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Artigo


Diferenciando reproduções e pinturas verdadeiras: um interessante estudo de caso
Diferenciating reproductions from original paintings: an interesting case study

Dalva L. A. de Faria*; Thiago S. Puglieri

Instituto de Química, Universidade de São Paulo, CP 26077, 05513-970 São Paulo - SP, Brasil

Recebido em 05/09/2015
Aceito em 26/01/2016
Publicado na web em 12/04/2016

Endereço para correspondência

*e-mail: dlafaria@iq.usp.br

RESUMO

A few years ago, during a storage room clean out at the University of São Paulo (Biblioteca do Conjunto das Químicas), several items were discarded, including apparently modern worthless large-scale reproductions of paintings by famous painters. A member of staff retrieved these reproductions from the litter bin, one of which was carefully inspected and non-destructively analyzed by spectroscopic techniques (Raman and XRF). The results showed that instead of being a modern reproduction of the gouache "Clinique de Sannois" (Maurice Utrillo, 1923), it was hand-painted probably between the late 1940s and early 1950s using the Jacomet process. This technique was developed by the French printer Daniel Jacomet in the 1920s, who made authorized reproductions of works of art by some of the most celebrated painters of the time.

Palavras-chave: Utrillo; pochoir; Jacomet; Raman; XRF; pigment.

INTRODUÇÃO

A tarefa de autenticação de obras de arte não é trivial e há já algum tempo não pode prescindir de métodos instrumentais de análise. As avaliações feitas usando apenas critérios estilísticos tem limitações óbvias e talvez o caso mais emblemático seja o de Henricus van Meegeren, que se especializou no estilo de Vermeer (1632 - 1675) e produziu falsificações de obras do pintor, as quais eram posteriormente "autenticadas" por especialistas. As falsificações de van Meegeren somente foram descobertas porque ele, além de confessar o ato, também pintou um "legítimo Vermeer" na prisão, quando era acusado de colaborar com nazistas na Segunda Guerra Mundial.1

Esse cenário ganha em complexidade com o papel reconhecidamente cada vez maior que obras de arte vem tendo na lavagem de dinheiro2,3 e com o surgimento de uma indústria de produção de cópias de obras clássicas por pintores anônimos, como é o caso de Dafen, na China.4

A utilização de métodos físico-químicos de análise é indispensável na avaliação de bens culturais, por não serem objeto da subjetividade existente na apreciação de especialistas, por apresentarem resultados detalhados em termos de composição química, por permitirem a compreensão dos processos responsáveis pela degradação desses bens e por possibilitarem a definição de métodos preventivos, capazes de minorar essa degradação. Essas características são ainda mais evidentes e vantajosas quando é possível a utilização de ferramentas analíticas não destrutivas no estudo desses bens culturais, como é o caso da espectroscopia Raman e da espectroscopia de fluorescência de raios X (XRF). Essas duas técnicas foram empregadas, neste trabalho, na investigação de uma pintura que foi possível analisar devido a uma circunstância inusitada.

A necessidade por espaço na Biblioteca do Conjunto das Químicas (USP), em 2007, fez com que alguns objetos que já haviam sido destinados ao descarte fossem removidos da sala que ocupavam e levados à lixeira. Dentre esses itens estavam o que se acreditava serem 15 reproduções modernas de pinturas de artistas famosos, sem qualquer valor comercial. Apesar de empoeiradas e desgastadas pelo tempo, essas peças atraíram a atenção de um funcionário que passava pelo local no momento do descarte, o qual as recolheu para si tocado pela beleza das cenas representadas.5

Um desses itens foi analisado no Laboratório de Espectroscopia Molecular do IQUSP e os resultados estão reportados neste artigo. Trata-se da representação de uma cena urbana do início do século XX, feita sobre cartão e medindo 36 x 27 cm (Figura 1), que apresenta assinatura (Maurice, Utrillo, V) e data (1923), possuindo um passé-par-tout de papel colado a ela, que se encontra em estado precário de conservação, com ruptura em diversos locais. Maurice Valadon Utrillo (1883-1955) foi um pintor francês conhecido como um dos artistas que mais representaram o bairro parisiense de Montmartre; desde a adolescência teve problemas com alcoolismo o que fez com que fosse internado várias vezes em sanatórios para desintoxicação.6

 


Figura 1. Fotografia da obra identificada com a assinatura "Maurice, Utrillo, V"

 

Técnicas de caracterização química, como microscopia Raman, espectroscopia ou microscopia de absorção no infravermelho com transformada de Fourier, microscopia eletrônica de varredura acoplada à espectroscopia de dispersão de energia (SEM-EDS), difratometria de raios X (XRD), XRF, espectrometria de emissão óptica com plasma induzido por laser (Laser Induced Brakedown Spectroscopy, LIBS), entre outras, têm sido amplamente empregadas em estudos de obras de arte visando sua autenticação,7-9 conservação e restauro10-12 ou identificação das metodologias empregadas para sua produção.13-15 No caso do objeto analisado neste trabalho, em particular, a caracterização poderia ser útil para esclarecer se a obra da Figura 1 seria um trabalho original ou uma reprodução que poderia ter valor agregado.

Idealmente as técnicas a serem empregadas na caracterização dos materiais de uma obra de arte devem ser não destrutivas, não invasivas e fornecer resultados que permitam a identificação inequívoca das substâncias presentes. A microscopia Raman, uma técnica vibracional que envolve o espalhamento inelástico da radiação incidente em uma amostra,16 vem sendo empregada com muito sucesso na investigação de bens culturais,17 como pinturas e desenhos,7,18-20 por apresentar as características acima mencionadas e ainda ser relativamente imune à interferência do substrato devido à confocalidade ou à resolução espacial, o que permite restringir a área estudada aos pigmentos. Essa técnica foi usada na identificação dos pigmentos da obra em estudo e utilizou-se espectroscopia de fluorescência de raios X como técnica complementar.

 

PARTE EXPERIMENTAL

Para as análises por Microscopia Raman hastes plásticas com algodão nas extremidades foram suavemente friccionadas sobre a superfície do quadro, removendo pequenos fragmentos de pigmentos (tipicamente de 5 a 10 µm) que ficaram presos às fibras de algodão (Figura 2a). As hastes contendo os pigmentos foram guardadas em tubos eppendorf até o momento da análise quando foram colocadas diretamente sobre o estágio do microscópio (plataforma que suporta a amostra, também chamado de platina), sem nenhum pré-tratamento. Apesar das análises não terem sido realizadas in situ, a quantidade de amostra coletada através desse procedimento é tão pequena que pode ser considerada virtualmente não invasiva.

 


Figura 2. Haste de algodão usada para coleta de fragmentos pigmentados da obra (a) e fotografia da obra indicando as regiões de onde foram feitas análises por XRF (b). Os números 1 e 2 em (b) correspondem a regiões de cor verde; 3 e 4 a azul; 8, 9 e 10 a marrom; 5 a preta; 11 a bege; e 12 a amarela

 

As análises de XRF foram feitas diretamente na pintura em áreas selecionadas de acordo com sua coloração (Figura 2b). Imagens de luz branca variando-se o ângulo de incidência de luz entre aproximadamente 10º e 90º foram também obtidas no laboratório.

Os espectros Raman foram obtidos em equipamento Renishaw inVia Reflex acoplado a microscópio Leica DM2500 e dotado de detector CCD (600x400 pixels) refrigerado termoeletricamente. As radiações em 632,8 nm e 785 nm (lasers de He-Ne e diodo, respectivamente, ambos da Renishaw) foram usadas na obtenção dos espectros. Os espectros de XRF foram feitos em equipamento portátil Bruker Tracer III-SD, com alvo de Rh que opera na voltagem máxima de 45 kV e detector de silício (Silicon Drift Detector) de 10 mm2 refrigerado termoeletricamente. Os espectros foram obtidos usando 40 kV, 30 µA e 60 s de tempo de aquisição. O processamento dos espectros foi feito empregando o programa GRAMS (Thermo Sci.), no caso dos espectros Raman, e Artax, no caso do XRF.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

O quadro foi analisado em duas etapas, sendo que inicialmente foi feita sua documentação fotográfica e inspeção visual; na segunda etapa foram feitas as análises por microscopia Raman e XRF usando, respectivamente, um equipamento de bancada e um portátil. O procedimento adotado de remoção de micropartículas de pigmentos usando hastes flexíveis com algodão em suas extremidades justifica-se pelo fato de que, por conta de seu tamanho, o quadro não poderia ser analisado diretamente no estágio do microscópio Raman.

Durante a etapa de documentação fotográfica do quadro, observou-se que o mesmo apresentava superfície áspera, incompatível com o uso de corante; isso porque corantes são solubilizados na tinta ao passo que pigmentos permanecem nela como material particulado. A partir da constatação de que pigmentos e não corantes haviam sido empregados, o uso das hastes com algodão respaldou-se no fato de ser uma estratégia que não teria qualquer impacto estético no quadro e proporcionaria quantidade suficiente de amostra para as análises por microscopia Raman, uma vez que a área da amostra sondada pela técnica é tipicamente de 1 a 10 µm2 apesar de, em casos favoráveis, ser possível analisar partículas de dimensões ainda menores. Adicionalmente, as hastes podem ser colocadas diretamente no estágio do microscópio Raman, sem necessidade de manipulações de qualquer espécie.

A textura da superfície pigmentada era compatível com a existente no caso de pinturas com gouache, uma técnica que data do período pré-renascentista e que foi originalmente usada na produção de iluminuras em livros religiosos.21 Usada extensivamente em pinturas somente no século XVIII, consiste na aplicação de uma suspensão de pigmento em água sobre uma superfície absorvente (papel, cartão ou tela, geralmente). A aquarela é uma técnica derivada dela, diferenciando-se do gouache por utilizar uma maior diluição e, eventualmente, corantes no lugar de pigmentos, o que confere uma maior transparência à cor. Diversos artistas empregaram essas técnicas com alguma frequência, entre eles Maurice Utrillo.

Inspecionando o quadro com luz em ângulo rasante (Figura 3a) não se podem observar traços característicos de pinceladas, nem a superfície lisa de reproduções usualmente feitas por impressões modernas. A luz em ângulo rasante também permitiu observar claramente, sob o passé-par-tout, partes da inscrição "impresso em Paris usando o procedimento Jacomet", escrita em francês, que estava parcialmente coberta com adesivo (Figuras 3b e 3c).

 


Figura 3. Fotografia com luz em ângulo rasante de parte da obra (a) e fotografia da região sob o passé-par-tout evidenciando a inscrição Daniel Jacomet (b e c)

 

Daniel Jacomet (1894-1966) foi um editor e impressor francês, reconhecido por desenvolver uma técnica de impressão de alta qualidade, conhecida como procedimento (ou processo) Jacomet, que consistia no uso combinado da fototipia e do pochoir. Pochoir é uma técnica de impressão baseada no uso de estênceis, que são folhas com recortes correspondentes à imagem ou texto a serem reproduzidos, sobre as quais eram aplicadas as tintas; a palavra pochoir em francês também é usada para descrever as folhas em si. No procedimento Jacomet, a imagem a ser impressa (fotografia, desenho, pintura etc.) era fotografada diversas vezes empregando filtros de colorações diferentes e as imagens eram usadas para produzir estênceis em finas folhas de metal (tipicamente zinco), os quais eram colocados sobre o papel e recebiam as cores adequadas através de escovas especiais feitas de cerdas macias.22 Usando todos os estênceis, portanto, eram produzidas cópias de alta qualidade das obras originais, também porque se usavam materiais "nobres" (aquarelas, gouaches, pastéis etc.) em vez de tintas comuns. Essa técnica teve seu auge entre as décadas de 1920 e 1950 e a excelente qualidade de impressão ainda hoje é capaz de confundir especialistas em arte.23

Uma pesquisa bastante ampla realizada neste trabalho, no Brasil e na França, mostrou que a obra original da reprodução aqui analisada foi produzida em gouache por Utrillo em 1923, com o título "Clinique de Sannois".24

Na Figura 4 estão apresentados os espectros Raman feitos das microamostras coletadas do quadro; a identificação dos pigmentos foi realizada empregando dados da literatura ou fazendo comparação com espectros de referência (Tabela 1).

 


Figura 4. Espectros Raman dos pigmentos inorgânicos (a) e orgânicos (b) identificados na obra, sendo que a1 corresponde ao pigmento preto, a2 e a3 ao vermelho e marrom (respectivamente), a4 ao amarelo e a5 ao branco; b1 corresponde ao pigmento verde, b2 ao azul e b3 é o espectro de ftalocianina de cobre(II)

 

 

 

Pigmentos orgânicos e inorgânicos foram identificados por microscopia Raman e, como será visto adiante, apenas os inorgânicos são compatíveis com a data que aparece no quadro (1923). Os pigmentos inorgânicos identificados foram: (i) hematita (α-Fe2O3, com bandas Raman observadas em 227, 292, 411, 612 e 1300 cm-1), um pigmento vermelho largamente utilizado desde tempos pré-históricos, quando era empregado em pinturas rupestres; (ii) barita (BaSO4), um pigmento branco com bandas Raman observadas em 451, 460, 616 e 987 cm-1, e que começou a ser usado em pinturas provavelmente no século XVII, sendo disponível sinteticamente na França em meados do século XIX;21 esse pigmento, quando sintético, não é recomendado para pintura a óleo, mas sim para aquarelas e afrescos, que são casos similares àquele estudado neste trabalho;21 (iii) amarelo de crômio (PbCrO4), um pigmento sintético, inicialmente produzido em 187929,31 e com principais bandas Raman observadas em 356 e 838 cm-1; (iv) carbono amorfo, um pigmento natural com bandas Raman em 1320 e 1595 cm-1 e usado desde a pré-história; e (v) vermelhão (HgS), um pigmento vermelho usado na Europa a partir do século VIII, com principais bandas Raman observadas em 253 e 343 cm-1.21

Especificamente para o pigmento amarelo de crômio, apesar de existirem outros cromatos usados como pigmentos, como o amarelo de Bário (BaCrO4), amarelo de estrôncio (SrCrO4) e amarelo de zinco (ZnCrO4), as posições das bandas no espectro Raman não são as mesmas (Tabela 2), permitindo sua diferenciação e identificação inequívoca.

 

 

Não foram detectados pigmentos inorgânicos de coloração azul e verde. Nas regiões com pigmentação azul os espectros Raman apresentaram bandas em 678, 745, 956, 1139, 1190, 1209, 1334, 1444 e 1523 cm-1 características de ftalocianina de cobre (C32H16CuN8, Tabela 1). No caso do pigmento verde as bandas foram observadas em 684, 740, 774, 979, 1214, 1282, 1339, 1389, 1445 e 1538 cm-1 indicando a presença de verde de ftalocianina (C32Cl16CuN8, Tabela 1). As pequenas (e aceitáveis) discrepâncias nos valores de posição de banda quando os resultados experimentais são comparados com os padrões podem ser devidas às diferentes fases cristalinas de ftalocianina e a maior largura de banda pode advir de menor cristalinidade do pigmento.

A primeira referência à síntese de ftalocianinas data de 1907, sendo que o uso comercial como pigmento em arte da ftalocianina de cobre, PB15, data de 1937 e o de verde de ftalocianina, PG7, de 1939.32

Considerando a tonalidade das áreas pigmentadas em verde, poder-se-ia a princípio considerar a possibilidade da presença de verde de crômio (Cr2O3), principalmente pela detecção de crômio nas medidas de XRF como será discutido adiante. Esse pigmento não foi, entretanto, identificado, mas é importante lembrar que esse óxido não é um bom espalhador de luz e, além disso, as ftalocianinas identificadas tem seu espectro Raman intensificado pelo efeito Raman ressonante. Dessa forma, caso verde de crômio tenha sido usado, suas bandas seriam facilmente obscurecidas pelas bandas muito mais intensas das ftalocianinas.

As análises por XRF levaram à identificação dos elementos químicos presentes nas áreas com diferentes pigmentações no quadro, porém, é importante destacar dois aspectos da análise realizada: (i) a área sondada em cada medida feita pelo equipamento usado tem cerca de 5 mm de diâmetro e o espectro obtido corresponde, portanto, à contribuição de todos os pigmentos usados nessa área e (ii) a radiação usada é bastante penetrante e capaz de interagir com substâncias presentes em camadas internas de tinta, ao contrário da microscopia Raman que é uma técnica de superfície. Os espectros de XRF estão disponíveis como material suplementar.

Na Tabela 3 são apresentados os elementos químicos encontrados com a respectiva coloração da área estudada por XRF, sendo que para as análises dos espectros foram subtraídos os sinais referentes ao papel sobre o qual os pigmentos se encontravam.

 

 

Os resultados obtidos estão em plena concordância com os provenientes da microscopia Raman, exceto pelo pigmento preto, uma vez que o carbono é um elemento leve demais para ser detectado por XRF, e pelo azul, já que não foi detectado cobre nas áreas com essa coloração, mas sim cobalto. Especificamente neste último caso, o Co poderia advir de ftalocianina de cobalto, mas nesse caso o espectro Raman apresentaria bandas em posições diferentes das registradas nos espectros aqui reportados.33 Para esclarecer essa questão, é importante lembrar que (i) as ftalocianinas apresentam forte efeito Raman ressonante, o qual promove intensificação de várias ordens de grandeza nas vibrações associadas ao grupo cromofórico e, com isso, quantidades mínimas desse pigmento podem originar espectros com excelente qualidade (relação sinal/ruído); (ii) caso a concentração de ftalocianina de cobre seja muito baixa nas áreas investigadas, as análises de XRF podem não ter sido capazes de identificar o metal, por não ter atingido o limite inferior de detecção de equipamento; (iii) o Procedimento Jacomet usa várias camadas de tinta para obter a coloração desejada (a obra é uma cópia fidelíssima de uma aquarela de Maurice Utrillo) e no XRF a pintura foi estudada aplicando a radiação diretamente sobre as áreas pigmentas, coletando com isso informação de todas as camadas de pintura devido à alta penetração dos raios X na matéria; no caso da microscopia Raman foram estudados apenas os fragmentos que se desprenderam com a fricção de um pedaço de algodão, tendo por isso contribuição dos pigmentos mais superficiais; (iv) caso pigmentos contendo cobalto tenham sido usados (aluminato e silicato de cobalto com bandas Raman características em 203 e 512 cm-1, e 462 e 917 cm-1, respectivamente) provavelmente teriam suas bandas obscurecidas pelas da ftalocianina, muito mais intensas; a análise cuidadosa dos espectros, entretanto, não mostrou qualquer evidência de uso desses dois pigmentos. Esses resultados sugerem, portanto, que ou pigmentos contendo cobalto estão em camadas mais internas da pintura ou então que as bandas Raman desses pigmentos foram totalmente suplantadas pelas bandas muito mais intensas da ftalocianina de Cu(II).

As áreas brancas do quadro apresentaram majoritariamente Ba, Zn e S, confirmando a presença de branco de bário (BaSO4) informada pela microscopia Raman. Sobre o Zn, é importante destacar que por espectroscopia Raman não foram encontradas bandas características de pigmentos brancos contendo Zn, tais como ZnO (bandas em 99, 382, 414, 439, 574 e 580 cm-1)34 e sulfeto de Zinco (banda em 275, 279, 285 e 353 cm-1)35 ou litopônio (348, 453, 462, 617, 647 e 988 cm-1).26 É possível, portanto, que a detecção de Zn por XRF esteja relacionada ao uso de branco de zinco (ZnO) ou litopônio (BaSO4.ZnS) em camadas de tintas mais internas, lembrando novamente que, como no caso do cobalto, a técnica empregada na produção do fac-símile estudado envolvia a aplicação de diversas camadas de tinta até a obtenção do padrão de coloração exato da obra original. Como a espectroscopia Raman foi aplicada aos fragmentos desprendidos da pintura, ela não é capaz de identificar tais camadas interiores exceto por cortes estratigráficos. Por outro lado, a técnica XRF é capaz de investigar todas as camadas de pintura, mas é apenas sensível aos elementos químicos e não às substâncias presentes, sendo incapaz de esclarecer a questão levantada sobre o pigmento branco. Tais características das duas técnicas fazem com que uma seja complementar à outra e os resultados aqui reportados mostram os riscos inerentes ao uso somente de uma delas.

As áreas amarelas apresentaram Ba, Zn, Pb e Cr, resultado compatível com uma mistura de barita e amarelo de crômio (PbCrO4); a possibilidade da presença de amarelo de bário (BaCrO4) e de zinco (ZnCrO4) já foi dirimida através da microscopia Raman, que não encontrou sinal do cromato desse metal alcalino terroso.

A tonalidade clara das áreas azuis, como pode ser visto na Figura 1, indica que houve diluição do pigmento e, efetivamente, os dados de XRF mostram que além de Ba, Zn e S (associados ao pigmento branco), há nessas regiões Co, Al, Si, K e Fe, sugerindo que a diluição tenha sido feita com um aluminosilicato, ou que a tinta empregada contivesse esse diluente. É importante frisar que aluminosilicatos são fracos espalhadores de luz e dificilmente seriam observados nos espectros Raman como, efetivamente, não o foram. A presença de cobalto, como já foi discutido, não foi confirmada por microscopia Raman, uma vez que bandas características de ftalocianina de cobalto, azul de cobalto e esmalte (pigmento azul) não foram observadas.

Como existe crômio também no pigmento amarelo usado, a técnica de XRF não permite inferir se há ou não óxido de crômio nas áreas verdes juntamente com o verde de ftalocianina, como já foi destacado acima.

Finalmente, nas áreas marrons, os elementos Fe, S e Hg foram observados e corroboram a identificação de hematita (α-Fe2O3) e vermelhão (HgS) feita por microscopia Raman.

É difícil avaliar o valor de uma reprodução como a analisada. É certo que o atelier Jacomet imprimia números limitados de suas produções autorizadas, o que agrega considerável valor às suas reproduções. É possível ainda que após a remoção cuidadosa do passé-par-tout apareça alguma informação adicional, como, por exemplo, a tiragem. De qualquer forma, o aspecto mais interessante não é o monetário, sendo que, embora essa reprodução tenha algum valor comercial, não foi isso que atraiu a atenção do funcionário que a resgatou do lixo junto de outros itens de mesma natureza. A história está repleta de casos de obras que se perderam ou quase se perderam, seja por descuido dos responsáveis, seja por incompatibilidade estética com uma determinada época e estilo. Recentemente, por exemplo, nos Estados Unidos declarou-se que uma obra de Fernand Leger (Woman and Child, 1921), pertencente ao Davis Museum (Wellesley College, Wellesley, EUA) e que estava desaparecida desde 2007, foi provavelmente descartada juntamente com a estrutura de madeira que a embalava e protegia depois de ter sido devolvida de um empréstimo a uma exposição em outra cidade, porque o Davis Museum se encontrava na época em reforma e provavelmente quem descartou a estrutura acreditava que a tela já havia sido retirada da mesma.36 Infelizmente esse não é um caso único.37

Também recentemente, durante a restauração de pinturas barrocas da cúpula da catedral de Valência, foram encontradas pinturas renascentistas de anjos músicos feitas por Francesco Pagano e Paolo da San Leocadio no final do século XV, que haviam sido cobertas pela nova pintura provavelmente devido à incompatibilidade de estilos vigentes nas épocas.38,39 É curioso que no caso da catedral de Valência a obra original não tenha se perdido porque a nova pintura não foi feita sobre ela, mas sobre uma superfície adicional - uma nova cúpula - que se sobrepôs à original separada por mais de um metro. Os executores da segunda cúpula cobriram com a argamassa usada na montagem da segunda cúpula as bocas de quase todos os anjos góticos que cantavam e tocavam instrumentos, como que para calá-los, mas não tiveram a coragem de destruí-los, provavelmente reconhecendo e respeitando a beleza daquela criação. Também no caso aqui analisado, a salvação da reprodução feita pelo atelier Jacomet se deu devido ao respeito que a criação artística original, tão perfeitamente reproduzida pela técnica do pochoir, inspirou.

 

CONCLUSÕES

Os resultados aqui reportados confirmam a capacidade da microscopia Raman e XRF, técnicas espectroscópicas não destrutivas (que podem ser invasivas ou não, dependendo do procedimento adotado), em caracterizar componentes de obras de arte.

Como discutido na Introdução, a identificação de pigmentos tem sido empregada na datação de obras de arte, uma vez que levantamentos históricos mostram que há períodos claramente conhecidos de início e descontinuação do uso de pigmentos e corantes, seja devido à data de sua comercialização, seja devido à data de sua substituição por outras substâncias mais baratas, abundantes ou simplesmente menos tóxicas.32

No caso da ftalocianina de cobre e do verde de ftalocianina, sua comercialização iniciou-se em 1937 e 1939, respectivamente,32 e não eram, portanto, disponíveis em 1923, quando a obra original foi pintada, mas já estavam no mercado na época provável em que a reprodução aqui estudada foi feita - entre o final das décadas de 1940 e 1950 - período que compreende o final da Segunda Guerra Mundial (1945) e a separação das Faculdades de Farmácia e Odontologia da USP (1962), à qual a obra originalmente pertencia.

Os pigmentos identificados na obra investigada (hematita, vermelhão, cromato de chumbo, ftalocianina de cobre, verde de ftalocianina, carbono amorfo e sulfato de bário) são compatíveis com aqueles historicamente esperados no uso da técnica de pochoir e as informações obtidas por inspeção com luz em ângulo rasante permitiram concluir que o quadro analisado foi produzido por essa técnica, a qual combinada com o uso de stensils, caracterizava o Procedimento Jacomet, desenvolvido por Daniel Jacomet em Paris na década de 1920. Esses resultados descartaram, portanto, a possibilidade da obra se tratar de uma reprodução moderna sem valor agregado.

A caracterização molecular conduzida por microscopia Raman permitiu também evidenciar a complexidade e o cuidado para a obtenção de melhores resultados das reproduções feitas pelo procedimento Jacomet. No caso das áreas em marrom, por exemplo, hematita e vermelhão foram empregados para a obtenção da tonalidade que melhor reproduzisse a obra original.

De um ponto de vista mais geral, o estudo aqui reportado evidencia que a questão do gerenciamento de bens culturais em instituições públicas é complexa, principalmente quando se trata de bens móveis e precisa ser abordada de forma incisiva e urgente em todas as instâncias. Pinturas e demais produções gráficas talvez sejam os mais relevantes casos do ponto de vista de instituições públicas: a alteração periódica dos dirigentes e a ausência de uma catalogação e patrimonialização adequadas, assim como de um inventário (instrumento constitucional de proteção ao patrimônio cultural) e de gerenciamento desse patrimônio, faz com que a médio prazo as informações sobre os bens institucionais se percam, assim como, frequentemente, o próprio bem cultural.

Longe de ser um problema localizado a instituições governamentais, como repartições públicas, escolas, hospitais etc., esse problema estende-se também a museus nos quais o gerenciamento patrimonial não é feito de forma adequada, afetando não somente instituições no Brasil, mas também do exterior.

 

AGRADECIMENTOS

Os autores agradecem a Antônio Luiz Gois Passos pela cessão da peça analisada e à FAPESP (12/13119-3, 08/56127-0 e 11/13760-8) e CNPq (309288/2009-6) pelos auxílios financeiros concedidos.

 

REFERÊNCIAS

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Este texto é dedicado à memória do Prof. Dr. Jaim Lichtig

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