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Humphry davy nas páginas de periódicos brasileiros do início do século XIX Humphry davy on the pages of brazilian early - nineteenth century publications |
Luiz C. A. Barbosa*; Pedro G. M. Gomes; Carlos A. L. Figueiras
Departamento de Química, Instituto de Ciências Exatas, Universidade Federal de Minas Gerais, 31270-901 Belo Horizonte - MG, Brasil Recebido: 01/08/2024 *e-mail: lcab@outlook.com Humphry Davy (1778-1829) occupies a singular place in the history of science. His career flourished after the great systematizations carried out at the final decades of the eighteenth century and the early years of the following century. His many discoveries, both of a fundamental as well as of an applied nature, opened numerous pathways in chemistry. This paper aims to show how his research was followed attentively by many in Brazil, at a time when the country was just beginning to establish its very first institutions of higher education and scientific research. It is interesting to see how those new discoveries were avidly followed from a distance and the repercussions they were enjoying at such an early stage in Brazil as an autonomous state. INTRODUÇÃO O cientista britânico Humphry Davy nasceu no dia 17 de dezembro de 1778, em Penzance, uma pequena cidade portuária da Cornualha, na Inglaterra.1 No bicentenário de nascimento de Davy, a importância de seus trabalhos do ponto de vista econômico e social foi relatada em Química Nova.2 Em 2008, outra publicação nesta revista resume seus diversos trabalhos, com destaque para aqueles relacionados ao estudo das cores, e mais recentemente, a história do isolamento do potássio e do sódio por ele realizada foi discutida em detalhes.3 Apesar da importância histórica de Humphry Davy para o desenvolvimento da química e suas múltiplas aplicações, atualmente seu trabalho tem sido muito pouco discutido em nossos periódicos nacionais. Davy faleceu em 29 de maio 1829, na cidade de Genebra, Suíça. Quando em 1808 a corte portuguesa se instalou no Brasil e a imprensa foi criada no país, o cientista encontrava-se no auge de sua produtividade científica. Mesmo considerando as condições brasileiras, em que as primeiras instituições educacionais ou de pesquisa científica estavam em sua infância, os trabalhos de muitos químicos europeus eram divulgados no Brasil, quase que simultaneamente à sua aparição. Dado o grande número de artigos tratando de ciência e tecnologia veiculados nos periódicos publicados no Brasil durante a primeira metade do século XIX, escolhemos fazer um recorte tratando daqueles relativos a Humphry Davy, à época um dos mais célebres e produtivos cientistas britânicos.4 O presente estudo busca, então, apresentar os trabalhos de Davy e como esses se tornaram conhecidos e divulgados entre vários estudiosos no Brasil, em tempo real, coincidentemente com a publicação dos mesmos na Europa. Esta constatação evidencia eloquentemente como a penetração dessa nova ciência chegava ao nosso país, mesmo na ausência de universidades. Estamos aqui diante da comprovação de um aforisma do grande polímata que foi o Padre Antônio Vieira, no século XVII: "A maior gula da natureza racional é o desejo de saber".5 É importante mostrar inicialmente o papel de Humphry Davy na Química europeia de seu tempo. Ele se situa num período importante que sucede mais ou menos a fase das grandes sistematizações conceituais do século XVIII e mesmo do início do século XIX. Por isso se quer dizer aqui todo o grande desenvolvimento da Química pneumática do século XVIII, com a descoberta de gases distintos do ar atmosférico, como o gás carbônico (ou ar fixo), por Joseph Black, em 1754, o hidrogênio (ou gás inflamável), por Henry Cavendish, em 1766, o nitrogênio (ou mofeta), por Daniel Rutherford em 1772, e, finalmente, o oxigênio (ou ar do fogo, ou ar desflogisticado ou ar vital), cuja paternidade ainda hoje é discutida. No processo de descoberta do oxigênio consideram-se três momentos importantes. Carl Wilhelm Scheele foi o primeiro a obtê-lo, em 1772; em seguida, foi a vez de Joseph Priestley, em 1774, e, finalmente Antoine-Laurent Lavoisier, que no ano de 1776 demonstrou sua verdadeira natureza e seu papel como um dos componentes do ar atmosférico e como um dos elementos constituintes da água. É sintomático verificar o entendimento da química do oxigênio por esses três químicos a partir dos nomes que lhe deram, e que estão acima, até finalmente aparecer o nome atual, dado por Lavoisier que, no entanto, trazia um equívoco, ou seja, o de que esse seria o constituinte universal dos ácidos.6,7 É importante salientar como este trabalho foi importante, não como a descoberta ou síntese de um grande número de novas substâncias, mas como o ordenamento de alguns componentes e princípios fundamentais de toda a Química, sem os quais esta ciência não poderia desenvolver-se como de fato ocorreu. Este mesmo período fecundo na Química viu surgir uma nova nomenclatura sistemática,8 e o estabelecimento de várias leis fundamentais, tanto ponderais como volumétricas. Já no início do século XIX, surgiram quase simultaneamente a Teoria Atômica de Dalton,9 que possibilitou cálculos estequiométricos, e a Hipótese de Avogadro,10 embora esta última tenha sido negligenciada por cerca de meio século. Também no raiar do século XIX, somou-se ao arsenal de técnicas experimentais uma ferramenta que se tornaria imprescindível à Química, que foi a invenção das pilhas elétricas por Alessandro Volta.11 Em particular Humphry Davy imediatamente se pôs a usar a pilha elétrica em suas pesquisas, com êxito extraordinário, sobretudo no isolamento de elementos metálicos extremamente ativos, que não podiam ser reduzidos em solução, como os metais alcalinos e alcalino-terrosos. Após este período de grande efervescência científica em que a Química foi posta num formato que podemos reconhecer como moderno, seguiu-se uma atividade febril em que essas novidades foram amplamente aplicadas, tanto na execução de atividades de pesquisa fundamental, como de suas aplicações. É nesse contexto que surgirão duas figuras excepcionais, entre muitas outras, que foram Humphry Davy (1778-1829) na Inglaterra e Jöns Jacob Berzelius (1779-1848) na Suécia. Sua Química combinava aspectos que hoje denominaríamos inorgânicos, analíticos ou físico-químicos. A Química Orgânica, o ramo que se desenvolveria extraordinariamente ao longo dos oitocentos, ainda estava em seu nascedouro.12 Humphry Davy foi um verdadeiro Proteu dessa ciência dos primeiros anos dos oitocentos, tendo realizado muito em suas pesquisas fundamentais ou aplicadas e exercido uma imensa influência. Basta mencionar o papel que ele teve sobre a futura carreira de seu jovem auxiliar Michael Faraday, tão bom químico como físico, e que viria a ser o que se costuma apontar como o mais talentoso experimentalista e divulgador científico do século XIX. Davy é mais conhecido hoje por estudantes de química por seus estudos sobre eletrólise,3 tendo isolado, pelo uso dessa técnica, sob a forma elementar, os elementos sódio e potássio em 1807, além do cálcio, o magnésio, o bário, o estrôncio, e o boro, no ano de 1808. Ele também demonstrou que o cloro é um elemento, e não um composto, como se supunha. Em adição, existe uma longa controvérsia a respeito da prioridade do isolamento eletrolítico do lítio metálico realizado por Davy e pelo também britânico William Thomas Brande. O lítio foi descoberto em 1817 por Johann August Arfvedson (1792-1841), trabalhando em Estocolmo no laboratório de Berzelius, que não consegiu isolá-lo na forma pura.13 Os trabalhos de Davy e de Brande no isolamento do lítio metálico são quase simultâneos, embora haja discrepância na literatura a respeito das datas. Todavia, uma análise minuciosa dessa literatura parece favorecer a prioridade de Davy em 181814 e o trabalho de Brande em 1821.15 No mesmo período, aproximadamente, Davy atuou também em muitas áreas da química aplicada, conforme veremos.
OS TRABALHOS DE DAVY NOS PERIÓDICOS BRASILEIROS A primeira citação de que se tem registro do nome de Davy no Brasil ocorre em 1813, no Correio Braziliense,16 na rubrica Literatura e Sciencias. Trata-se de um anúncio sobre o livro de sua autoria intitulado Elements of Agricultural Chemistry, publicado inicialmente em 1813, que era então o mais completo trabalho sistemático existente sobre química agrícola (Figura 1). Esse livro foi muito influente e importante no estabelecimento de pesquisas nessa área da química. Muitos anos após a morte de Davy, o livro foi publicado de forma revisada, em 1846, por John Shier, professor de Agricultura da Universidade de Aberdeen, na Escócia. A nova edição contém informações sobre as novas descobertas em química agrícola, incluindo trabalhos de Justus Liebig e Jean-Baptiste Boussingault17 na Alemanha e na França, respectivamente.
Quando foi contratado pela recém-fundada (em 1799) Royal Institution, em 1802, um dos trabalhos que Davy deveria realizar consistia em apresentar uma série de palestras sobre os avanços da química agrícola, diante do Conselho de Agricultura da Inglaterra (Board of Agriculture). Durante os anos que se seguiram à sua contratação, ele apresentou essas palestras, que foram finalmente compiladas na forma de livro (Figura 2). O livro contém 8 capítulos (nomeados como Lectures I a VIII), além de um apêndice descrevendo resultados experimentais sobre a produção e valor nutritivo de gramíneas e outras plantas empregadas na alimentação animal. Os dados do apêndice foram obtidos pelo Duque de Bedford, ao qual Davy reconhece a contribuição e agradece logo na apresentação do livro, como se lê no original inglês, aqui traduzido:
Outro anúncio aparece no mesmo Correio Braziliense, na edição de 1819,19 desta vez divulgando o livro Treatise on Soils and Manures. O título completo do livro é: A Treatise On Soils And Manures: As Founded on Actual Experience, and as Combined With the Leading Principles of Agriculture (Figura 2). Observe-se que este livro havia sido publicado pelos editores T. Cadell e W. Davis, em Londres, e estava agora sendo divulgado no Brasil. O livro aparece com um autor anônimo, que se assina "Um Agricultor Prático". Nele se apresenta a doutrina de Davy sobre a química agrícola, deixando clara a importância de seus trabalhos relativos à aplicação da Química para o desenvolvimento da agricultura. Em 1821, uma outra edição do livro foi publicada em Filadélfia, Estados Unidos. O livro conta com 176 páginas, e um total de dez capítulos, os quais tratam dos mais diversos assuntos para melhorar a qualidade dos solos, incluindo a adição de calcário, diversos minerais e matéria orgânica, além de excrementos de animais diversos. Trata também de irrigação e drenagem dos solos. Ainda em 1813, o Correio Braziliense publica um artigo relativamente extenso (p. 239-242) na rubrica Literatura e Sciencias, sob o título "Alimento Vegetal".20 O artigo, que não é assinado, começa assim: "Sir Humphrey (sic) Davy tem arranjado uma lista das quantidades de matéria soluvel ou nutritiva, com a mucilagem, substancia sacharina, gluten ou albumen, que se contem em 1000 partes dos seguintes vegetaes: ..." Na sequência, uma tabela lista 35 tipos de vegetais, incluindo 8 espécies de trigo, cevada de Norfolk, aveia, centeio, fava comum, ervilha, batata, cenouras branca e vermelha, dentre outros. As análises realizadas envolvem: matéria nutritiva, mucilagem, açúcar, glúten. Embora não tenham sido apresentados os detalhes experimentais dos métodos de análises dos componentes dos vegetais, o texto demonstra que as análises foram realizadas com os materiais verdes e em estado natural. Após a tabela, segue-se uma discussão sobre o valor nutritivo de cada alimento. Especula-se como provável que o valor de cada vegetal, como mantimento, deve em grande parte ser proporcional às quantidades de matéria solúvel ou nutriente. Todavia, o autor completa que ainda assim não se podem utilizar essas quantidades como índices absolutos do valor de cada vegetal. A discussão dos dados da tabela na p. 241 do livro de Davy conclui que os fatos e dados apresentados "[...] merecem a séria atenção não somente dos lavradores, mas de todas as pessoas, que consideram a saude e nutrição entre as primeiras coisas da vida." Em seguida segue-se uma discussão específica, com detalhes sobre a composição das batatas, com inúmeros pormenores que não cabem aqui. Embora seja difícil avaliar o impacto dessas publicações no desenvolvimento da agricultura no Brasil do século XIX, as informações apresentadas sobre os trabalhos de Davy certamente despertaram o interesse dos agricultores brasileiros da época, considerando a completa ausência de literatura nacional sobre agricultura naquele período. Um dos primeiros e mais importantes tratados sobre o tema, o Manual do Agricultor Brasileiro de Charles Auguste Taunay, viria a ser publicado no Brasil em 1839.21 Esse interesse pela melhoria da qualidade dos alimentos continua, sendo retratado em uma pequena nota na Gazeta do Rio de Janeiro,22 que informa que "Sir Humphry Davy tem feito muitas experiências, das quaes resulta que, pondo de 20 a 30 grãos23 de magnesia commun em cada libra da pior farinha, se faz pão de excellente qualidade". Segundo o jornal, essa é uma nota curiosa extraída "das folhas de Londres". Quase 160 anos após a publicação da nota na Gazeta,22 em 1976, uma publicação internacional investiga os efeitos de fontes diversas de magnésio adicionado à farinha na qualidade do pão.24 Nesse trabalho, verificou-se que quando o óxido ou o carbonato de magnésio foram adicionados à massa em vez da esponja (procedimento de esponja-massa), o volume do pão e a qualidade geral melhoraram significativamente. Observou-se que fortificando a farinha com óxido de magnésio, empregando a proporçao 70/30 de esponja-massa, pães de boa qualidade foram obtidos. Em 1974, o Conselho Nacional de Pesquisas Americano sugeriu a fortificação de produtos de grãos de cereais com Mg, visando minimizar deficiências desse elemento na dieta humana.25 Em vista desses trabalhos, a pequena nota na Gazeta22 de mais de 200 anos já mostrava que Davy estava à frente de seu tempo, investigando aspectos relacionados à tecnologia de alimentos, que ainda impõe desafios aos pesquisadores modernos. Voltando ao ano de 1816, o Correio Braziliense publica um artigo anônimo que trata da invenção de lâmpadas de segurança para emprego nos trabalhos de minas de carvão.26 A matéria é dividida em duas partes, sendo a primeira intitulada "Descuberta importante para minas de carvaõ" (p. 182-183), seguida do "Relatorio sobre as lampadas de segurança nas minas de carvão, pelo Presidente do Committé" elaborado pelo Comitê nomeado pela Sociedade das Artes, de Londres, para analisar o assunto sobre as minas de carvão (p. 183-186). O autor, logo de início, informa que o jornal O Investigador Portuguez, em seu No. 2, p. 178, havia publicado um artigo que, se não fosse de pronto refutado, poderia causar grande prejuízo para seus leitores. A matéria trata da invenção, por Sir Humphry Davy,27 de uma lâmpada para ser utilizada em minas de carvão, para prevenir explosões causadas por gases inflamáveis presentes em muitas minas da Inglaterra naquele período. O artigo começa com uma forte crítica ao jornal português:
Ao final do texto menciona-se que a "Sociedade das Artes", em Londres, concedeu a um tal senhor Ryan uma "medalha de ouro e uma bolça com cem guinés", pela sua descoberta sobre o melhor método de ventilar as minas de carvão, e livrá-las do gás inflamável. O texto termina informando que no relatório que se segue são apresentados "fatos notorios, e que naõ há ninguem em Londres, que frequente as companhias dos homens de letras, que os possa ignorar, pois até correm impressos".26 O parecer final do Comitê, assinado por J. H. H. Holmes, enfatizou uma suposta falta de segurança da lâmpada de Davy. Em seguida, Holmes insinuou que a invenção de Davy seria apenas em uma alteração da lâmpada inventada pelo senhor Stephenson. Contrariamente a essa insinuação, não existe qualquer dúvida de que foi a lâmpada de Davy que, a partir de 1820, salvou a indústria de carvão mundial.28 Como a mineração de carvão no Brasil apenas teve início em 1860, no Rio Grande do Sul, muitos anos após a veiculação da matéria, esta certamente tinha apenas caráter informativo, sem qualquer potencial aplicação prática em nosso território.29 Retornando então ao papel de Davy na invenção da lâmpada de segurança para mineiros, vale destacar que, mesmo antes de ser convidado a investir seu tempo e talento na busca para uma solução do problema das explosões das minas de carvão, ele já era um dos cientistas naturais mais respeitados e populares da Inglaterra. Aqui cabe um parêntese para destacar que a popularidade de Davy entre os aristocratas e intelectuais era tamanha, que suas palestras apresentadas na Royal Institution eram muito concorridas. Isso resultava em engarrafamento de carruagens na entrada da rua Albemarle, no centro de Londres, que veio a se tornar a primeira rua de mão única na capital inglesa.30 Suas descobertas e inventos envolviam os mais diversos assuntos. Ele descobriu as propriedades anestésicas do óxido nitroso (N2O), também conhecido como gás hilariante; demonstrou que o cloro era um elemento; inventou o arco de carbono, que foi utilizado para a iluminação de ruas; estabeleceu os fundamentos da química agrícola; provou que a teoria dos ácidos de Lavoisier estava errada ao demonstrar que o ácido clorídrico não contém oxigênio.31 Com essa lista (que é apenas parcial) de trabalhos realizados, Davy foi procurado por autoridades locais na Inglaterra, incluindo o doutor Gray (reitor de Bishopwearmouth), que solicitaram sua ajuda sobre a questão das explosões nas minas de carvão. Em 15 de agosto de 1815, ele visitou minas na cidade de Newcastle, onde coletou amostras de gases (conhecido em inglês como fire-damp, que é constituído basicamente do gás metano), que foram levadas para seu laboratório para análises. Depois de minuciosos estudos sobre a combustão, expansão e capacidade dessa mistura de gases em explodir, Davy então projetou diversos modelos de lanternas ou lâmpadas de segurança. A capacidade de trabalho e engenhosidade de Davy era tanta, que apenas duas semanas após começar a investigar o problema, ele apresentou diante da Royal Society de Londres seu primeiro artigo.32 Mesmo após essa publicação inicial, ele continuou trabalhando na melhoria da lâmpada, realizando diversos experimentos sobre combustão de misturas gasosas, cujos resultados foram publicados em uma série de artigos em 1816 e 1817.33 Sem entrar em mais detalhes, a nosso ver, a crítica publicada no Correio Braziliense26 em 1816 faz um certo sentido. Em 1817, quando as lâmpadas de Davy já estavam em uso em diversos locais na Inglaterra, ele próprio reconheceu, em função de resultados experimentais, que caso elas fossem expostas a uma corrente de ar de seis a sete pés por segundo, a chama se moveria e poderia encostar na tela de metal. Caso isso ocorresse, a temperatura na tela seria aumentada ao ponto de poder provocar uma explosão, dependendo da concentração de metano no local. Davy chamou a atenção dos usuários sobre esse potencial risco, mas não temos conhecimento de nenhum registro de acidente durante o emprego de sua lanterna. Como temos visto até aqui, os interesses de Humphry Davy eram vastos. Sua celebridade era enorme, não apenas na Inglaterra, mas em muitos países da Europa, e até mesmo em locais distantes como a Russia e no longínquo Brasil.34 A Gazeta do Rio de Janeiro,35 em 25 de setembro de 1819, publicou uma série de notícias estrangeiras sobre vários países. Em uma dessas notícias, datada de 12 de junho em Paris, o jornal informa que:
Essa matéria trata de uma viagem que Davy havia realizado a Nápoles, onde ele estava investigando manuscritos carbonizados encontrados nas escavações locais. Sem apresentar detalhes, a nota informa que Davy havia conseguido desenvolver um método para desenrolar os manuscritos. Adiciona ainda que seria muito importante que ele terminasse esse trabalho, de modo a possibilitar que o público pudesse ter acesso a preciosidades literárias desconhecidas até então. Alguns meses mais tarde, ainda sobre a viagem de Davy à Itália, duas notas foram publicadas em jornais italianos, nos dias 28 de janeiro e 6 de fevereiro de 1820, em Nápoles. Essas notas repercutiram em outros países, e foram republicadas no Brasil, na edição de 27 de maio de 1820, na Gazeta do Rio de Janeiro,36 na seção "Notícias Estrangeiras" (Figura 3).
A nota de 28 de janeiro relata que no dia 25 desse mesmo mês, Davy subira o Monte Vesúvio para observar a erupção do vulcão que estava em atividade naquele período. Segundo a nota, ele fora acompanhado pelo Príncipe Herdeiro da Dinamarca, e pelo Secretário da Academia das Sciencias Italiana, o senhor Montruelli. A pequena nota na Gazeta do Rio de Janeiro,36 sem mais detalhes, informa que:
A outra nota, datada de 6 de fevereiro em Nápoles, tão curta quanto a primeira, mas ainda relacionada à visita de Davy a essa cidade, informa que:
Aqui poder-se-ia perguntar como um filósofo natural, envolvido com trabalhos relacionados ao desenvolvimento da agricultura, melhoria na qualidade de alimentos, proteção de cascos de navios, invenção da lanterna de segurança para mineiros, e tantas outras coisas aplicadas e práticas, se interessou por assuntos relativos à erupção de vulcões e a desenrolar papiros antigos. Aqui está a diferença entre um técnico e um verdadeiro filósofo natural, ou cientista, que se interessa por todo o mundo natural. As notas publicadas na Gazeta36 não são seguidas de qualquer comentário ou explicação adicional dos trabalhos realizados por Davy, e nem o motivo que o levou a visitar Pompéia. Qual seria o interesse do público no Brasil sobre esse tipo de pesquisa? O Brasil não tem, e nem tinha à época, nenhum vulcão ativo, assim também não parece haver qualquer relação dos papiros carbonizados de Herculano com alguma atividade de interesse à época em território nacional. Havia, contudo, um grande interesse das pessoas cultas por esses assuntos. Anos depois, isso será demonstrado pelas excavações arqueológicas mandadas fazer pela Imperatriz Teresa Cristina, uma princesa napolitana, nas ruínas de Pompéia, escavações que muito enriqueceriam o Museu Nacional do Rio de Janeiro. Todavia, não encontramos, até o momento, nos arquivos da Bibiloteca Nacional Digital, nenhuma outra publicação comentando os avanços dos trabalhos realizados por Davy nessas duas áreas. Por outro lado, uma pesquisa na literatura revelou duas comunicações sobre esses assuntos, uma lida por Davy diante da Royal Society em 15 de março de 1821, e outra alguns anos mais tarde, em 20 de março de 1828.37 No artigo de 1828,37 Davy relembra suas pesquisas em 1807 e 1808 que, empregando a eletricidade, resultaram na descoberta do sódio, do potássio e diversos metais alcalinos terrosos. Essas descobertas tiveram grande impacto nas pesquisas realizadas à época, mas também chamaram a atenção de Davy que os "álcalis e as terras" eram compostos por uma matéria inflamável unida ao oxigênio. A análise detalhada dos resultados dessas pesquisas o levou a concluir que:
Aqui está o germe do interesse de Davy pelas atividades vulcânicas. À época, não se sabia a origem do fogo expelido pelos vulcões, e Davy tinha agora uma teoria. Com base na hipótese que ele desenvolveu sobre a origem dessas chamas, a partir de 1812 ele passou a envidar esforços no sentido de obter provas experimentais para dar suporte à sua proposta, examinando de perto os fenômenos vulcânicos de ocorrência recente e antiga em várias partes da Europa. Com base em muitas outras análises realizadas de amostras obtidas do Vesúvio, Davy tinha plena consciência de que embora sua hipótese sobre a origem do fogo em vulcões fizesse sentido, considerando o conhecimento químico da época, ele admitia que a hipótese de que o interior do globo fosse composto de matéria fluida em alta temperatura fornecia uma explicação muito mais simples para esse fenômeno. Após a comunicação sobre esse tema à Royal Society em 1828,37 não temos notícia de que ele tenha realizado novos estudos nessa área, pois viria a falecer em 1829. Sobre a nota relativa a seus estudos para desenrolar os papiros encontrados em escavações feitas nas ruinas de Herculano,38 logo em 1821, ele apresentou diante da Royal Society um relatório de suas atividades nesse projeto. Baseado em seus conhecimentos das propriedades e reatividades químicas do gás cloro e do iodo, Davy diz no artigo de 1821: "[...] ocorreu-me que esses corpos poderiam ser usados de forma apropriada para tentar destruir a matéria que causou a adesão das folhas, sem a possibilidade de interferir com as letras do papiro, uma vez que a tinta dos antigos, como se sabe, tinha como base o carvão".37 Com essa hipótese de trabalho inicial, Davy realizou muitos experimentos, e finalmente demonstrou que o cloro funcionava como ele tinha previsto. Ele então conseguiu desenrolar parcialmente 23 manuscritos, de um total de 143 que investigou utilizando seu método. A maioria dos papiros, contudo, foi destruída pelo processo rudimentar usado. Lembremos que a nota publicada na Gazeta36 antecipava que em pouco tempo seria conhecido o conteúdo de cada rolo. Isso de fato se concretizou em parte, pois com o método desenvolvido por Davy, e outros, foi possível conhecer o conteúdo parcial de alguns dos papiros. Mas dada a dificuldade em lidar com esse material, muitas vezes com alto grau de carbonização, esse tipo de trabalho representa um grande desafio para pesquisadores nos dias de hoje. Duzentos anos após a publicação de Davy, em 2021, empregando técnicas modernas de inteligência artificial associadas a raios X, grupos de pesquisadores italianos e russos conseguiram ler o conteúdo dos papiros sem a necessidade de desenrolá-los.39 Esse trabalho é apenas mais um que revela o quanto Davy estava à frente de seu tempo, abordando problemas com um grau de dificuldade que mesmo com todo o avanço tecnológico ocorrido nos últimos 200 anos, ainda representam desafio para pesquisadores modernos. Conforme já comentado, uma das grandes especialidades de Humphry Davy era a eletroquímica, área de que ele é considerado um dos criadores. Nessa área, saiu publicado no Diário do Governo,40 na seção de Artigos não Officiaes - rubrica Noticias Estrangeiras - , uma matéria sobre os trabalhos que ele vinha realizando com sucesso na Inglaterra. A publicação de 1824, traz uma matéria intitulada "Inglaterra: A mais importante descoberta", que diz:41
Nesse artigo há referência aos trabalhos que Davy realizava visando resolver o problema da corrosão do cobre nos cascos dos navios ingleses. O primeiro desses trabalhos ele apresentou à Royal Society de Londres em 22 de janeiro de 1824, e publicou no periódico Philosophical Transactions.42 Nesse trabalho intitulado "Sobre a corrosão do revestimento de cobre pela água do mar; e sobre os métodos para prevenir este efeito, e sobre sua aplicação a navios de guerra e outros navios", Davy comenta, logo no início de sua apresentação, sobre os problemas causados pela corrosão dos revestimentos de cobre dos cascos de navios de guerra da armada britânica. A invenção de Davy, publicada nos jornais brasileiros, foi posta em prática em 1824, no navio de guerra inglês HMS Samarang. Apesar de ter funcionado conforme esperado, a Marinha Real abandonou o projeto devido a um inesperado efeito colateral negativo observado. Ocorreu que a proteção catódica, ao preservar o cobre da corrosão, favoreceu o crescimento de organismos marinhos que se incrustam ao casco, prejudicando a navegação. Sem a proteção, o cobre, ao ser oxidado, libera íons cobre que tem um efeito anti-incrustante. Esse resultado inesperado é mais um dos muitos exemplos de como o gênio humano é capaz de resolver alguns problemas técnicos de forma muito bem pensada, desenvolvendo tecnologias inovadoras e eficientes. Todavia, nem mesmo Davy tinha conhecimentos suficientes para prever o efeito inesperado do crescimento de organismos marinhos no casco do navio. Mas a ciência é assim, avança entre erros e acertos. Ao final, a técnica de proteção catódica acabou sendo aprimorada e é utilizada mundialmente em várias áreas, como na proteção de navios, submarinos, em edifícios em terra, e para evitar a corrosão de estruturas de ferro e de aço quando expostas a ambientes oxidantes.43 Mesmo após a morte de Davy, em 1829, seus trabalhos continuaram sendo citados em jornais publicados no Brasil. Um exemplo é o artigo intitulado "Remedio para evitar a corrupção dos forros de cobre nos Navios", publicado na edição de 1833 de O Auxiliador da Industria Nacional.44 O mesmo texto foi republicado três anos mais tarde no Jornal da Sociedade de Agricultura, Commercio e Industria da Provincia da Bahia, em 1836.45 Os conteúdos dessas duas matérias são muito parecidos ao que havia sido publicado em 1824 pelo Diário de Governo.41 Note-se que mesmo em 1836, o jornal afirma que "A Junta do Almirantado aprovou o remedio, depois de o haver feito experimentar em um Navio de Guerra". É evidente que o periódico brasileiro está apenas republicando uma matéria antiga, sem qualquer informação nova sobre os avanços ocorridos desde 1824. O autor da matéria nem mesmo se deu ao trabalho de se informar sobre o desfecho da decisão da Marinha Britânica, que suspendera o projeto pelos motivos que acabamos de descrever. Outras matérias foram publicadas sobre os trabalhos e a vida de Sir Humphry Davy em jornais brasileiros, assim como em livros. O exemplo mais notável pode ser lido no primeiro livro de Química publicado no Brasil por um brasileiro, João da Silveira Caldeira, em 1825, a Nova Nomenclatura Chimica, Portugueza, Latina e Franceza.46 Antes dele, vários brasileiros haviam publicado livros de Química no estrangeiro, e um inglês, Daniel Gardner, publicou no Rio de Janeiro o primeiro livro de Química escrito e impresso em nosso país, o Syllabus, ou Compendio das Lições de Chymica, em 1810.47 No livro de Caldeira, Davy é citado em várias ocasiões, mostrando como ele era conhecido de diversos profissionais da Química no Brasil. O carioca João da Silveira Caldeira (1800-1854) doutorou-se em Medicina por Edimburgo e estagiou depois em Paris com o químico Nicolas Vauquelin e com o mineralogista René Just Haüy. Ao retornar ao Brasil foi nomeado sucessor do inglês Daniel Gardner como professor de Química da Academia Real Militar, em 1825. Ele também foi o primeiro diretor do Museu Real, atual Museu Nacional, que havia sido fundado por D. João VI.48 O livro de João da Silveira Caldeira, hoje de grande raridade, merece um tratamento especial na presente discussão da possível influência de Humphry Davy sobre os químicos brasileiros de seu tempo. A Figura 4 mostra o frontispício do exemplar existente na Biblioteca Nacional.
O livro de Caldeira é riquíssimo de informações, embora lamentavelmente bastante desconhecido dos químicos e historiadores brasileiros. Entre outras coisas ele também mostra muito bem a postura dos intelectuais brasileiros no Primeiro Império. Em primeiro lugar, o título da obra é quase idêntico ao da obra do brasileiro Vicente Seabra, que havia publicado em Portugal em 1801 sua Nomenclatura Chimica Portugueza, Franceza, e Latina.49 Este livro, publicado em português por um brasileiro, é solenemente ignorado em quase toda a literatura, revelando o profundo corte nas relações intelectuais e científicas entre Brasil e Portugal após a independência, ao contrário do que ocorrera durante o período colonial. Ao contrário de Seabra, porém, que publicara seu livro antes do aparecimento da Teoria Atômica de Dalton, o livro de Caldeira, além de nomenclatura, tem uma longa seção em que discute estequiometria e composição centesimal de um enorme conjunto de compostos químicos, que foram possibilitados pelas descobertas de Dalton. No presente contexto, todavia, é importante salientar as vezes em que Humphry Davy, ainda em plena atividade, é discutido no livro de Caldeira. Outro aspecto notável e que até hoje nunca foi explicitado na literatura nacional, foi o fato de Caldeira descrever pela primeira vez no Brasil o papel de José Bonifácio na descoberta do lítio, de certa maneira ligando-o a Davy. Na época da publicação do livro de Caldeira, em 1825, José Bonifácio já havia concluído um papel fundamental no processo de independência do país, ao qual ele havia retornado em 1819. Em sua vida de 36 anos na Europa, ele desenvolvera uma exitosa carreira científica em vários países. Entre muitas descobertas e publicações, ele havia descrito mineralógica e quimicamente os minerais de onde se veio a obter um novo metal alcalino, o lítio. Esta descoberta de José Bonifácio era assunto corrente na literatura científica da época, e havia sido descrita tanto por Davy como por Berzelius. Após a independência, José Bonifácio tornara-se ministro de D. Pedro I, com o qual viria a desentender-se e, em consequência, viveu exilado na cidade francesa de Bordeaux entre o fim de 1823 e 1829, quando regressou ao Brasil. Provavelmente o livro de Silveira é a primeira publicação brasileira que apresenta José Bonifácio não como o importante político que foi, mas sim como o cientista de renome internacional, conhecido em todos os círculos científicos da Europa de seu tempo. Faremos aqui uma pequena amostragem da obra de Caldeira,46 expondo o conceito que ele fazia da Química, seguindo-se as referências que ele apresenta relativas aos trabalhos de seu contemporâneo Davy, com destaque para aquela que o liga indiretamente a José Bonifácio. Na, Introdução, Caldeira afirma: "A química é a ciência que trata da ação íntima que as moléculas dos corpos exercem entre si em distâncias infinitamente pequenas; do modo de obter separadamente as substâncias resultadas desta ação; e finalmente de fazer conhecer suas propriedades. A infinidade de corpos, de que se compõe (sic) os três reinos da natureza, sobre os quais vem a recair o objeto desta ciência; e bem assim a quantidade prodigiosa de substâncias novas descobertas a cada passo, principalmente nestes últimos tempos, em consequência do reforço dos agentes auxiliadores dos processos analíticos, admiravelmente aperfeiçoado, estava naturalmente apontando com o dedo aos Sábios a necessidade de inventarem sistemas, em que ordenada e metodicamente se arranjassem todos estes corpos, e suas denominações, de maneira que se facilitasse, o mais que fosse de esperar, aos novos adeptos, o estudo de uma ciência tão vasta, como dificultosa." (p. VII) Logo a seguir (p. XIII), nota-se a atualização de Caldeira46 em relação às crenças anteriores a respeito do cloro e do cloreto de hidrogênio.
O texto prossegue (p. XIII-XIV) com uma discussão sobre o ácido fluorídrico e o iodo, conforme os trechos seguintes:
Já na página seguinte (p. XVI), vem um trecho de enorme importância para nós, ao ligar os trabalhos de Davy com as pesquisas anteriores de José Bonifácio:
Segue-se o trecho mais interessante, ligando José Bonifácio a Humphry Davy e Berzelius:
Finalmente, na página XIX, Caldeira46 mostra o papel de Davy e de seus colegas Gay-Lussac e Thénard na diferenciação do cloro e do cloreto de hidrogênio, descartando definitivamente a ideia de que o ácido muriático contivesse oxigênio, como sustentara Lavoisier, e mostrando o caráter elementar do cloro:
A grande admiração e respeito que Davy desfrutava na Inglaterra também eram compartilhados por admiradores em vários países. No Brasil do século XIX, seus trabalhos inspiraram até mesmo políticos, que se referiam a ele em seus discursos, conforme pode ser visto nos Annaes do Parlamento Brazileiro (RJ), sessão de 6 de agosto de 1832.50 A sessão foi presidida pelo senador Antonio Paulino Limpo de Abreu, futuro Visconde de Abaeté, e na Ordem do Dia estava em discussão a anistia para o Maranhão com as emendas aprovadas nas sessões antecedentes.51 Debateram nessa sessão o senador Costa Ferreira, que foi o primeiro a se pronunciar. Ele foi seguido pelos senadores Ribeiro de Andrada,52 Pereira Ribeiro, Carneiro Leão, Carneiro Cunha, Rezende. Por último falou novamente o senador Andrada, que foi quem mais discursou. Em suas três falas, Martim Francisco Ribeiro de Andrada, irmão de José Bonifácio, e também cultor das ciências como o irmão, demonstrou sua vasta cultura científica, incluindo conhecimentos sobre os trabalhos de Humphry Davy. Ao defender que a anistia deveria ser concedida - posição que não era unânime - como pode ser claramente visto pela divergência elegante do Sr. Pereira Ribeiro - , Andrada faz referência ao trabalho de Davy com gases:
Andrada utiliza esta longa citação dos experimentos com gases realizados por Davy, para fazer uma comparação da economia física do homem como a economia moral. Ele compara o azoto (princípio que causa a morte física na ausência de oxigênio) ao despotismo na sociedade, que "[...] dá a morte aos que a compoem",50 enquanto compara o oxigênio, essencial para a vida, mas letal em excesso, com a liberdade, que segundo ele, se aumentada de forma ilimitada, traz consigo o frenesi e depois a morte. Apesar de todos os seus argumentos a favor da anistia, devido ao adiantado da hora, conforme relatado na ata da reunião, a decisão sobre a matéria foi adiada para outra sessão da Câmara.
CONSIDERAÇÕES FINAIS Logo após a chegada da corte portuguesa ao Brasil, em 1808, teve início a implantação da imprensa, com a criação de diversos periódicos. Esses periódicos, dentre os muitos assuntos de que tratavam, publicavam também notícias relativas aos desenvolvimentos científicos que ocorriam na Europa. Os trabalhos de químicos importantes, como Jean-Baptiste Dumas, Jöns Jacob Berzelius, Justus Liebig e Humphry Davy, eram amplamente divulgados na imprensa nacional. Este artigo buscou demonstrar como, mesmo em um ambiente ainda incipiente das atividades científicas e educacionais de nível superior no Brasil, havia indivíduos e instituições com conhecimento dos avanços contemporâneos ocorridos na Europa. Embora o período colonial tenha sido marcado por atividades científicas e técnicas meritórias no país, foi o período imediatamente posterior à emancipação política que testemunhou o surgimento de instituições oficiais e iniciativas individuais que ampliaram o desenvolvimento iniciado com a chegada da corte portuguesa ao Brasil. A análise, como estudo de caso, da divulgação dos trabalhos de Humphry Davy nos periódicos brasileiros da primeira metade do século XIX revela um panorama fascinante da recepção da ciência internacional no contexto local. A publicação de suas descobertas sobre química agrícola, alimentos e outros assuntos permitiu que os periódicos brasileiros não apenas ampliassem o horizonte científico nacional, mas também contribuíssem para manter uma pequena elite culta informada sobre o debate científico global da época. Embora não possamos avaliar o impacto dos trabalhos de Davy sobre o desenvolvimento da agricultura e da indústria nacional, podemos supor com certo grau de confiança que suas pesquisas na área de química agrícola certamente influenciaram produtores locais, haja vista o grande impacto que tiveram sobre os avanços ocorridos nesta área. A principal diferença, no que tange ao interesse pela ciência e pelas técnicas, no período que sucedeu à nossa emancipação política, foi o aumento significativo no intercâmbio científico entre o Brasil e o restante da Europa, superando o vínculo quase exclusivo com Portugal e sua aliada Inglaterra. Esse intercâmbio se intensificaria ainda mais durante o Primeiro Império, sobretudo com a França, com a criação da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional (SAIN) em 1827, no Rio de Janeiro. A SAIN publicou regularmente sua revista, Auxiliador da Indústria Nacional, de 1833 a 1892, que se tornou uma fonte preciosa para documentar muitas das atividades científicas e técnicas desenvolvidas no Brasil durante o século XIX.
AGRADECIMENTOS Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pelo contante apoio ao desenvolvimento de nossas pesquisas (CNPq 306873/21-4).
REFERÊNCIAS E NOTAS 1. Knight, D.; Humphry Davy: Science and Power; Cambridge University: Cambridge, 1991. 2. Ferreira, R.; Quim. Nova 1978, 1, 36. [Link] acessado em Novembro 2024 3. Beltran, M. H. R.; Quim. Nova 2008, 31, 181 [Link] acessado em Novembro 2024; Buci, J. R.; Porto, P. A.; Quim. Nova Esc. 2019, 41, 344. [Link] acessado em Novembro 2024 4. Uma pesquisa na BNDigital releva que o nome de Sir Humphry Davy às vezes aparece grafado como Humphrey. Também é importante destacar que existem outros personagens com o nome Humphry, como um tal Coronel Humphrey, que às vezes é citado nos jornais da época. Assim, cada uma das citações deve ser cuidadosamente analisada, e não apenas computada como se referindo ao eminente químico. 5. Leite, S.; Verbum 1948, 5, 107. 6. Filgueiras, C. A. L.; Lavoisier - O Estabelecimento da Química Moderna; Odysseus Editora: São Paulo, 2002. 7. Tosi, L.; Quim. Nova 1989, 12, 33. [Link] acessado em Novembro 2024 8. Carvalho, R. 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A.; Manual do Agricultor Brasileiro; Companhia das Letras: São Paulo, 2001. 22. Gazeta do Rio de Janeiro, No. 30, Sabbado 12 de abril de 1817. [Link] acessado em Novembro 2024 23. O grão (em inglês: grain) é uma unidade de medida de massa equivalente a um sétimo do milésimo (1/7000) da libra, que equivale a 64,79891 miligramas. 24. Ranhotra, G. S.; Loewe, R. J.; Lehmann, T. A.; Hepburn, F. N.; J. Food. Sci. 1976, 41, 952. [Crossref] 25. National Research Council; Proposed Fortification Policy for Cereal-grain Products; National Academy Press: Washington, 1974. [Link] acessado em Novembro 2024 26. Correio Braziliense, 1816, 182-186 (rubrica Literatura e Sciencias). [Link] acessado em Novembro 2024 27. Nesta matéria, como em várias outras de jornais diversos, o nome aparece grafado como Humphrey, e não Humphry. 28. Thomas, J. M.; Philos. Trans. R. Soc., A 2015, 373, 201428. [Crossref] 29. Germany, D. 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Tendo Davy se recusado a patentear seu invento, mesmo sendo incentivado a fazê-lo, ele foi reconhecido como grande benfeitor da humanidade por ter salvo muitas vidas, sem qualquer interesse econômico. Em agradecimento por sua invenção, recebeu do Tsar Alexadre da Rússia, em 1825, uma bandeja e uma tigela de prata como presente. 35. Gazeta do Rio de Janeiro, No. 77, Sabbado 25 de setembro de 1819 [Link] acessado em Novembro 2024; Davy, H.; Ann. Chim. Phys. 1819, 414. [Link] acessado em Novembro 2024 36. Gazeta do Rio de Janeiro, No. 43, Sabbado 27 de maio de 1820. Traz duas notas sobre Humphry Davy, sendo uma publicada em Nápoles em 6 de fevereiro e outra no dia 28 do mesmo mês. [Link] acessado em Novembro 2024 37. Davy, H.; Philos. Trans. R. Soc. London 1821, 111, 191 [Link] acessado em Novembro 2024; Davy, H.; Philos. Trans. R. Soc. London1828, 118, 241. [Link] acessado em Novembro 2024 38. Os papiros de Herculano correspondem a mais de 1.800 papiros encontrados na chamada "Vila Herculano dos Papiros", durante escavações feitas no século XVIII. Os papiros foram carbonizados pela erupção do Monte Vesúvio em 79 d.C. [Link] acessado em Novembro 2024 39. Stabile, S.; Palermo, F.; Bukreeva, I.; Mele, D.; Formoso, V.; Bartolino, R.; Cedola, A.; Sci. Rep. 2021, 11, 1695. [Crossref] 40. O Diário do Governo foi um periódico publicado inicialmente entre 1823 e 1824 e, em uma segunda, fase entre 1831 e 1833. A primeira edição veio à luz em 2 de janeiro de 1823, publicado pela Imprensa Nacional do Rio de Janeiro. Entre as duas fases, foi publicado o Diário Fluminense. Além de atos oficinais, o jornal tinha outras rubricas, onde publicava diversas informações não oficinais. 41. Imperio do Brasil: Diario do Governo 1824, 423 (Artigos não officiaes: Noticias estrangeiras). [Link] acessado em Novembro 2024 42. Davy, H.; Philos. Trans. R. Soc. London 1824, 114, 151. [Link] acessado em Novembro 2024 43. Thomas, J. M.; op. cit., 2015, p. 9. 44. O Auxiliador da Industria Nacional: Ou Collecção de Memorias e Noticias Interessantes(RJ) 1836, 32. [Link] acessado em Novembro 2024 45. Jornal: Sociedade de Agricultura, Commercio e Industria da Provincia da Bahia 1836, 39-40. [Link] acessado em Novembro 2024 46. Caldeira, J. S.; Nova Nomenclatura Chimica, Portugueza, Latina e Franceza, a que se Ajunta a Synonymia Chimica Portugueza e a Composição Chimica dos Corpos, Segundo os Melhores Autores: Obra Especialmente Destinada aos que se Dedicam ao Estudo da Chimica, Pharmacia e Medicina; Typographia Imperial e Nacional: Rio de Janeiro, 1825, p. 468. 47. Gardner, D.; Syllabus, ou Compendio das Lições de Chymica; Impressão Régia: Rio de Janeiro, 1810. 48. Filgueiras, C. A. L.; Origens da Química no Brasil; Editora da Unicamp: Campinas, 2015, p. 213. 49. Silva Telles, V. C. S.; Nomenclatura Chimica Portugueza, Franceza, e Latina; Typographia do Arco do Cego: Lisboa, 1801. 50. Annaes do Parlamento Brasileiro (RJ), sessão de 6 de agosto de 1832, p. 146-152. [Link] acessado em Novembro 2024 51. O parlamento estava tratando da revolta ocorrida na província do Maranhão, conhecida como Balaiada. Esta foi uma revolta popular entre os anos de 1831 a 1840 no governo regencial. A Balaiada mobilizou as camadas populares que viviam em extrema pobreza, sendo apoiada por escravos, vaqueiros, mestiços, pequenos agricultores rurais, artesãos, e fabricantes de balaios. 52. Martim Francisco Ribeiro de Andrada (1775-1844), naturalista e político brasileiro, irmão de José Bonifácio de Andrada. Ele foi presidente da Câmara dos Deputados e ministro da Fazenda no período do Império do Brasil. A sua cultura científica demonstrada em seus pronunciamentos era devida ao fato de ser graduado em Filosofia e Matemática pela Universidade de Coimbra. Infelizmente, esse tipo de cultura não é frequente de ser encontrada na maioria dos políticos atualmente, muitos dos quais inclusive negam o valor e o papel da ciência para o desenvolvimento e bem-estar da sociedade.
Editor Associado responsável pelo artigo: Nyuara A. S. Mesquita |
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