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Negacionismo científico: prática antiga e persistente ao longo da história Scientific denialism: an ancient and persistent practice throughout history |
Luiz C. A. Barbosa Departamento de Química, Universidade Federal de Minas Gerais, 31270-901 Belo Horizonte − MG, Brasil Recebido: 23/10/2024 *e-mail: calfilgueiras@gmail.com The search for scientific truth has long been the target of denialism, which obstructs progress and demands perseverance from those advocating new discoveries. While subjective preferences in fields such as literature, music, and the arts may lead to favoring works from the past, in science, denialism hampers advancement. This study highlights the persistence of scientific denialism across various fields, from the opposition to the new Gregorian calendar, the denial of Lavoisier's combustion theory, Berthelot's rejection of atomism, and resistance to van't Hoff's three-dimensional molecular structures, to recent opposition to covid-19 vaccines and the patronage of quackery during the pandemic. These cases, drawn from both universal and national histories, illustrate how such resistance to science has spanned centuries and continues to affect scientific progress. INTRODUÇÃO A busca pela verdade científica tem sempre sido alvo do negacionismo ao longo da história. A tenacidade de espíritos perseverantes é sempre necessária para afastar a oposição a muitas novas descobertas ou atitudes, num conservadorismo que se opõe ao progresso científico. Em certos campos de atividades humanas, como literatura, música ou artes em geral, é compreensível que se possam preferir obras do passado àquelas do presente, pois trata-se de uma escolha subjetiva, de gosto. Em ciência, porém, a situação é bastante diversa. O negacionismo surge em diferentes áreas de atuação humana, num conservadorismo bastante estudado por psicólogos e diferentes estudiosos da mente humana, como se mencionará mais à frente. Ele ocorre em qualquer época e lugar. Basta lembrar aqui a oposição negacionista às viagens marítimas dos portugueses do século XV, pelo temor da impossibilidade ou terríveis consequências de se aproximar ou cruzar a linha do equador, oposição que viria a ser brilhantemente vencida. Neste texto, contudo, não serão discutidos os aspectos ligados à psicologia dos negacionistas, nem tampouco as implicações epistemológicas do negacionismo. A abordagem será eminentemente histórica, percorrendo diversas situações, tempos e culturas. Embora inicialmente se pretendesse abordar o problema de um ponto de vista de história da química, logo ficou patente a necessidade de abordar também outras áreas, embora sem deixar de lado a problemática na química. Podemos mostrar a persistência do negacionismo científico em todos os campos da ciência, através de inúmeros exemplos de casos, tirados tanto da história universal como na história de nosso país. Neste texto não há qualquer veleidade de ser exaustivo, apenas de mostrar a ubiquidade do negacionismo no tempo e no espaço. Com esta finalidade serão abordados vários casos fora e dentro da química, começando com um que, a partir de considerações práticas, envolveu bom número de astrônomos e influiu diretamente sobre a vida das pessoas comuns. Ele diz respeito à formulação do calendário que usamos, o calendário gregoriano, baseado na Teoria Heliocêntrica de Copérnico, que foi instituído em 1582. Seguir-se-ão vários outros exemplos, até o combate recente à vacinação contra a covid-19 e o patrocínio de pseudomedicamentos para este último flagelo, como o uso equivocado de hidroxicloroquina e derivados, assim como do vermífugo para o gado, a ivermectina.1 A literatura dos últimos anos está repleta de textos tratando do negacionismo científico, que muitas vezes aborda também aquilo que se chama junk science, ou mesmo denialism ou science denial, isto é, negacionismo.2-4 Em artigo mais antigo em Química Nova, tratamos daquilo que se convencionou chamar de "ciência central", "ciência periférica" e "ciência marginal", ou "pseudociência".5 Bem recentemente, um artigo interessante foi publicado examinando o caso do negativismo científico do ponto de vista psicológico.6 Alguns conceitos e abordagens deste artigo merecem ser considerados, como o mito de que a ciência sempre conduz a verdades e certezas, contrapondo-se àquele de que toda a ciência não é mais que uma teoria ou conjunto de teorias. O negacionismo que daí resulta pode ser usado para desqualificar adversários ideológicos ou deslegitimar seus pontos de vista. Seria o negacionismo uma forma de ceticismo ou uma obstinação de ignorantes de baixa escolaridade? Nem sempre isso é verdade, pois pessoas inteligentes, com altos níveis sociais e de escolaridade podem também ser negacionistas, como se viu recentemente durante a pandemia de covid-19. O mesmo se verá no decorrer do presente artigo. De acordo com Gomes e Zamora,6 o negacionismo científico seria um "estado psicológico de autoengano" que serviria como proteção identitária à ideologia do negacionista. O tema abordado no presente artigo é, por sua natureza, bastante amplo, necessitando de controles firmes para não se tornar dispersivo. A partir de uma intenção inicial contemplando essencialmente o negacionismo na química, logo ficou patente que era preciso mostrar a ubiquidade do negacionismo, tanto geográfica como temporal e epistêmica. Por esta razão foram discutidos exemplos os mais diversos que ilustrassem essa enorme variação, cuidando-se, contudo, para não se cair em qualquer tipo de enciclopedismo. A pesquisa foi calcada tanto em fontes primárias como em fontes secundárias, buscando sempre os autores mais abalizados, tanto em português como em inglês, francês e alemão.
O NEGACIONISMO DO CALENDÁRIO A seguir relataremos vários casos históricos de negacionismo, começando pelo mais antigo daqueles aqui analisados, que até hoje tem repercussões importantes em diversos pontos do planeta, pois tem a ver com a introdução do calendário gregoriano, que usamos em nossas vidas diárias. Nicolau Copérnico publicou seu livro seminal De Revolutionibus Orbium Coelestium em 1543, dedicando-o ao Papa Paulo III. Copérnico morreu logo depois, e seu livro foi prontamente condenado como herético pelos chefes da Reforma Protestante, como Calvino e Melanchton, por considerá-lo contrário às Escrituras, onde inúmeros exemplos de passagens se referem à marcha do sol pelo firmamento, o que fornecia o argumento de que é ele que se movimenta em torno da Terra.7 É curioso que a Igreja Católica só viria a condenar a Teoria de Copérnico em 1616, décadas depois de sua condenação pelos chefes protestantes. Na verdade, o grupo chefiado pelo astrônomo papal Christoph Clavius (1538-1612) (Figura 1) utilizou os próprios dados astronômicos e matemáticos de Copérnico, os melhores disponíveis, para o estabelecimento do calendário que veio a ser promulgado oficialmente pelo Papa Gregório XIII em 1582. Este é o calendário que usamos ainda hoje, o calendário gregoriano.8-10
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O calendário anterior, juliano, havia sido promulgado por Júlio César em 45 a.C., a partir dos cálculos dos astrônomos alexandrinos da corte de Cleópatra. Todavia, este calendário apresentava uma distorção, que em 1582 já acumulava um erro de 10 dias a menos. Ora, para a Igreja o calendário é de suma importância, uma vez que é a partir dele que se definem as várias festas e efemérides religiosas, a partir da Páscoa, que por definição, cai sempre na lua cheia do primeiro domingo após o equinócio da primavera no hemisfério norte. Com o novo calendário, promulgado por Gregório XIII na festa de São Francisco de Assis de 1582, dia 4 de outubro, o dia seguinte passou a ser o dia 15 de outubro, omitindo-se 10 dias, e assim foi aceito em todos os países católicos da Europa. Nos países protestantes sua adoção levou bastante tempo, como na Inglaterra, onde o negacionismo existente dizia que o Papa havia "roubado" aqueles dias que deixaram de existir no registro histórico. O negacionismo britânico do calendário só foi vencido quando se evidenciaram as dificuldades e prejuízos que isso causava no trato com outros países, cuja maioria usava o sistema gregoriano. Assim, os dois calendários, juliano e gregoriano, coexistiram por muito tempo, e os ingleses só aceitaram o calendário gregoriano em 1752, 170 anos depois de sua promulgação. Hoje, a maioria dos países o adota como calendário civil, embora ainda se use o antigo calendário juliano em certas instâncias, como na Igreja Ortodoxa, cujas festas de Natal ou de Páscoa são celebradas bem depois das datas usuais no Ocidente. É por isso também que a Revolução Socialista da Rússia, que aconteceu em novembro de 1917 segundo o calendário gregoriano, é chamada de Revolução de Outubro, pois na época a Rússia ainda usava o velho calendário em todas as atividades civis, e consequentemente era outubro, mas no Ocidente já era novembro. Para sermos mais claros, a Revolução Russa teve lugar nos dias 6 e 7 de novembro de acordo com o calendário gregoriano, mas na Rússia, onde ainda vigia o antigo calendário juliano (até 1923), as datas correspondiam a 24 e 25 de outubro, numa defasagem maior que aquela verificada em 1582.11 É interessante notar que o famoso caso da condenação de Galileo Galilei pela Inquisição por abraçar a Teoria Heliocêntrica de Copérnico só ocorreu em 1633, décadas após a condenação dessa teoria pelos chefes protestantes. Embora Galileo tenha sido condenado a prisão domiciliar pelos últimos 9 anos de sua vida, anos antes, em 1600, Giordano Bruno, adepto do ponto de vista de Copérnico, tivera sorte bem mais cruel, tendo sido queimado em Roma pela Inquisição.12 Tanto o caso de Giordano Bruno como o de Galileo são, todavia, bastante complexos, por isso não serão discutidos aqui.13 O negacionismo científico pode, às vezes, ter consequências trágicas, como o Brasil também presenciou durante a última pandemia, em que pereceram, de acordo com dados do Ministério da Saúde, 700.000 pessoas até o dia 28 de março de 2023.14 O negacionismo parece também ser onipresente, insidioso e capaz de ressurgir como uma Hidra mitológica que, a cada vez que uma de suas cabeças é cortada, logo nasce outra, tão ou mais ameaçadora.
O NEGACIONISMO NA QUÍMICA Em todas as ciências frequentemente presenciamos episódios deploráveis de negacionismo, às vezes com as piores consequências. Serão aqui abordados três casos na Química dos séculos XVIII e XIX. Em períodos posteriores a ocorrência de negacionismo também é muito grande; todavia outros casos não serão abordados porque só se desejou mostrar alguns exemplos importantes de períodos mais remotos para mostrar como a ocorrência do negacionismo é frequente. Exemplos atuais são abundantes na literatura e no noticiário correntes.15 Em 1789, Lavoisier publicou sua obra máxima, o Tratado Elementar de Química, que pode ser considerado o grande marco de inauguração da Química moderna. Logo, contudo, Lavoisier foi alvo de contestações, algumas das quais verdadeiramente absurdas. Antes da obra lavoisiana, na segunda metade do século XVIII a explicação mais abrangente dos fenômenos químicos era dada pela Teoria do Flogisto,16 que explicava a combustão dos corpos como uma perda, pelo material que arde, de uma substância, o flogisto, que consistia no princípio da combustão. Assim, em decorrência dessa perda de material, um corpo que queima deixa muito pouco resíduo, como as cinzas do carvão, ou nenhum, como acontece com a combustão do etanol. Essa teoria conseguia dar explicações qualitativas para muitos desses fenômenos. Lavoisier, todavia, pesando rigorosamente tanto os corpos antes de arder, assim como todos os produtos da combustão, inclusive os gases produzidos, mostrou que o resultado do processo é sempre um ganho de massa, e nunca uma perda. Portanto, a combustão, antes de ser um processo de perda do imaginário flogisto, é na realidade a incorporação de algo ao material que arde, e Lavoisier demonstrou que esse algo era o oxigênio do ar. Assim, em lugar de uma explicação predominantemente qualitativa, as ideias de Lavoisier consagraram a necessidade de uma teoria ao mesmo tempo qualitativa e quantitativa. Um grande inimigo dessa nova química, por demais conhecido, foi o ilustre químico inglês Joseph Priestley, que defendeu até a morte, em 1804, a Teoria do Flogisto, sem jamais se curvar às ideias de Lavoisier, mas o caso de Priestley não será discutido aqui, pois ensejaria uma longa digressão que fugiria ao fio condutor deste texto.17 A nova teoria lavoisiana durante algum tempo permaneceu controversa, mas sua capacidade de elucidação mais satisfatória dos problemas químicos, especialmente do ponto de vista quantitativo, acabou por torná-la vitoriosa. A derrocada da Teoria do Flogisto, que era devida a um notável professor de Berlim, Georg Ernst Stahl, levou a diversas reações de natureza nacionalista na Alemanha. Aqui se pode discernir não apenas uma controvérsia, mas o nascimento de um negacionismo, às vezes de tom veladamente nacionalista, já que se opunham uma doutrina francesa, de um lado, e outra alemã, em contraposição. Em particular, os químicos alemães Friedrich Albrecht Carl Gren e Lorenz Crell manifestaram-se como inimigos radicais da nova química lavoisiana. Assim se expressou Gren no Journal der Physik em 1790, a respeito da nova nomenclatura lavoisiana: "os termos oxigênio, hidrogênio, azoto, etc., não designam substâncias reais, mas fantasmas provenientes da fantasia e da teoria."18 Já Johann Christian Wiegleb, em sua própria tradução do Tratado Elementar de Química de Lavoisier, assim se manifesta a respeito do oxigênio: "pois que o ar vital (oxigênio) não pode ser produzido a partir da cal de mercúrio (HgO), não há qualquer prova de que este gás tenha um papel na calcinação dos metais. [....] O oxigênio, é uma quimera, e todo o novo sistema francês é um monstro oriundo da imaginação."19 Na Alemanha, como assinala Bernadette Bensaude-Vincent,20 os opositores da Teoria do Flogisto se concentravam nas regiões favoráveis à Revolução Francesa, ao passo que a oposição à química lavoisiana adquire uma conotação de defesa do orgulho nacional alemão, que também pode ser comprovada nos escritos de Georg Christof Lichtenberg.21 Já no século XIX, encontramos um caso bastante curioso envolvendo o renomado químico orgânico francês Marcellin Berthelot (1827-1907) (Figura 2). Como adepto das ideias positivistas que fervilhavam em seu tempo, Berthelot não admitia a existência real dos átomos, mantendo essa crença até o fim de sua vida, em um exemplo extremo de negacionismo militante.
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É importante destacar que, atualmente, o conceito de átomo como base constitutiva de toda matéria é incontestável, tanto por cientistas quanto por leigos. Ao longo do século XIX, a maioria dos químicos já aceitava a teoria atômica de Dalton em sua forma operacional, que permitia a realização de cálculos estequiométricos, indispensáveis para explicar as inúmeras transformações químicas. Berthelot, no entanto, envolveu-se em acalorados debates negacionistas, repudiando a teoria atômica.22 Esse debate chegou às páginas das revistas científicas, como pode ser visto no artigo de mais de cinco páginas publicado nos Comptes Rendus de l'Académie des Sciences,23 de 1877, em que Berthelot apresenta uma longa argumentação sobre uma nota de Wurtz acerca da ‘lei de Avogadro e da teoria atômica'. Em sua resposta, Berthelot afirma:
Berthelot deixa claro nesse artigo que a teoria atômica não poderia ser ensinada nas escolas. Assim, a partir dos vários cargos importantes que ocupou na ciência e na política francesa da segunda metade do século XIX, como membro da Academia de Medicina, da Academia das Ciências, da Academia Francesa, Ministro da Instrução Pública, Ministro dos Negócios Estrangeiros, Berthelot tornou-se um verdadeiro entrave ao desenvolvimento da química orgânica industrial na França, enquanto a Alemanha presenciava um vigoroso florescimento dessa mesma Química. Segundo Mary Jo Nye,25 o anti-atomismo de Berthelot foi um esforço final de asseverar o lugar da química dentro da tradição da história natural e negar a possível redução da ciência química às leis da física do século XIX. De fato, dois famosos químicos franceses, ambos ganhadores do Prêmio Nobel, que foram Paul Sabatier e Victor Grignard reagiram às posições de Berthelot. Sabatier se queixava amargamente de que Berthelot lhe proibia o ensino em Paris em parte porque ele, Sabatier, favorecia a adoção da notação química moderna. Já Grignard lembrava que até a última década do século XIX Berthelot exercia uma influência despótica, proibindo que o ensino do atomismo substituísse aquele dos equivalentes no ensino secundário da França. É conveniente aqui deixar claro que o negacionismo científico é distinto da controvérsia, o primeiro leva a negação taxativa de teorias ou por vezes até de observações e fatos, muitas vezes trazendo em seu bojo preconceitos e radicalismos. Já a controvérsia implica em argumentação baseada em diferentes pontos de vista, que podem ser respeitáveis, a respeito de temas não suficientemente elucidados, ou que admitam mais de uma interpretação. Um caso importante de controvérsia na química, contemporâneo à questão relativa à existência real de átomos, foi o problema da posição relativa de alguns elementos na Tabela Periódica. Esta foi estabelecida segundo valores crescentes das massas atômicas, mas apresentava o problema das inversões aparentes nos casos de cobalto e níquel, e telúrio e iodo, para que os elementos fossem colocados nas colunas adequadas a suas propriedades químicas. A aparente contradição se desvaneceu a partir da descoberta da existência de isótopos, seguida pela ordenação dos elementos segundo o número crescente de prótons em seu núcleo, ou seja, a partir de números atômicos crescentes. Em sua biografia crítica de Berthelot, o livro Berthelot, Autopsie d'un Mythe,26 o químico e historiador francês Jean Jacques mostra como a ferrenha oposição de Berthelot às teorias de estruturas espaciais das moléculas propostas por Le Bel e van't Hoff, que dependiam da aceitação da existência real de átomos, abominados pelo Positivismo, resultou num grande empecilho ao pleno desenvolvimento da química francesa. Assim se expressa Jean Jacques:
Segundo a historiadora francesa Bernadette Bensaude-Vincent, a postura negacionista de Berthelot foi adotada por muitos químicos franceses, que, de acordo com ela, fizeram "um voto de castidade epistêmica". Como resultado, o ensino da teoria atômica foi proibido na França até as primeiras décadas do século XX. Em seu lugar, adotou-se a linguagem dos equivalentes químicos, pois acreditava-se que, assim, se evitava o uso de teorias especulativas.27 Embora a comprovação experimental da existência dos átomos só viesse mais tarde, com os experimentos de Jean Perrin em 1908, os químicos franceses continuaram por muito tempo pouco participativos na elaboração das novas teorias de ligação química, mesmo com as importantes contribuições científicas do próprio Jean Perrin, Prêmio Nobel de Física em 1926, e de Louis de Broglie, outro importante contribuidor da área, e também Prêmio Nobel de Física, em 1929. Todavia a aceitação da existência real de átomos, mesmo ainda como uma hipótese de trabalho, havia conduzido a química alemã a um progresso considerável na síntese orgânica.28 Como assinalou Bernard Pullman, citando Jean Perrin, em seu livro de 1912, intitulado Átomos: "há casos em que as hipóteses são na realidade intuitivas e férteis. Quando estudamos uma máquina, nós obviamente examinamos da melhor maneira suas partes visíveis, mas também tentamos descobrir os mecanismos invisíveis que explicam seu funcionamento. Intuir a existência ou propriedades de objetos além do alcance de nosso conhecimento, explicar um complexo visível com um simples invisível, eis aí o tipo de inteligência intuitiva que o atomismo nos proporcionou, graças a indivíduos como Dalton e Boltzmann."29 Como mostra ainda Pullman, Jean Perrin usando diferentes técnicas, conseguiu determinar 13 resultados para o número de Avogadro demonstrando assim que os átomos podiam ser "contados".30 Parte dessa influência francesa na química, que veio do século XIX, perdurou por boa parte do século XX, inclusive no Brasil, onde, ainda nas décadas de 1970 e 1980, conceitos de equivalente-grama eram ensinados em escolas e universidades. Esse exemplo ilustra como o negacionismo pode ter um efeito negativo de longo prazo no ensino das ciências. Ainda no final do século XIX, outro episódio de negacionismo científico foi registrado na Alemanha na área de química. Esse foi um período em que esta ciência se desenvolveu amplamente em diversas subáreas. Nessa época, a química consolidou-se como uma ciência de grande prestígio e aceitação pela sociedade, devido aos inúmeros benefícios práticos que proporcionava, sobretudo pela química orgânica industrial, que levou à criação, na Alemanha, de uma nova modalidade até então inexistente, a indústria química. A teoria estrutural, que representava as estruturas dos compostos orgânicos, já havia sido proposta e era amplamente utilizada pela comunidade química em toda a Europa. No entanto, nada se sabia sobre a forma tridimensional das moléculas orgânicas.31 Nesse contexto de vasto desenvolvimento científico, em 5 de setembro de 1874, o jovem químico holandês Jacobus Henricus van't Hoff (1852-1911) publicou um panfleto em holandês, que prontamente foi traduzido para várias outras línguas.32 van't Hoff apresentava suas ideias a respeito da organização dos átomos no espaço, conferindo uma forma tridimensional às moléculas. Sua teoria conseguia explicar a relação entre propriedades físicas dos compostos e suas constituições químicas.33 No ano seguinte, van't Hoff expandiu seu texto e o publicou em francês sob o título La Chimie dans l'Espace,34 no qual descrevia com mais detalhes suas ideias, que mais tarde seriam conhecidas pela denominação geral de "estereoquímica". Nesse texto, que teve ampla repercussão na comunidade química, van't Hoff apresenta suas ideias revolucionárias sobre a estrutura tetravalente assumida pelo carbono em seus compostos, o que permitia uma interpretação bastante satisfatória das estruturas possíveis dos compostos orgânicos, incluindo a explicação das isomerias geométrica e óptica. Essa publicação acabou por desencadear, em 1877, uma impiedosa sátira de Hermann Kolbe (1818-1884), então um dos mais eminentes químicos orgânicos alemães. A sátira foi publicada no Journal für Praktische Chemie,35 em 1877, onde o químico alemão se expressou da seguinte forma:
A crítica de Kolbe, um dos mais influentes químicos de sua época, revela um total preconceito contra as ideias de um jovem químico de apenas 22 anos, então professor na Escola de Veterinária de Utrecht. Dessa maneira, pode-se separar facilmente o que é negacionismo de controvérsia. A opinião expressa por Kolbe não se enquadrava como controvérsia, pois era taxativa e demolidora do novo conceito do carbono tetraédrico. Esse tipo de preconceito não é incomum no meio científico e, como todo negacionismo, deve ser combatido. No fim, se Kolbe tivesse sido mais receptivo e lido com atenção o trabalho do jovem químico, teria evitado o infortúnio de manchar sua biografia com esse episódio, uma vez que a teoria de van't Hoff se revelou absolutamente correta e tem sido utilizada desde então.
NEGACIONISMO E ANTI-NEGACIONISMO NO SÉCULO XIX No mesmo século XIX pode-se apontar um episódio bastante conhecido concernente à consequência da publicação da Teoria da Evolução por Charles Darwin, em seu livro A Origem das Espécies, publicado em novembro de 1859. Assim como a Teoria Heliocêntrica de Copérnico abalou a crença generalizada de que o planeta que habitamos seja o centro do universo, a Teoria da Evolução também abalou outra crença arraigada de uma total diferenciação entre o ser humano e outros animais, causando profunda comoção e oposição na época. É claro que aqui também se deu uma oportunidade importante para embates negacionistas de todo tipo. Um dos exemplos mais interessantes foi o famoso debate ocorrido em junho de 1860 na Associação Britânica para o Avanço da Ciência, em Oxford, opondo, de um lado, o naturalista Thomas Huxley, defensor das ideias de Darwin, e de outro o bispo de Oxford, Samuel Wilberforce, que as negava. Enquanto Huxley era apelidado de "O Buldogue de Darwin", Wilberforce era conhecido como "Soapy Sam", ou "Samuel Ensaboado", por sua enorme habilidade retórica em defender seus pontos de vista e esquivar-se dos ataques dos adversários. Nesse debate, ocorrido poucos meses depois da publicação de A Origem das Espécies, de Darwin, Wilberforce com sua fama de grande orador, pôs a Huxley a questão se ele sabia de que lado de sua ascendência vinha seu lado primata, ao que Huxley respondeu de forma memorável: "se a questão que se me coloca é se eu escolheria ter um miserável primata por avô ou um homem altamente dotado pela natureza e possuidor de grandes meios de influência e todavia emprega essas faculdades e essa influência no propósito de introduzir ridículo numa grave discussão científica, eu sem hesitar afirmo minha preferência pelo primata."36 É claro que nosso país não ficaria isento de atentados negacionistas de todo tipo em muitos equívocos relacionados à ciência. Gostaríamos de começar, todavia, com um episódio oposto: um caso notável de anti-negacionismo ocorrido em meados do século XIX, que se contrapõe a um outro episódio negacionista décadas depois, protagonizado pelo Conde Afonso Celso, e que será discutido mais à frente. O Rio de Janeiro foi o primeiro local onde se plantou café no Brasil, desde os tempos de D. João VI. O café era cultivado nos morros da cidade, que antes eram cobertos pela luxuriante Mata Atlântica original. Com o passar das décadas, porém, a devastação do ambiente se tornou catastrófica. Este processo foi magnificamente descrito, de forma visual e eloquente, pelo pintor francês Félix Émile Taunay (1795-1881), que veio para o Brasil ainda muito jovem, quando seu pai, o também pintor Nicolas Taunay (1755-1830) aportou no Rio de Janeiro como membro do grupo de artistas franceses que veio a ser chamado de Missão Artística Francesa. Félix Taunay retratou o processo de devastação das florestas cariocas há quase 200 anos, em sua magnífica e enorme (135 × 195cm) tela de 1830 intitulada "Mata Reduzida a Carvão", conservada no Museu Nacional de Belas Artes (Figura 3). O quadro de Taunay é bastante eloquente ao evidenciar o contraste entre a parte esquerda do campo, em que a floresta primeva já foi destruída por queimadas e cortes, e o lado direito, onde ainda subsiste a pujança da mata original. De qualquer maneira, este é o exemplo visual mais antigo que se conhece do processo de destruição da natureza brasileira que persiste ainda hoje, embora com força cada vez maior.
A consequência dessa devastação das florestas para o plantio de café no Rio de Janeiro foi a transformação daquela belíssima natureza em uma série de morros pelados, em que a própria agricultura não mais se viabilizava em virtude da topografia do terreno, em que o solo escorria com as enxurradas. O processo se deu muito rapidamente, em poucas décadas, em decorrência das particularidades da região. Essa situação estava a ameaçar as próprias fontes de abastecimento d'água da cidade. No romance Diva,37 de 1864, o escritor José de Alencar descreve a situação em seu tempo: "a rua, esse braço mil do centauro cidade, só anos depois espreguiçando pelas encostas, fisgou as garras nos cimos frondosos das colinas. Elas foram outrora, essas lindas colinas, a verde coroa da jovem Guanabara, hoje velha regateira, calva de suas matas, nua de seus prados. Caminhos íngremes e sinuosas veredas serpejavam então pelas faldas sombrias da montanha, e prendiam como num abraço as raras habitações que alvejavam de longe em longe o arvoredo." Aqui é importante chamar a atenção para uma atitude, que se pode chamar de anti-negacionista, mesmo que o termo não existisse na época, da parte do Imperador D. Pedro II e de vários de seus ministros e auxiliares próximos, como Luiz Pedreira do Couto Ferraz, Ministro do Império entre 1854 e 1856 e Senador entre 1867 e 1886, o importante artista Manuel de Araújo Porto Alegre, Guilherme Schüch, Barão de Capanema, e vários outros. A partir da constatação daquela situação de gravidade, capaz de vir a ter sérias consequências para a vida da capital do Império, o Imperador incumbiu o Major da Guarda Nacional Manoel Gomes Archer (Figura 4) de plantar na área devastada um total de cerca de 100.000 árvores, sobretudo de espécies da própria flora da mata original, durante um período de 13 anos a partir de 1862. Com o tempo esse conjunto de espécies vegetais recobriu aquela área desmatada, criando a belíssima floresta urbana que hoje é um dos orgulhos da cidade do Rio de Janeiro. A lição que se pode tirar desse episódio, nem sempre mostrado com a atenção que merece é que há mais de 160 anos já havia quem se preocupasse com o que hoje se chama de preservação ambiental ou mentalidade conservacionista. O contraste é imenso com muito do que se presencia no Brasil do século XXI.38
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O UFANISMO DE AFONSO CELSO, UM NEGACIONISMO DELIRANTE DA REALIDADE Poder-se-ia talvez dizer que o caso de Afonso Celso, a ser discutido a seguir, não se enquadraria numa discussão sobre o negacionismo. Todavia, ele se refere à construção de uma realidade paralela, que sorrateiramente se imiscui e pretende levar o leitor a aceitar um delírio tão fora de propósito que poderia ser classificado como a construção de uma pseudo-realidade. É neste sentido que apresentamos este caso, pois nele se pretende substituir a realidade por uma delirante ordem das coisas, que na verdade subverte o entendimento, criando um Brasil fictício, onde tudo é perfeito e sem igual no mundo. Desta maneira, é conveniente discutir o caso de Afonso Celso logo depois da questão da preocupação ambientalista precoce representada pelo reflorestamento da Floresta da Tijuca, várias décadas antes, num entendimento antagônico àquele do fundador do ufanismo brasileiro. Ao contrário e em evidente contraposição à mentalidade que prevaleceu em 1862, é importante falar aqui dos conceitos emitidos no livro mais vendido da primeira década do século XX no Brasil. Trata-se da obra de Affonso Celso de Assis Figueiredo Jr. (1860-1938), filho e homônimo do último Presidente do Conselho de Ministros do Império, o Visconde de Ouro Preto. O livro se intitula Porque me Ufano de meu Paiz, e foi publicado em 1900 com o seguinte subtítulo em inglês, em letras vermelhas: Right or Wrong, my Country.39 Este foi o maior "best-seller" do Brasil no início do século XX. Ele teve 10 edições, uma a cada ano a partir da primeira, de 1900, e dele foram vendidos 300.000 exemplares (Figura 5). Era leitura obrigatória nas escolas do Brasil, e seu autor passou a ser apontado como um verdadeiro exemplo de patriotismo. Sua fama cresceu tanto que ele veio a receber um título de nobreza do Vaticano, quando o Papa Pio X lhe concedeu o título de Conde Afonso Celso (Figura 6). Numa época em que a população do país era de cerca de 10 milhões de habitantes, dos quais cerca de 15% eram alfabetizados, o êxito do livro de Afonso Celso foi sem dúvida extraordinário.
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Seu sucesso levou à criação do neologismo "ufanismo" e inspirou o escritor português Albino Forjaz de Sampaio a publicar, em 1926, um livro do mesmo teor intitulado Por que me Orgulho de Ser Português,40 em que o autor confessa sua dívida para com o caminho aberto por Afonso Celso. Assim declara o autor português:
Vejamos então as características mais marcantes da obra de Afonso Celso. Para um leitor moderno é estarrecedor tomar contacto com os conceitos professados pelo autor, que em seu tempo foram tão gabados em toda parte no Brasil. Aqui foi seguida a terceira edição do livro, publicada em 1903. Nas páginas 31-32, lê-se:
Apenas este pequeno trecho serviria para contrapor as opiniões de Afonso Celso àquelas que levaram, quase meio século antes, a decidir pela recomposição da devastada Floresta da Tijuca. É impressionante contrastar as duas opiniões, de um ponto de vista de responsabilidade ecológica para outro de total ignorância e descaso da realidade ambiental. Afirma ainda Afonso Celso à página 51:
E pouco adiante:
O capítulo sétimo do livro trata dos chamados "nobres predicados do caráter nacional", e nele se encontra uma seção intitulada "Honradez no desempenho de funções públicas ou particulares", onde se pode ler, à página 86:
Na página 88, encontra-se o seguinte:
Em resumo, o Brasil é a perfeição absoluta, segundo o ponto de vista de Afonso Celso, que teve em toda a sua vida um papel de autoridade extremamente acatada na sociedade brasileira. Em termos do tema proposto no presente trabalho, poder-se-ia dizer que Afonso Celso e seu ufanismo representam um caso curioso de defender a inexistência de quaisquer defeitos ou qualidades negativas que possam existir no Brasil.
O NEGACIONISMO POSITIVISTA NO BRASIL Desde o início da República podemos apontar vários casos de negacionismo de enorme importância na vida do país. O Positivismo, doutrina criada na França por Augusto Comte (1798-1857) pretendia ter a única explicação racional da evolução da humanidade e erigia-se como a senda a ser trilhada junto com a ciência para alcançar um mundo feliz e justo. No final da vida, Comte fundou uma religião, a chamada Religião da Humanidade, em muitos aspectos copiada da Igreja Católica, mas desprovida dos conceitos de Deus ou de vida após a morte. Embora fosse uma religião ateia, ela conquistou muitos adeptos no Brasil, seu maior reduto no mundo, sobretudo no Rio de Janeiro, onde subsiste o belo templo positivista erigido no final do século XIX. Os chefes do chamado Apostolado Positivista, à frente da Igreja da Humanidade, tiveram um papel importante na propaganda e vitória da Proclamação da República no Brasil. O Positivismo depois de Comte se cindiu em duas correntes: a primeira era a chamada corrente ortodoxa, sob o comando de Littré, que foi menos influente no Brasil e predominou na Europa. Já a corrente de Pierre Lafitte, a que se filiaram Teixeira Mendes e Miguel Lemos no Brasil, foi aquela que se mostrava mais afim com suas ideias religiosas centradas na Religião da Humanidade, e que foi a corrente dominante no Brasil, sobretudo a partir da Igreja Positivista e seu apostolado, encabeçado por Miguel Lemos e Raimundo Teixeira Mendes. Embora o Positivismo tenha tido enorme influência na América Latina, o caso brasileiro é bastante distinto daqueles de outros países, como o México de Porfirio Dias, por exemplo.41-43 Ao lado da frente religiosa, o Positivismo também foi importante no meio militar, sobretudo graças à enorme influência de Benjamim Constant, o chamado "Pai" da república brasileira, e também na Escola Politécnica. Não pretendemos fazer uma longa digressão sobre o tema do Positivismo, que já foi bastante abordado em outra ocasião,44 mas chamar a atenção de um aspecto que nos interessa aqui, que foi o forte negacionismo do Apostolado Positivista com relação à fundação de universidades ou ao desenvolvimento de pesquisa científica original no país. Um dos mais profundos estudos sobre o Positivismo no Brasil, resultado de longas pesquisas no país pelo historiador, filósofo e sociólogo francês Paul Arbousse-Bastide, é o volume intitulado Le Positivisme Politique et Réligieux au Brésil,45 só publicado após a morte do autor. Em sua obra, Arbousse-Bastide cita a opinião de Raimundo Teixeira Mendes, um dos chefes do Apostolado Positivista, sobre a pesquisa científica em sua obra A Universidade, uma coletânea de artigos publicados na imprensa. O trecho de Teixeira Mendes expressa bem a hostilidade positivista ao desenvolvimento de pesquisa no Brasil:
O texto citado de Teixeira Mendes nega qualquer veleidade de realizar pesquisa científica no Brasil, uma vez que outros países já se dedicavam a isso. Já o outro chefe do apostolado, Miguel Lemos, assim escreveu em dezembro de 1881, negando a necessidade de se criar uma universidade no Brasil, que até então só dispunha de sete escolas superiores, mas nenhuma universidade plena:
Estes dois exemplos já são suficientes para mostrar a hostilidade do Apostolado Positivista para com a pesquisa científica e as universidades. É sintomático que as universidades no Brasil só tenham de fato sido criadas quando o poder positivista já havia declinado significativamente.
O NEGACIONISMO NA SAÚDE PÚBLICA O negacionismo, porém, sempre esteve vivo e presente numa enorme variedade de disfarces. Uma dessas versões, de consequências trágicas para a população, foi a ferrenha oposição de políticos inescrupulosos a atividades de saúde pública no início do século XX. O Presidente Francisco de Paula Rodrigues Alves (1848-1919), que governou o país de 1902 a 1906, foi um grande entusiasta dos programas de saúde pública propostos e levados a cabo por uma plêiade de médicos e pesquisadores como Oswaldo Cruz, Adolpho Lutz, Emílio Ribas, Vital Brasil e outros. Um dos problemas enfrentados por aqueles pesquisadores foi a varíola, enfermidade responsável por um grande número de óbitos em todo o país. A vacina antivariólica já existia desde o final do século XVIII, mas não era na prática aplicada no Brasil. Durante o ano de 1904 houve um grande debate no país, que se viu contaminado pela política, a respeito da lei que se desejava implantar, tornando obrigatória a vacinação antivariólica. Os opositores de Rodrigues Alves tornaram-se inimigos declarados da vacina, numa mistura perversa de política com tratamento de saúde. A celeuma foi enorme e durou quase todo o ano, mas finalmente a lei foi aprovada, o que resultou numa revolta popular de grandes proporções, com a participação de políticos e militares, com mortos, feridos e destruição material generalizada na capital do país. Para chamar a atenção do envolvimento dos políticos, basta transcrever trecho de um discurso pronunciado na tribuna pelo Senador Ruy Barbosa, homem de grande projeção no país, que em sua vida foi por quatro vezes candidato a Presidente. Assim discursou equivocadamente o negacionista Ruy a respeito da vacina:
Durante a crise da vacina, o Senador Rui Barbosa não foi a única voz contrária à ciência. Talvez ainda mais refratários ao processo de vacinação fossem os Senadores Barata Ribeiro e Lauro Sodré, este último, então tenente-coronel do Exército. Esses senadores incitavam a população contra a vacinação obrigatória, visando, por questões políticas, desestabilizar o governo do presidente Rodrigues Alves. Lauro Sodré afirmava que a obrigatoriedade da vacina era inaceitável, defendendo que o povo tinha o direito de resistir "a bala".48 Logo após a aprovação da Lei No. 1.261,49 de 31 de outubro de 1904, Barata Ribeiro rebelou-se, discursando na sede do Senado, no Palácio dos Arcos, com as palavras: "...mandarei fechar o portão da minha casa, e lá só penetrarão os vacinadores para vacinar meus filhos e netos se passarem por cima do meu corpo morto." Com tantos negacionistas da ciência inflamando a população, a cidade foi tomada por depredações generalizadas, conhecidas por "Revolta da Vacina". A anarquia prolongou-se por cinco dias, e os alvos passaram a ser os serviços públicos, resultando na queima de vários bondes, derrubada de árvores, levantamento de barricadas, entre outros atos de vandalismo. Apesar de o governo ter contido os manifestantes à força, com prisões e até mortes, a Lei da Vacina foi revogada em 16 de novembro de 1904. A consequência desastrosa dessa política negacionista foi a ressurgência, em 1908, de um novo surto, resultando em quase 10 mil mortos, o que levou a população, espontaneamente, a se vacinar.50 Apesar de sua postura negacionista, anos após a revolta, Ruy Barbosa retratou-se e reconheceu a importância do trabalho de Oswaldo Cruz, que faleceu prematuramente aos 44 anos de idade, em 11 de fevereiro de 1917. Em um discurso proferido na sessão cívica de 28 de maio de 1917, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, em homenagem a Oswaldo Cruz, Ruy exaltou todas as qualidades do falecido médico e cientista. O discurso foi publicado na íntegra, em 1999, pela Fundação Casa de Ruy Barbosa, com prefácio de Carlos Chagas Filho, o qual afirmou:
O episódio de negacionismo em relação à vacinação antivariólica não se esgotou ali e continua vivo até hoje, manifestando-se na hostilidade frequente a diversos tratamentos profiláticos, sobretudo vacinas, como foi evidente na tragédia da pandemia de covid-19. Os eventos ocorridos nesse período são narrados de forma abrangente e magistral pelo professor Luiz Carlos Dias, que em magnífica obra recente busca alertar a população para os graves perigos da desinformação, especialmente em questões relacionadas à ciência. Esta é uma obra que provavelmente se tornará um clássico no tema.52,53
CONCLUSÕES O negacionismo continua vivo em várias áreas e só existe uma forma de combatê-lo com eficácia, que é a divulgação e a discussão do conhecimento científico da forma mais ampla e livre, abordando sem preconceitos os vários pontos de vista dos problemas que surgem. Para ser eficaz isso depende de educação científica, tanto no ensino formal nas escolas e universidades, por parte dos professores, como para toda a população, num processo contínuo e sem trégua contra a desinformação, a superstição e a pseudociência.
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