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Estudo do teste de Scott via técnicas espectroscópicas: um método alternativo para diferenciar cloridrato de cocaína e seus adulterantes Study of Scott test using spectroscopic techniques: an alternative method for detecting cocaine hydrochloride and its addulterants in street drugs |
Vitor N. ConceiçaoI; Lindamara M. SouzaII; Bianca B. MerloIII; Paulo R. FilgueirasIV; Ronei J. PoppiIV; Wanderson RomaoI,II,*
IInstituto Federal do Espírito Santo, 29106-010 Vila Velha - ES, Brasil Recebido em 12/02/2014 *e-mail: wandersonromao@gmail.com Cocaine is usually seized mixed with a wide variety of adulterants such as benzocaine, lidocaine, caffeine, and procaine. The forensic identification of cocaine in these street drug mixtures is normally performed using colorimetric testing kits, but these tests may suffer from interferences, producing false-positive results. Here, we describe the use of analytical techniques including attenuated total reflection Fourier transform infrared (ATR-FTIR) and ultraviolet-visible (UV-VIS) spectroscopies to distinguish between cocaine and other adulterants (lidocaine, promethazine, powdered milk and yeast) that yield positive results on the Scott test using the thiocyanate cobalt reagent. A further 13 substances were also analyzed using the Scott test. INTRODUÇÃO A cocaína é uma droga estimulante do Sistema Nervoso Central (SNC) e um potente anestésico local, cujos efeitos apresentam curta duração e dependem do modo de consumo, ocasionando posterior estado de depressão. Ela é definida como um alcaloide tropânico (apresenta em sua estrutura o núcleo tropano e são agentes anticolinérgicos, inibindo a ação da acetilcolina em efetores autônomos inervados pelos nervos pós ganglionares colinérgicos e da musculatura lisa, que é desprovida da inervação colinérgica1) e é extraída das folhas do vegetal Erytroxylum coca. A cocaína pode ser consumida como sal, cloridrato de cocaína, ou na forma de base, o crack.2,3 O cloridrato de cocaína é um sal solúvel em água e obtido na forma de pó. Sua administração pode ser por aspiração ou via intravenosa. Já o crack apresenta-se como pedra e é pouco solúvel em água, mas é facilmente volatilizado quando aquecido.2 Segundo o relatório de 2011 da Organização das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC), a cocaína é a segunda droga mais consumida em todo o mundo. Como consequência, o tráfico de drogas vem desestruturando a sociedade moderna em relação aos aspectos sociais e econômicos como a segurança, saúde, violência e qualidade de vida.4 O consumo de cocaína vem aumentando significativamente na América do Sul, onde estimativas de 2011 da UNODC mostram que a América Latina, Caribe e a África são responsáveis por 36% do total de usuários de cocaína. A ONUDC estima ainda que 17 milhões de pessoas usaram cocaína em 2011. Esse número corresponde a 0,37% da população mundial com idade entre 15 e 64 anos.5 O Brasil é um país de fronteira com os três principais países produtores de cocaína: Bolívia, Colômbia e Peru. Além disso, a sua longa costa litorânea pode facilitar o acesso ao oceano Atlântico, favorecendo, assim, o tráfico de drogas para a Europa e a África. O Brasil ainda se destaca como sendo o país com o maior número de usuários de cocaína entre os países da América do Sul, atingindo um total de 900 mil usuários.4 A identificação e quantificação da cocaína, bem como de seus adulterantes, caracterizam o perfil químico das substâncias apreendidas. A cocaína é uma droga amplamente estudada quando associada a matrizes biológicas (sangue, urina, cabelo, suor e saliva)6-8. Contudo, a pesquisa relacionada a estudos de inteligência que visam mapear e identificar o perfil químico de apreensões ainda é pouco explorado,9-11 principalmente na região da América do Sul. A identificação da cocaína como droga bruta é comumente realizada por testes colorimétricos (utilizando como reagente tiocianato de cobalto - teste de Scott)12 e por testes cromatográficos (análises de cromatografia de camada delgada e cromatografia gasosa).9,13-16 O teste de Scott, amplamente utilizado para identificar o cloridrato de cocaína em campo e em laboratório como pré-teste (ou triagem), foi criado por Scott em 197317 e modificado por Fasanello e Higgins para que pudesse ser aplicado para o crack.18 O teste de Scott é realizado utilizando uma solução de tiocianato de cobalto em meio ácido, que na presença de cocaína (B), produz um complexo de cobalto II de coloração azul, Equação 1.
Aditivos químicos como adulterantes e diluentes podem ser encontrados misturados à cocaína, fornecendo, em alguns casos, resultados falso-positivos. Os adulterantes são substâncias, geralmente anestésicos, usados para imitar ou aumentar o efeito da droga sobre o indivíduo19. Entre os adulterantes mais encontrados estão: lidocaína (anestésico local - similar à cocaína), cafeína (estimulante), fenacetina (antipirético e analgésico) e ácido bórico (parece com cocaína e age como anestésico). Além desses, podem ser encontrados outras substâncias como: levamisol (apresenta sinergia estimulante com a cocaína), procaína (anestésico local), hidroxizina (anti-histamínico), entre outros. Diferente dos adulterantes, os diluentes não possuem sinergismo ou efeitos similares ao efeito da cocaína, mas são usados para aumentar o volume do produto final. Os diluentes mais encontrados são amido, açúcares, carbonatos, bicarbonatos e talco4. Entre esses aditivos, lidocaína, derivados de alimentos e outras drogas ilícitas como heroína e derivados do ópio podem fornecer resultados falso-positivos ao teste de Scott.2 Na literatura existem poucos estudos que descrevem as diferenças entre o complexo de cobalto formado pelo alcaloide tropânico e os interferentes.9,12,20 Neste trabalho, técnicas espectroscópicas na região do ultravioleta e visível (UV/VIS) e do infravermelho com transformada de Fourier e acessório de reflexão total atenuada (ATR-FTIR) são usadas para estudar a formação do complexo de cobalto pelo alcaloide tropânico e os interferentes. A espectroscopia na região do UV/VIS está associada às transições eletrônicas, nas quais elétrons são promovidos de um estado de mais baixa energia para outro mais energético. A transição mais provável ocorre entre o elétron do orbital ocupado de maior energia (HOMO) para o orbital desocupado de menor energia (LUMO). Entre as possíveis transições estão n→π*, n→σ*, π→π*, σ→π* e σ→σ*. Em uma análise de espectroscopia na região do UV/VIS as intensidades das radiações transmitidas e absorvidas são detectadas pelo equipamento e a quantidade absorvida é calculada. A concentração do analito pode ser determinada a partir da Lei de Lambert-Beer.21 Por outro lado, a técnica de ATR-FTIR analisa a interação da matéria com a radiação eletromagnética na região do infravermelho (variando de 12 800 a 670 cm-1). Quase todos os compostos que fazem ligações covalentes absorvem em várias frequências na região do IR (próximo, médio ou distante), entretanto, a mais empregada é a região do IR médio (4000 a 200 cm-1). Esta técnica baseia-se no fato de que as ligações químicas das substâncias possuem frequências de vibração específicas que correspondem a níveis de energia vibracionais bem definidos caracterizando ligações e, consequentemente, os grupos funcionais presentes nas moléculas.22 Em muitos casos, podem ser realizadas análises quantitativas por meio desta técnica, considerando-se que a resposta do sinal obtido pelo espectro de FTIR pode ser associada à concentração do analito na amostra. Em FTIR, o acessório de ATR é bastante empregado para análise de substâncias no estado sólido, onde um feixe de radiação passa de um meio mais denso (cristal de seleneto de zinco, por exemplo) para um meio menos denso (amostra) ocorrendo o processo de reflexão. A fração do feixe de luz incidente é refletida e sua intensidade aumenta de acordo com o ângulo de incidência. Este dispositivo é caracterizado pelas múltiplas reflexões da radiação do IR que ocorrem entre o cristal e a amostra.21 Este trabalho tem como objetivo avaliar o teste de Scott para amostras de cocaína e 17 padrões de aditivos, normalmente apreendidos pela polícia civil brasileira. Os resultados positivos serão explorados usando técnicas espectrofotométricas na região do UV-VIS e infravermelho médio com transformada de Fourier e acessório de ATR. Adicionalmente, misturas entre amostras de cocaína (com baixo teor de contaminantes) e potenciais interferentes do teste de Scott foram feitas e quantificadas por ATR-FTIR aliada a ferramentas quimiométricas.
PARTE EXPERIMENTAL Materiais e reagentes Uma solução de tiocianato de cobalto (solução de cloreto de cobalto hexahidratado e tiocianato de potássio, 99,0%, Vetec Química Fina Ltda, Rio de Janeiro) foi adquirida para realização do teste de Scott. Uma solução de acetato de etila (99,5%, UV/HPLC, Vetec Química Fina Ltda, Rio de Janeiro) foi usado para as análises de espectroscopia na região do UV-VIS. Os padrões usados foram fenacetina (98,0%, grau HPLC, Sigma-Aldrich, São Paulo); propilparabeno (Ueno Fine Chemical, São Paulo); carboximetilcelulose (99,7%, All Chemistry do Brasil Ltda, São Paulo); metilparabeno, benzocaína e lidocaína (99,0%, Vetec Química Fina Ltda, Rio de Janeiro); lactose (99,8%, Químibrás Indústrias Químicas S.A, Rio de Janeiro); ácido bórico (99,8%, Minera Santa Rita, São Paulo); cafeína anidra (98,5%, Bandeirante Brazmo Indústria e Comércio Ltda, São Paulo); manitol (Brenntag Química Brasil Ltda, São Paulo); e bicarbonato de sódio (98%, Química Geral do Nordeste, Bahia). As amostras de biscoito de leite, leite em pó (Nestlé Confectinery), amido (Maisena, Unilever, São Paulo), fermento (Royal, Kraft Foods Brasil, São Paulo) e trigo (Regina, Buaiz Alimentos, Espírito Santo) foram adquiridas em estabelecimentos comerciais. Análise por via úmida - Teste Scott As amostras de droga bruta apreendidas foram fornecidas pelo Laboratório de Química Legal da Superintendência da Polícia Civil do Estado do Espírito Santo. O teste de Scott foi aplicado a uma amostra de rua de cocaína (contendo cloridrato de cocaína e confirmada por CG-EM) e 17 aditivos químicos como adulterantes (benzocaína, cafeína, fenacetina, lidocaína, metilparabeno, prometazina e propilparabeno) e diluentes (ácido bórico, amido, bicarbonato, biscoito, carboximetilcelulose, fermento, lactose, leite em pó, manitol, e trigo). Utilizou-se 400 µL da solução de tiocianato de cobalto para solubilização de 20 mg de cada sólido. O resultado positivo foi confirmado pelo aparecimento da coloração azul. UV-VIS Para as análises espectroscópicas na região do UV-VIS foram utilizadas as soluções que forneceram resultados positivos no teste de Scott. Cada solução foi diluída em 1 mL de acetato de etila (grau PA, Vetec Química Fina Ltda, Brasil). A fase orgânica obtida foi centrifugada, sendo novamente diluída em acetato de etila (100 µL do sobrenadante foi diluído em 3 mL de acetato de etila). As análises foram realizadas utilizando um espectrofotômetro de UV-VIS (Perkin Elmer, modelo Lambda 45, USA), no modo de feixe duplo, na região de 200 e 700 nm, com um total de 64 varreduras e uma resolução de 4 cm-1 para cada espectro. ATR-FTIR As análises de FTIR foram realizadas por um instrumento modelo Spectrum 400 MID/NIR FTIR com acessório ATR para aquisição dos dados. Os espectros de ATR-FTIR foram adquiridos no modo single, com resolução de 4 cm-1, na região de 4000 a 500 cm-1 e registrados com uma média de 16 varreduras. Três tipos de estudos foram realizados: i) análise de soluções do complexo de cobalto com os ligantes que forneceram resultados positivos no teste de Scott (cocaína, fermento, leite em pó, lidocaína e prometazina); ii) misturas binárias entre cocaína e os quatro aditivos em diferentes concentrações (0, 10, 20, 30, 40, 50, 60, 70, 80, 90 e 100 wt % de cocaína) sem adição do agente complexante; e iii) com adição do agente complexante. Análises quimiométricas Calibração multivariada Nesta análise foram utilizadas 39 amostras de misturas binárias de cocaína com: fermento, leite em pó, lidocaína e prometazina. As amostras foram separadas aleatoriamente em dois conjuntos: calibração e previsão, contendo respectivamente 31 e 8 amostras. Dessa forma foi realizada a construção do modelo de PLS. Validação do modelo O número ótimo de variáveis latentes do modelo PLS foi determinado pelo método de validação cruzada k-fold, onde o conjunto de amostras de calibração é dividido em k subconjuntos disjuntos, um destes subconjuntos é retirado para validação enquanto os k-1 subconjuntos restantes são utilizados para construção do modelo, em seguida as amostras do subconjunto retirado para validação têm seus valores previstos. Todos os cálculos foram realizados no software Matlab.23 Seleção de variáveis Cada espectro de infravermelho contém originalmente 3351 variáveis (números de onda espectrais). Assim, a primeira etapa desta análise estatística foi reduzir o número de variáveis utilizando o algoritmo genético (AG)24-26 com as configurações: população inicial com 128 indivíduos, máximo número de geração de 100, taxa de mutação de 1%, inicialização do algoritmo com 15% do total de variáveis, algoritmo utilizado PLS com número máximo de 8 variáveis latentes e otimização do modelo PLS com validação cruzado em 5 blocos escolhidos aleatoriamente. O algoritmo genético foi executado 10 vezes para reduzir a convergência do algoritmo para mínimos locais. Os cálculos foram realizados no PLS Toolbox.27
RESULTADOS E DISCUSSÃO Análise por via úmida - Teste de Scott O teste de Scott foi aplicado a uma amostra de cocaína e 17 aditivos que poderiam ser encontrados em apreensões como adulterantes e diluentes da cocaína. A Tabela 1 sumariza os resultados dos ensaios colorimétricos para todas as 18 substâncias avaliadas. Note que resultados positivos foram encontrados para as amostras de cocaína, lidocaína, prometazina, leite em pó e fermento. Os resultados do teste de Scott são ilustrados pela Figura 1a-j, onde imagens de tubo de ensaios contendo o agente complexante [Co(SCN)2] na presença de fenacetina (1a), cafeína (1b), amido (1c), ácido bórico (1d), manitol (1e), cocaína (1f), prometazina (1g), lidocaína (1h), fermento (1i) e leite em pó (1j) são destacados. A cor vermelha indica um resultado negativo (1a-e) para o teste de Scott, enquanto que a variação da coloração para o azul indica um resultado positivo (1f-h). Um resultado duvidoso foi observado para as amostras de fermento e leite em pó (1i,j), com o aparecimento de uma coloração lilás. Entretanto, essa coloração pode ser transformada para azul, na presença de acetato de etila, levando a resultados falso-positivos. Além disso, a diluição das amostras de cocaína com esses aditivos poderiam levar a resultados inconclusivos.
Figura 1. Imagens contendo o agente complexante [Co(SCN)2]2- na presença de (a) fenacetina, (b) cafeína, (c) amido, (d) ácido bórico, (e) manitol, (f) cocaína, (g) prometazina, (h) lidocaína, (i) fermento e (j) leite em pó. A cor vermelha indica um resultado negativo (a-e) para o teste de Scott enquanto que a cor azul indica um resultado positivo (f-j). A cor lilás indica um resultado duvidoso (i-j) sendo transformada para azul, na presença de acetato de etila
Em 2005 e 2007, Tsumura et al.12 e Morris28 também estudaram a especificidade do teste de Scott, onde resultados positivos também foram encontrados para amostras de heroína, 5-metoxi-N,N-diisopropiltriptamina e quetamina. Uma forma alternativa de aumentar a especificidade desse teste foi proposto por Haddoub et al.29 em 2011, onde ensaios colorimétricos eram realizados sob o spot obtido após uma análise de cromatografia de camada delgada na qual as amostras de cocaína, lidocaína, levamizol, procaína e fenacetina apresentavam diferentes fatores de retenção. Análises UV/VIS As análises por espectroscopia na região do UV/VIS foram realizadas para as amostras que mostraram resultados positivos (lidocaína e prometazina) e inconclusivos (leite em pó e fermento) usando o teste de Scott. Todas as soluções de complexos foram preparadas em acetato de etila devido a uma melhor solubilidade do sistema. A Figura 2 mostra os espectros de UV-VIS na região de 200-700 nm. Duas transições eletrônicas são detectadas com máximo de absorção na região de 320-330 e 640 nm. A primeira banda, correspondente à transição eletrônica π-π* do grupo C≡N do complexo de cobalto, apresenta uma maior absorção quando os ligantes cocaína, lidocaína e prometazina estão presentes. Um menor grau de absorção é observado para os sistemas contendo leite em pó e fermento. A segunda banda, 640 nm, é apenas observada para o sistema [Co(SCN)4L2]2-, onde L = prometazina, cocaína e lidocaína.30 Portanto, a técnica de UV-VIS pode ser útil para eliminar alguns resultados falso-positivos, neste caso, interferentes ao teste de Scott como o fermento e o leite em pó.
Figura 2. Espectros UV-VIS para o complexo obtido pelo Teste de Scott
ATR-FTIR Teste de Scott - complexo [Co(SCN)4L2]2-, sendo L = prometazina, cocaína, lidocaína, leite em pó e fermento e misturas binárias A Figura 3 apresenta os espectros obtidos por espectroscopia de ATR-FTIR na região de 4000 a 600 cm-1 do teste de Scott contendo o complexo [Co(SCN)4]2- na presença de (3a) leite em pó, (3b) prometazina, (3c) fermento, (3d) lidocaína e (3e) cocaína. Note que a banda na região de 2060 cm-1, característica de estiramento de nitrila,31 é útil para detectar a presença do complexo formado quando os compostos prometazina (3b), lidocaína (3d) e cocaína (3e) estão presentes, corroborando com os ensaios colorimétricos, que indicaram a presença de uma coloração azul. A banda intensa na região de 2060 cm-1 foi também relatada na literatura28 para a identificação de quetamina na presença do complexo de [Co(SCN)4]2-. Diferentemente, para as amostras de leite em pó e fermento, que apresentaram uma coloração lilás, nenhuma banda foi observada na região de 2060 cm-1.
Figura 3. Espectros de infravermelho dos complexos [Co(SCN)4L2]2-, onde L = (a) leite em pó; (b) prometazina; (c) fermento; (d) lidocaína; e (e) cocaína
Quando comparamos os espectros de ATR-FTIR entre os complexos contendo prometazina (3b), lidocaína (3d) e cocaína (3e), as regiões de 1800-1000 e 2200-2750 cm-1 se mostram promissoras para quantificar as amostras em relação à presença de cocaína e seus adulterantes em amostras de drogas ilícitas. A banda na região de 3300 cm-1 poderia ser útil para detectar a presença de cocaína (ligações do tipo amina - 3400 cm-1), entretanto, a presença de água omite essa informação.22 Em todos os casos, as análises de UV-VIS e ATR-FTIR mostram-se eficientes para auxiliar os ensaios colorimétricos, eliminando, assim, a interpretação de resultados falso-positivos devido a sua melhor seletividade analítica. Os espectros de ATR-FTIR para as misturas binárias contendo (4a) cocaína/fermento, (4b) cocaína/leite em pó, (4c) cocaína/lidocaína e (4d) cocaína/prometazina na presença da solução de tiocianato de cobalto são mostrados na Figura 4a-d. Para as amostras de fermento e leite em pó, nota-se o aumento da banda de 2060 cm-1 e uma diminuição da banda de 3250 cm-1 com o aumento da concentração de cocaína (0 ® 100 wt %). Por outro lado, uma maior similaridade nos espectros de ATR-FTIR é observada para as misturas de (4c) cocaína/lidocaína e (4d) cocaína/prometazina em função da concentração de cocaína. Novamente, a banda na região de 2200-2750 cm-1 varia em função da concentração de prometazina, enquanto que a região de 1700 a 650 cm-1 tem sua absorbância influenciada pela concentração de cocaína. Nestes casos, a aplicação de um tratamento quimiométrico é mais adequada para detectar e quantificar a presença de cocaína em misturas de cocaína/prometazina e cocaína/lidocaína. Devido à heterogeneidade do teste colorimétrico, um modelo de calibração multivariada (PLS) foi, portanto, combinado com um método de seleção de variáveis (algoritmo genético) para quantificar misturas binárias de cocaína e aditivos no estado sólido sem a presença do complexo tiocianato de cobalto.
Figura 4. Análise de misturas binárias reveladas pelo teste de Scott: (a) cocaína/fermento; (b) cocaína/leite em pó; (c) cocaína/lidocaína; e (d) cocaína/prometazina
ATR-FTIR para amostras puras e misturas binárias de cocaína, prometazina, lidocaína, leite em pó e fermento A Figura 5a-e mostra os espectros de ATR-FTIR para as amostras de (a) leite em pó, (b) prometazina, (c) fermento, (d) lidocaína e (e) cocaína. Todos os espectros foram adquiridos para amostras na forma sólida (em pó). As bandas foram atribuídas a fim de se caracterizar as substâncias. Trinta e duas principais bandas foram identificadas na Figura 5a-e e as atribuições são mostradas na Tabela 2. Algumas bandas podem ser destacadas. Para a amostra de leite em pó, Figura 5a, as regiões de 3600 a 2800 cm-1 se destacam pela presença das bandas de OH (1), deformação axial de N-H (2) e estiramento C-H (3). Similar ao leite em pó, a lidocaína, Figura 5c, apresenta bandas nas regiões de 3500 a 2000 cm-1, correspondendo à deformação axial N-H (19), deformações de aminas secundárias (20) e vibrações N-H (21) do cloridrato. Já a prometazina, Figura 5b, apresenta uma banda na região de 2363 cm-1 correspondendo a vibrações de estiramento de grupos NH+ (8), enquanto que a cocaína apresenta duas bandas na região de 1700 cm-1 (28), correspondendo a vibrações C=O, Figura 5e.
Figura 5. Espectros de ATR-FTIR das substâncias puras: (a) leite em pó; (b) prometazina; (c) fermento; (d) lidocaína; (e) cocaína
Os espectros obtidos por ATR-FTIR, Figura 6a-d, de misturas binárias contendo (6a) cocaína/fermento, (6b) cocaína/leite em pó, (6c) cocaína/lidocaína e (6d) cocaína/prometazina sem a presença da solução de tiocianato de cobalto foram também estudados. Note que as bandas correspondentes à presença de cocaína são observadas principalmente na região de 1700-650 cm-1, destacando a banda de 730 cm-1. Todas essas amostras foram submetidas ao tratamento quimiométrico com o objetivo de quantificar a presença de cocaína nas misturas binárias.
Figura 6. Espectros de ATR-FTIR para misturas binárias contendo: (a) cocaína e fermento; (b) cocaína e leite em pó; (c) cocaína e lidocaína; (d) cocaína e prometazina
Análises quimiométricas Cada amostra contém duas informações, o espetro de ATR-FTIR e o teor de cocaína. Antes de construir o modelo multivariado por mínimos quadrados parciais (PLS), a correção da variação da linha de base espectral foi realizada pela primeira derivada utilizando o algoritmo de Savitz-Golay32 com suavização por um polinômio de segundo grau e janela de 7 pontos. A regressão por mínimos quadrados parciais (PLS)33-35 é o método mais utilizado para construção de modelos de calibração multivariada em química analítica. Dada uma matriz de espectros amostrais X = (x1,..., xm) para m amostras e suas respectivas concentrações de interesse y = (y1,..., ym), o modelo PLS é construído pela decomposição de X e y em um novo conjunto de variáveis geradas, denominado variáveis latentes, com critério de maximizar sua covariância:
onde T é uma matriz de scores para h variáveis latentes, P matriz de loadings de X, q um vetor de loadings de y, E e f os resíduos. Uma importante etapa nesta modelagem consiste na determinação do número ótimo de variáveis latentes a serem utilizadas no modelo final. A modelagem PLS é recomendada quando o número de variáveis é maior que o número de amostras e também quando existe multicolinearidade na matriz X34,35 como normalmente ocorre com espectros de infravermelho. O procedimento de validação comumente é realizado até que todos os k subconjuntos tenham sido previstos, assim o erro de calibração cruzada é determinado por:
onde n é o número de amostras de calibração, yi o valor de concentração de referência e ŷi o valor de concentração estimado pelo modelo. O número ótimo de variáveis latentes do modelo é determinado pelo mínimo erro de validação cruzada (RMSECV). Outro importante parâmetro estatístico calculado é o coeficiente de determinação R2 dado por:
onde i é o valor médio da concentração de referência. O coeficiente de determinação indica a proporção da variância explicada pelo modelo. A partir do número de variáveis latentes otimizado foi estimado o teor de cocaína das amostras do conjunto de previsão. O algoritmo genético foi executado 10 vezes e as variáveis selecionadas em cada etapa foram combinadas. O modelo final foi construído apenas com as variáveis selecionadas que são visualizadas pelas barras dentro do espectro médio das 39 amostras estudadas, Figura 7. Este procedimento foi adotado para excluir eventuais variáveis que não possuem informações relevantes para o modelo PLS. Observa-se que as variáveis foram selecionadas ao longo de todo o espectro de ATR-FTIR, entretanto, a região em torno de 700 cm-1 bem característica no espectro da cocaína foi selecionada em quase todas as vezes que o AG foi executado.
Figura 7. Espectro médio das 39 amostras analisadas por ATR-FTIR. Note que as barras verticais no espectro representam as variáveis selecionadas pelo algoritmo genético para modelagem por PLS, onde sua intensidade aumenta em funçao do número de vezes de escolha da variável
O AG reduziu de 3351 variáveis (número de onda espectrais) para 498. O modelo PLS final foi construído com 6 variáveis latentes que explicam 99,5% da variância espectral (X) e 96,9% da variância do teor de cocaína nas amostras (y), com RMSECV e RMSEP de 7,8% e coeficientes de determinação para validação cruzada e previsão de 0,936 e 0,955, respectivamente. A boa relação dos valores de referência versus os valores previstos usando modelo PLS é mostrado na Figura 8 empregando as amostras de calibração e previsão.
Figura 8. Relaçao do teor de concaína previsto e medido (referência) pelo modelo PLS usando seis variáveis latentes
CONCLUSÃO O teste de Scott utilizado pela Polícia Civil e Federal Brasileira para identificar cocaína em amostras de drogas de rua pode conduzir a resultados falso-positivos ou inconclusivos, quando há presença de substâncias como lidocaína, prometazina, leite em pó e fermento. O emprego de técnicas espectroscópicas como UV-VIS e/ou ATR-FTIR às soluções colorimétricas podem atuar como um método analítico seguro para eliminar resultados inconclusivos ou resolver problemas de falso-positivos. Além disso, a utilização da técnica de ATR-FTIR aliada à calibração multivariada PLS é um método promissor para quantificar o teor de cloridrato de cocaína em amostras de cocaína apreendidas pela polícia brasileira.
AGRADECIMENTOS Os autores agradecem ao Núcleo de Competências em Química do Petróleo (UFES) pelas análises de FT-IR e UV-VIS, em especial ao prof. Dr. Eustáquio V. R. de Castro (coordenador); eles também agradecem a FAPES, CAPES e CNPq pelo auxílio financeiro.
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