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Química Orgânica no Brasil: sua contribuição na síntese total de produtos naturais desde a fundação da SBQ# Organic chemistry in brazil: its contribution in the total synthesis of natural products since the Brazilian Chemical Society Foundation |
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Mauricio M. Victor*1,2
1Departamento de Química Orgânica, Instituto de Química, Universidade Federal da Bahia, 40170-115 Salvador - BA, Brasil Recebido em 02/04/2017 *e-mail: mmvictor@ufba.br An overview of the achivements in the field of the total synthesis of natural products in Brazil in the last 40 years is presented. These contributions are described on different classes of natural products since the birth of Brazilian Chemical Society in 1977. It was intended to create a brief review showing the evolution and current state of the art of Organic Chemistry in Brazil, registering growth and maturity of this area among Brazilian researchers, as well as the contribution of Brazilian organic chemical community in the new fields of this science. INTRODUÇAO A Sociedade Brasileira de Química (SBQ) e seus associados estao em um ano de júbilo. Fruto de um imenso esforço de inserçao internacional promovido por suas diretorias nos últimos anos, nosso país acolherá a realizaçao do 46º Congresso Mundial de Química da IUPAC (Uniao Internacional de Química Pura e Aplicada), que pela primeira vez será realizado na América do Sul, conjuntamente com a Reuniao Anual da SBQ que comemora seus 40 anos de fundaçao. Com o tema "Sustentabilidade e Diversidade Através da Química", este evento histórico consolida a maturidade e capacidade de nossa comunidade, e representa a definitiva inserçao da química brasileira no cenário mundial. Com a responsabilidade de ter um olhar sobre a química orgânica desde a fundaçao da SBQ em 1977, mesmo ano da primeira ediçao da Química Nova, este artigo busca coletar informaçoes que mostrem a evoluçao de sua qualidade, em sua diversidade de objetos de pesquisa e desenvolvimento, além de indicar as áreas na fronteira do conhecimento e dos novos desafios que se apresentam à química orgânica. Já há excelentes documentos que registram os aspectos históricos da gênese da área no Brasil, especialmente os que tratam da faceta "orgânica" do acordo bilateral CNPq-NAS (Conselho Nacional de Pesquisas e Desenvolvimento, do Brasil, e National Academy of Sciences, dos Estados Unidos)1-3. Também um levantamento detalhado sobre a produçao da área no Brasil, bem como uma análise sobre o quadro evolutivo nos trabalhos apresentados à Reuniao Anual da SBQ e nos BMOS (Brazilian Meetings on Organic Synthesis), já foi realizado na ediçao comemorativa aos 25 anos da SBQ4. Deste modo, de forma a evitar a sobreposiçao de análises e a descriçao repetitiva dos fatos, o autor buscou o desafio de se afastar da visao anteriormente buscada pelos colegas e mostrar a evoluçao da capacidade dos pesquisadores nacionais sob outra ótica. Focando a análise nos 40 anos da Química Orgânica Sintética no Brasil, este levantamento busca dar um panorama geral da evoluçao da área no Brasil, empregando exemplos de sínteses totais de produtos naturais em diferentes épocas, agrupando-as em diferentes classes, que demonstrem o aumento da capacidade, de maturidade e da evoluçao da comunidade sintética nacional. Por fim, nao podemos deixar de homenagear todos os "orgânicos" brasileiros que contribuíram nestes últimos 40 anos para a consolidaçao e reconhecimento de nossa área de pesquisa, e agradecer a todos aqueles que com seu esforço construíram, e ainda constroem, as belezas desta maravilhosa ciência, e que permitiram a escrita deste artigo.
SINTESES TOTAIS NO BRASIL A síntese total de moléculas no Brasil está intimamente ligada ao desenvolvimento do acordo CNPq/NAS e à fundaçao da SBQ e da revista Química Nova em 1978. Apesar de haver exemplos de sínteses anteriores, como a do sativeno e do copacanfeno via ciclizaçoes radicalares5, já em 1978, no segundo número do periódico, há o primeiro relato de um trabalho de investigaçao sobre uma síntese total6. A síntese da β-metileno-χ-spirolactona foi fruto das investigaçoes iniciais na área de química orgânica do acordo binacional, e permitiu posteriormente a síntese total da bakkenolida A7 (Figura 1).
Figura 1. Alvos sintéticos primordiais da química orgânica brasileira
Como seria de se esperar, em funçao da enorme biodiversidade nacional, vários compostos biodisponíveis foram empregados como pool na síntese total de produtos naturais. Um belo exemplo destes primeiros esforços foi a síntese do triterpenoide bicíclico ent-(α)-polipodatetraeno8. O material de partida, o ácido copálico, foi obtido a partir do óleo de copaíba, de origem amazônica e de largo uso medicinal (Esquema 1). Nesta mesma época o (+)-citronelol, empregando química de ciclizaçao intramolecular de carbenoide de uma (α)-diazo-(β)-cetossulfona intermediária, foi transformada no feromônio (+)-grandisol9. Também o (-)-isopulegol, terpeno facilmente obtido a partir do citronelal, foi empregado como material de partida para a síntese da (-)-mintlactona10. A etapa chave da curta síntese foi o emprego de tri-acetato de tálio (TTA) como agente ciclizador. Açúcares também foram empregados como pool quiral. A síntese da herbarumina-I11, uma fitotoxina isolada de fungos, teve como material de partida a L-arabinose. A etapa chave desta síntese foi um acoplamento intermolecular de Nozaki-Hiyama-Kishi.
As estratégias de sínteses totais também se desenvolveram sem o uso de fontes naturais de matérias-primas. Uma das classes importantes de compostos naturais sao os feromônios, substâncias importantes no controle de insetos em culturas, e por isso foco de atençao dos químicos sintéticos brasileiros. De fato, devido a nossa pujante agroindústria, uma forte escola de pesquisa sobre feromônios se consolidou no Brasil. Um dos primeiros exemplos foi a preparaçao dos isômeros do propanoato do 8-metil-decan-2-ila, presentes no feromônio sexual da lagarta-da-raiz do milho (Diabrotica virgifera virgifera LeConte). Preparando o substrato inicial através de reduçao enzimática e tomando vantagem de posteriores alquilaçao e hidrogenaçao diastereosseletivas em anéis de tamanho médio, ambos isômeros (2S,8S) e (2S,8R) foram sintetizados12. Os compostos non-6-enoato de metila e o non-6-en-1-ol sao componentes do feromônio de atraçao sexual da mosca-da-fruta do Mediterrâneo (Ceratitis capitata Wiedmann). Partindo de uma cicloexanona substituída e empregando uma reaçao de fragmentaçao de 2-cloro-1,3-dionas, o cloro-éster intermediário obtido foi transformado nos componentes do atrativo do inseto13. Há casos de um único componente que atua como feromônio. É o caso da maria-fedida ou pecervejo-da-soja (Nezara viridula Linnaeus). O sesquiterpeno bisaboleno de estereoquímica (Z)-(1S,2R,4S) foi sintetizado a partir do álcool perílico e empregou uma reaçao de olefinaçao14, bastante comum na preparaçao de insaturaçoes em compostos atrativos de insetos. Outro inseto com componente único no feromônio atrativo que teve seu feromônio sintetizado foi o caruncho-do-fumo (Lasioderma serricorne Fabricius). A estratégia quimioenzimática empregada na preparaçao da serricornina15 envolveu o uso de fermento de padaria (S. cerevisiae). Há também uma vertente comercial na síntese de feromônios. Por exemplo, a preparaçao do feromônio de agregaçao da broca-do-olho-do-coqueiro (Rhynchophorus palmarum Linnaeus), que envolveu apenas uma etapa de adiçao de composto de Grignard a um aldeído16, permitiu a criaçao de um núcleo de estudos e uma incubadora dentro de uma universidade, de onde o composto é fornecido em escala. Por fim, como prova da evoluçao da comunidade brasileira nesta área, o feromônio do besouro-soldado (Chauliognathus fallax Germar), além de ter sido sintetizado, foi também identificado em nosso país17. Uso extensivo de métodos analíticos como eletroantenografia, cromatografia gasosa, espectrometria de massas e espectroscopia no infravermelho permitiu a identificaçao do (Z)-tricos-11-eno, que foi entao sintetizado e confirmado como composto atrativo da espécie (Figura 2).
Outra classe de produtos naturais bastante explorada pelos sintéticos brasileiros sao os alcaloides. Uma das primeiras estratégias empregadas na preparaçao destes compostos em solo nacional foi o emprego da reaçao de adiçao a íons N-acil-imínio seguida de uma adiçao de Michael sequencial (estratégia one-pot)18. Apesar de permitir a síntese do produto natural apenas na forma racêmica, representou uma estratégia eficiente na preparaçao do alcaloide quinolizidínico lasubina II (Figura 3). Outra estratégia empregada nas primeiras sínteses totais foi a execuçao de sínteses formais, mas já com controle enantiosseletivo. Para a síntese formal do alcaloide indólico (+)-vincamina19, lançou-se mao do emprego de alquilaçoes derracemizantes empregando iminas quirais, que permitiram a preparaçao de um intermediário em alto excesso enantiomérico (90% ee, medida por RMN de 1H com reagente quiral de deslocamento). A evoluçao nesta área pode ser sentida nos exemplos mais recentes da preparaçao de alcaloides. A policitrina A, por exemplo, foi preparada de maneira muito eficiente através do uso de reaçao de Heck-Matsuda20, que emprega tetra-flúor-boratos de aril-diazônios como substrato, e é reaçao em estudo e desenvolvimento em nosso país e de extenso uso em sínteses totais21. A síntese da (+/-)-preussina também exemplifica a evoluçao da química no Brasil. A preparaçao estereosseletiva da mesma, efetuada em apenas 3 etapas22, teve como material de partida um diazo-oxo-alquilfosfonato desenvolvido em laboratório local23. Já a síntese da (-)-aporfina24 demonstra o domínio de reaçoes de cicloadiçao na preparaçao de estruturas complexas. O esqueleto aporfínico foi construído através de uma cicloadiçao [4+2] entre o benzino e um derivado isoquinolínico, e a síntese foi finalizada através de resoluçao em pequena escala.
Figura 3. Alguns alcaloides sintetizados no Brasil
Dentre os alvos sintéticos escolhidos pela comunidade de orgânicos brasileiros, nao poderia faltar a classe dos policetídeos ou oxigenados, onde a presença de hidroxilas, carbonilas e duplas ligaçoes congregam uma grande diversidade de produtos naturais. Um dos exemplos iniciais da capacidade da comunidade sintética nacional em alcançar a construçao destes compostos foi a (+/-)-pirenoforina. Empregando reaçao de alquilaçao de aldeído com ânion gerado a partir de um β-nitro-éster e reaçao de dimerizaçao como etapas-chave25, a síntese racêmica deu início à demonstraçao da capacidade na preparaçao desta classe no Brasil. Aproximadamente na mesma época, o decanolídeo (+/-)-foracantolídeo I também foi preparado26. Uma clivagem oxidativa por nitrosaçao hidrolítica de um precursor bicíclico, metodologia desenvolvida no Brasil, permitiu a construçao do anel carbônico que levou à preparaçao do alvo sintético. Outro decanolídeo preparado no Brasil que demonstrou a capacidade de construçao dessa classe de compostos foi a (-)-decarestrictina D27. A reaçao de Nozaki-Hiyama-Kishi foi empregada na formaçao da ligaçao C-C da lactona, e o estudo da influência dos grupos protetores permitiu controle na formaçao de um novo centro estereogênico e a síntese enantiosseletiva do produto natural. Também a butirolactona (+)-blastmicinona foi preparada pelos "sintéticos" brasileiros. A síntese total do policetídeo envolveu a preparaçao de um organotelureto, seguida de sua resoluçao enzimática28. Esta estratégia permitiu a síntese com excessos enantioméricos superiores à 97%. Contudo, o ápice da demonstraçao da capacidade sintética nacional veio com a preparaçao do (-)-marinisporolídeo C29, a maior e mais complexa molécula já sintetizada no Brasil (Figura 4). Acoplamento cruzado do tipo Stille, olefinaçoes de Takai, Horner-Hadsworth-Emmons e de Julia-Kocienski, reaçao de metátese, reaçoes aldólicas tipo Mukaiyama, tipo Evans e com induçao 1,5-anti, além de ampla manipulaçao de grupos protetores sao exemplos de reaçoes empregadas na preparaçao da complexa molécula, que consolidou de maneira definitiva a grande capacidade nacional neste campo da química orgânica.
Figura 4. Alguns compostos oxigenados sintetizados no Brasil
CONSIDERAÇOES FINAIS A química orgânica sintética, como todos os ramos da ciência, está passando por profundas transformaçoes. A busca por novas metodologias, praticidade, eficiência, escalabilidade e robustez é hoje centro e foco das pesquisas na área, além da associaçao com todas as premissas da sustentabilidade.30 Isso está obrigando a Química Orgânica, como todas as outras áreas, a se adaptar e buscar alternativas mais eficientes, mais limpas e mais elegantes para alcançar as sínteses totais de produtos naturais. Nos últimos 40 anos é clara a evoluçao da comunidade sintética nacional. Nos anos 70, longas sínteses e alvos de menor complexidade eram a tônica. Poucas eram as contribuiçoes nacionais, devido ao fato de termos uma incipiente comunidade sintética. Depois de 4 décadas, foi natural o amadurecimento. Alvos mais complexos, estratégias mais diretas e metodologias produzidas em nossos laboratórios já sao comuns em várias publicaçoes de autores brasileiros. Nao nos parece mais ser possível afirmar que "tal substância" nao pode ser sintetizada no Brasil. Os exemplos citados neste artigo sao suficientes para demonstrar a capacidade que se instalou em nossa crescente comunidade, além de várias metodologias empregadas nas sínteses escolhidas terem sido desenvolvidas em nosso território. Por fim, podemos afirmar que ganhamos maturidade para desenvolver e consolidar uma química orgânica sintética de reconhecimento internacional, e assim contribuir com a Ciência Brasileira e o desenvolvimento nacional.
AGRADECIMENTOS O autor agradece à toda comunidade da Química Orgânica do Brasil, por todos seus diários esforços em prol de uma ciência mais digna e de melhor qualidade, e na busca por um país mais preparado para os novos desafios do desenvolvimento.
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