegas que também fariam carreira acadêmica no que viria a ser chamado de Instituto de Química como formalizado na ata da Congregação de 27 de fevereiro de 1970, entre eles, Jaim Lichtig, Miuaco Kawashita, Paulo Roberto Olivato, Roberto Casadei de Baptista, Rogério Meneghini e Sérgio Massaro. Até sua formatura, Ana Rosa lecionou Química no Colégio Caetano de Campos17 e no Colégio Estadual Prof. Macedo Soares18 (Figura 3). Esse era e ainda hoje é o principal recurso que os estudantes de cursos de período integral usam para se manterem financeiramente. Tempos depois, um dos colegas de Ana Rosa no Colégio Estadual Prof. Macedo Soares ganharia notoriedade no ensino de matemática: Scipione Di Pierro Netto, falecido em 2005.
É possível que por conta de sua personalidade franca, refinamento cultural e senso crítico, destoante do ambiente idealizado por ela, tenha se frustrado em alguns momentos com o curso de Química. Cartas recebidas de amigas19 sugerem que ela cogitou abandonar o curso, mas sua vocação a impulsionou a dar prosseguimento à carreira e ingressar na pós-graduação. Em 1966, o Departamento de Química foi integralmente transferido para o Conjunto das Químicas na Cidade Universitária, cuja construção havia sido iniciada em 1961. Ao contrário do espaço restrito que havia no prédio da Alameda Glete, os 12 blocos que abrigariam os dois departamentos (Química Fundamental e Bioquímica) do Instituto de Química a partir de 1970, continham novas e espaçosas salas de aula, laboratórios e escritórios para os docentes. Sem dúvida foi um período de muitas transformações no país, na Universidade e no Departamento de Química. Não foram muitos os amigos mais próximos de Ana Rosa e no IQ podem ser citados Lourdes Gonçalves, Sérgio Massaro, Etelvino Bechara e Shirley Schreier. Bechara e Schreier desenvolveram longa e produtiva carreira no IQ, onde atuam até hoje na docência e pesquisa como professores Seniores. Talvez também pudesse ter sido o caso de Ana Rosa, se ela tivesse tido essa oportunidade.
O INÍCIO DA PÓS-GRADUAÇÃO Ana Rosa iniciou a pós-graduação em 1966, logo após sua formatura, e desde então foi bolsista FAPESP (processos No. 66/051, 68/082 e 69/082). O Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq) é citado nos Agradecimentos de sua Tese, mas não foi possível saber se seria por bolsa de estudos ou por auxílio financeiro ao projeto; tampouco foram encontrados registros de quando isso teria acontecido. Nos anos de 1967 e 1968, Ana trabalhou como Bolsista de Ensino20 uma condição que permitia a alunos que ainda não tinham mestrado ou doutorado auxiliarem em disciplinas experimentais. A partir da implantação da reforma universitária em 1970 houve uma expansão significativa no número de alunos das turmas, devido ao aumento no número de ingressantes e isso causou visível desconforto em Ana Rosa, com as dificuldades impostas pelas novas demandas das disciplinas.21 Em sua Tese de Doutorado, ela investigou a separação e quantificação de molibdênio(VI) em misturas com tungstênio(VI). Usou métodos de extração do metal com solventes orgânicos em meio ácido e desenvolveu um método colorimétrico para sua quantificação. Molibdênio é considerado um material estratégico pelo uso, por exemplo, em dispositivos eletrônicos e em ligas metálicas com propriedades específicas. Em tais aplicações é necessário que o metal tenha alta pureza, entretanto, molibdênio (Mo) e tungstênio (W) comumente se encontram presentes em minérios e a preocupação em separá-los já existia desde o final do século 19.22 A dificuldade reside no fato desses metais possuirem propriedades químicas bastante semelhantes, tornando sua separação e purificação verdadeiros desafios. Atualmente, a exaustão de minas nas quais W era encontrado em alta pureza, ainda traz a questão da separação e purificação desses metais, seja de minérios impuros seja de rejeitos de produção e de catalisadores. Isso explica por que desde 1971 tenham sido publicados cerca de 23 artigos por ano sobre esse tema. A Tese de Doutorado de Ana Rosa, dedicada ao pai, foi defendida em fevereiro de 1973 e tem por título "Estudo sobre a Extração de Molibdênio(VI) em Solventes Orgânicos e sua Aplicação Analítica".23 A pesquisa da eficácia da extração de molibdênio(VI) em soluções clorídricas em grande número de solventes orgânicos testados revelou extração quantitativa do metal por espectrofotometria quando complexado por fenilfluorona (2,3,7-trihidroxi-9-fenil-6-fluorona, Figura 4). Esse reagente orgânico foi empregado na década de 1940 para a detecção colorimétrica de germânio24 e, posteriormente, de outros metais, como o zircônio.25 O método se mostrou seletivo para a maioria dos interferentes, inclusive tungstênio, neste caso empregando ácido cítrico. O limite inferior de detecção utilizando o método colorimétrico proposto foi de 0,1 µg de molibdênio(VI) mL-1.
O desaparecimento de Ana Rosa no ano seguinte à defesa de sua Tese certamente foi determinante para que os resultados obtidos nunca fossem publicados, exceto em duas reuniões da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Parte dos resultados foi apresentada na 24ª Reunião Anual da SBPC (1972), realizada em São Paulo ("Determinação de Molibdênio em Presença de Tungstênio")26 e na 25ª Reunião Anual da SBPC que aconteceu no ano seguinte no Rio de Janeiro ("Estudo Polarográfico da Onda Catalítica de Mo(VI) em Presença de W(VI) e seu Aproveitamento Analítico"),27 ambos em coautoria com seu orientador Prof. Paschoal Senise (Figura 5).
CONTRATAÇÃO COMO DOCENTE No final dos anos 1960, a contratação de docentes se fazia por indicação de professores catedráticos e assim foi com Ana Rosa. Indicada por seu orientador (Prof. Paschoal Senise), a carta de recomendação destaca algumas de suas características: "O interesse demonstrado pela pesquisa e pelo ensino, bem como a sua dedicação e as qualidades pessoais, recomendam o seu aproveitamento, sendo lícito esperar-se que venha a prestar uma contribuição eficiente às atividades da Cadeira" (Figura 6).
Ana Rosa foi, dessa forma, contratada em 13/5/1969 (RUSP 7.701/69) inicialmente como Instrutora de Ensino junto à Cadeira de Química Analítica em Regime de Tempo Parcial (RTP) por 730 dias, a pedido da então Faculdade de Farmácia e Bioquímica da USP. Este regime foi alterado em 16/10/1969 para RDIDP (Regime de Dedicação Integral à Docência e à Pesquisa) e, sequencialmente prorrogado até 31/12/1974. Em fevereiro de 1970, Ana foi realocada para o Instituto de Química, criado naquele ano pela Reforma Universitária. No início de 1972, a função de Instrutora passou a se chamar Auxiliar de Ensino e, a partir da defesa de seu doutorado (em 23/2/1973), assumiu a função de Professora Assistente Doutora.2 Na Figura 7, Ana Rosa aparece com os demais membros do grupo de pesquisa do Prof. Senise, junto de alguns de seus amigos mais próximos: Lourdes Gonçalves, Sérgio Massaro e Jaim Lichtig.
CONVIVÊNCIA ACADÊMICA Como já foi destacado, é consenso entre os que conviveram com Ana Rosa que, além de ser uma pessoa muito culta, sentia prazer em compartilhar seu gosto e conhecimento sobre cultura em geral com amigos. O apartamento em que morava na Av. Rio Branco tornou-se ponto de encontro, onde era possível ouvir música erudita, discutir os filmes e a peças mais recentes e trocar impressões sobre livros que com frequência emprestava. Vários depoimentos de colegas seus no IQ como o de Mansur Lutfi, graduado pelo IQ em 1972 e professor aposentado da Unicamp, apontam para os pendores artísticos e culturais de Ana Rosa. Na homenagem prestada a ela pelo IQ em outubro de 2013, Mansur declarou a admiração despertada pela exposição de arte preparada pela então pós-graduanda para o 1º de Maio em 1966: "Eram reproduções de quadros de Diego Rivera com representações de situações de trabalho, junto a um mural explicando as origens da data. Nunca tinha visto nada parecido antes e nem vi depois".29 Cira Cohenca, amiga e vizinha, lembra do período em que Ana Rosa frequentava uma escola de arte e pintava reproduções de artistas famosos: "imitações perfeitas", segundo ela.30 Ana Rosa era uma excelente amiga e também gostava de fazer papel de cupido, aproximando pessoas que, ela acreditava, tinham afinidade. Foi assim que sua amiga Ana Maron, que cursava história, conheceu e posteriormente se casou com Eduardo Vichi, colega de Ana Rosa na Química. Vichi teve vida acadêmica destacada no Instituto de Química da Unicamp, onde foi contratado em 1970. Em 11 de julho desse mesmo ano Ana Rosa casou-se com Wilson Silva, amigo de seu irmão Bernardo.31 Ambos haviam se formado em Física na USP em 1967. O relacionamento entre Ana e Wilson começou no final de 1967 ou início de 1968, quando também se tornaram militantes da Aliança Libertadora Nacional (ALN), optando por viver uma vida dupla. Nem os amigos mais próximos de Ana Rosa sabiam de seu casamento. Do ponto de vista acadêmico, sua experiência com extração e purificação de metais a levou a colaborar com a Dissertação de Mestrado de Engles Anastácio Finotti que, nos Agradecimentos de sua Dissertação, defendida no Instituto de Física em 1979, declarou que Ana Rosa foi diretamente responsável pelo processo de separação química do índio, que lhe tomou cerca de um ano de pesquisa à qual ela se dedicou integralmente até obter o resultado desejado. Ele ainda lamentou que seu desaparecimento tenha impedido a continuidade da colaboração entre eles, porque estava programado um estudo de reações foto-alfa (tipo de reação de fotodesintegração na qual o núcleo atômico absorve radiação gama de alta energia e decai emitindo partículas alfa)32 com vários elementos, a maioria dos quais exigiria separação química.33 Naquela época Ana Rosa já temia por sua segurança. No dia 22 de abril de 1974 ela se encontrou com uma amiga que poderia auxiliá-la a obter autorização de seu chefe no IQ para uma licença médica e assim afastar-se por algum tempo da instituição. Esse encontro foi por volta das 11 h da manhã e ela disse à amiga que voltaria no início da tarde para irem juntas à Universidade, mas nunca mais voltou, nem foi vista novamente.
DESDE ABRIL DE 1974 O que aconteceu a partir do sequestro de Ana Rosa e Wilson em 22 de abril de 1974 é ainda objeto de averiguação, com depoimentos compondo um cenário que não está completamente desenhado. E talvez nunca o seja. A década de 1970 foi certamente a mais violenta por parte da repressão militar no Brasil. A grande maioria dos desaparecimentos e mortes motivados politicamente aconteceu nesse período e Ana Rosa tinha consciência do risco que corria, conforme depoimentos que podem ser encontrados no livro Kaddish9 e dados por pessoas que conviveram com ela. O próprio trabalho que desenvolvia no Instituto de Física era uma oportunidade de esquivar-se do endereço conhecido do IQ. Inicialmente, seu desaparecimento causou surpresa e deixou os amigos inseguros sobre como proceder porque ela poderia efetivamente estar em fuga, mas os acontecimentos dos dias que se seguiram não deixaram dúvidas sobre o que teria acontecido. Desde o dia 22 de abril de 1974 por volta da hora do almoço Ana Rosa e Wilson nunca mais foram encontrados. Pressionado, o governo do presidente Ernesto Geisel reagiu por meio de uma nota oficial de fevereiro de 1975, assinada pelo então Ministro da Justiça, Armando Falcão. Ele declarou que Ana Rosa e Wilson eram "terroristas" e estavam "foragidos". Com base nesse documento, a 46ª Reunião da Congregação do IQUSP, realizada em outubro de 1975, aprovou a indicação da Comissão Processante da Reitoria pedindo a demissão da docente por abandono de função, com 13 votos favoráveis e dois em branco. Em 1981, em resposta ao questionamento do Grupo de Trabalho sobre Desaparecidos Forçados ou Involuntários, ligado à Comissão de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), o governo brasileiro através do Ministério das Relações Exteriores oficializou a informação de que nada constava contra Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira, Joel Vasconcelos Santos, Ana Rosa Kucinski e Wilson Silva, que apesar de serem desaparecidos políticos da ditadura eram inocentes; a cúpula militar avalizou o comunicado oficial do Itamaraty.10 Somente mais de 10 anos depois, em 1993, um ex-cabo do exército declarou a uma revista de circulação nacional que Sergio Paranhos Fleury os prendeu e levou para a Casa da Morte em Petrópolis, onde teriam sido torturados e mortos.34 A Casa da Morte era um centro clandestino que ficou assim conhecido após as denúncias feitas por Inês Etienne Romeu à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB)-RJ, em setembro de 1979,35 relatando as sevícias que sofreu no período em que ficou confinada na Casa com outros presos políticos. Em 1995, o jornalista Bernardo Kucinski, encaminhou à reitoria da USP um pedido para a anulação da demissão de Ana Rosa. A instituição reconheceu a injustiça, porém, essa decisão não agradou à família. No livro K., de 2011, ele escreve que "Muitos anos depois, a Reitoria anunciaria de público a injustiça da demissão da professora. Mas nunca admoestou nenhum dos envolvidos, nunca resgatou suas dívidas com a família. Os presentes a essa reunião da Congregação nunca se desculparam".8 Em dezembro daquele ano, a Lei 9.140, promulgada pelo governo Fernando Henrique Cardoso, reconhecia a professora como desaparecida política e em 26/2/1996, quase 22 anos depois daquele fatídico 22 de abril, foi lavrada sua certidão de óbito.36 A Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva" instou o IQ a se posicionar e a se desculpar perante a família o que foi feito com a homenagem prestada em 2014 e descrita na Introdução deste texto. Em 12 de junho de 2023 o ex-delegado do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) do Espírito Santo Claudio Guerra foi condenado a sete anos de prisão por ter participado da ocultação de corpos durante a ditadura militar. Em declaração feita no livro Memórias de Uma Guerra Suja37 o ex-delegado afirmou que levou 12 corpos da Casa da Morte para serem queimados nos fornos da Usina de Cambahyba, localizada em Campos de Goytacazes (RJ), e dentre eles estavam os de Ana Rosa e Wilson, ambos com sinais claros de tortura. Tanto Ana como seu pai, Majer, que morreu sem 1976 sem saber o destino da filha, foram homenageados dando seus nomes a ruas de bairros periféricos da cidade de São Paulo; uma rua no bairro Senador Camará (Rio de Janeiro) também leva o nome da Professora morta.
CINCO DÉCADAS DEPOIS Cinquenta anos depois de seu desaparecimento, ainda não há certezas sobre os acontecimentos desencadeados com a prisão de Ana Rosa e Wilson em abril de 1974, mas muito foi revelado nas investigações da Comissão Nacional da Verdade, da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva" e da Comissão da Verdade da USP. A Universidade de São Paulo foi duramente fustigada pela ignomínia e barbárie perpetrada pela ditadura militar nas décadas de 1960 e 1970, com a morte e desaparecimento de 39 alunos, seis docentes e dois funcionários, o que corresponde a cerca de 10% do total de casos relatados no país naquele período. Relembrar a trajetória acadêmica de Ana Rosa é preencher o espaço imposto por seu desaparecimento forçado. É também um reconhecimento de que sua luta não foi em vão e que a frágil democracia precisa de cuidados permanentes.
AGRADECIMENTOS A autora agradece profundamente a colaboração inestimável de A. Domenice Silva e R. S. Mejia Claure (Chefe do Serviço de Graduação e do Setor de RH do IQUSP, respectivamente) por fornecerem muitas das informações utilizadas neste texto. Agradece da mesma forma a leitura cuidadosa, as críticas e sugestões feitas por E. J. H. Bechara, S. Schreier e M. L. A. Temperini. E. J. H. B. também gentilmente obteve e cedeu as imagens dos resumos mostrados na Figura 5.
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Editor Associado responsável pelo artigo: Nyuara A. S. Mesquita |
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