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Busca virtual de compostos bioativos: conceitos e aplicações Virtual screening of bioactive compounds: concepts and aplications |
Erika Piccirillo; Antonia Tavares do Amaral*
Departamento de Química Fundamental, Instituto de Química, Universidade de São Paulo, Avenida Professor Lineu Prestes, 748, 05508-000 São Paulo - SP, Brasil Recebido em 11/12/2017 *e-mail: atdamara@iq.usp.br The search and use of bioactive compounds for different applications have been investigated, since ancient time. Virtual screening (VS) has emerged as alternative methodological approach to the Combinatory Chemistry and High-Throughput Screening (HTS) in identifying novel drug candidates. In VS, only compounds that are selected applying different computational tools to huge virtual libraries of compounds are further tested in vitro. However, the effective use of VS model applications have some challenges such as the inherent complexity of the ligand-receptor interactions as well as by other factors such as ligand and receptor multiple conformations and also ligand metabolic stabilities and toxicities. Altogether these difficulties are hardly overcome using only one computational tool. Therefore, in the literature, it has been suggested to apply a sequence of different filters, such as filters that select compounds through similarity, pharmacophore and docking. In this review, we describe the advantages, limitations and examples of recent successful applications of some of these filters, including drug-like properties, structural properties, 2D similarity, pharmacophore, shape and docking filters. Moreover, we present the main steps involved in the preparation of virtual libraries of compounds that can be used in the VS. INTRODUÇAO O interesse pela busca e utilizaçao de compostos bioativos, em particular daqueles usados para fins terapêuticos, já consta de relatos importantes entre as civilizaçoes antigas, como a egípcia, a greco-romana e a chinesa.1-3 Considerando o grande interesse nos compostos bioativos com uso terapêutico, estes receberao um destaque especial em nosso artigo. No entanto, gostaríamos de salientar que as abordagens aqui descritas podem também ser aplicadas na busca de compostos bioativos com outras finalidades, como, por exemplo, defensivos agrícolas. Até a metade do século XX, os medicamentos usados pelo homem eram exclusivamente de origem natural (animal, vegetal e/ou mineral),4,5 sendo seus princípios ativos (fármacos), principalmente, substâncias isoladas de produtos naturais de plantas e metabólitos secundários de microrganismos.2,5 Dentre estes, podemos citar: a morfina (extraída da papoula, Papaver somniferum), a quinina (extraída de espécies de Cinchona) e a penicilina (extraída do fungo Penicillium sp.) (Figura 1 (a)). Neste período, a descoberta de fármacos era feita por "tentativa e erro", em geral, testando-se aleatoriamente diferentes produtos naturais contra as mais diversas doenças e observando sua atividade biológica. Nao raro, na literatura, encontram-se compostos descobertos ao acaso, "com base" simplesmente na dedicaçao/intuiçao/sorte do cientista, como, por exemplo, a penicilina, o clordiazepóxido, a sacarina, a fenolftaleína, entre outros.6 Com o avanço das Ciências Naturais, em especial da Química e da Biologia, o homem passou a estudar sistematicamente as plantas de uso medicinal.6 Neste contexto, as substâncias isoladas de plantas começavam a ser modificadas, de forma mais ou menos sistemática, em laboratório, visando a conseguir compostos com atividades biológicas otimizadas, ou seja, mais ativos frente ao seu alvo biológico e com menor toxicidade.7-10 Um dos primeiros exemplos de fármaco semissintético baseado em substância isolada de planta é o ácido acetilsalicílico (Aspirina®), sintetizado por Felix Hoffmann, em 1897 (Figura 1 (a)). Este composto é uma forma menos tóxica do ácido salicílico, que é o principal metabólito da salicina (princípio ativo encontrado na casca do salgueiro, Salix alba). O ácido acetilsalicílico foi introduzido no mercado em 1899, sendo usado até os dias de hoje nao apenas como analgésico e anti-inflamatório, mas também como um inibidor da agregaçao plaquetária.1,11
Figura 1. Representaçao da estrutura 2D de alguns fármacos: (a) extraídos de produtos naturais (morfina, quinina, penicilina G) e semissintético (ácido acetilsalicílico) e (b) desenvolvidos usando SBDD (captopril e dorzolamida)
A descoberta do ácido acetilsalicílico marcou, de certa forma, o início da era dos fármacos sintéticos.2 Assim, novos compostos eram sintetizados e testados em modelos animais e/ou preparaçoes de órgaos. Neste período, o processo de desenvolvimento era guiado por hipóteses químicas e/ou biológicas, sendo limitantes as etapas tanto de síntese destes novos compostos quanto da avaliaçao de suas atividades biológicas.12 No início dos anos sessenta13,14 houve um avanço significativo no planejamento racional de compostos bioativos, em especial de fármacos, com o início dos estudos de QSAR (do inglês Quantitative Structure-Activity Relationships - Relaçoes Quantitativas entre Estrutura química e Atividade biológica). Antes disso, vários autores já haviam tentado propor equaçoes correlacionando a "resposta biológica/atividade fisiológica" de um determinado composto com sua estrutura química.15 No entanto, somente em 1964, com as publicaçoes simultâneas de Hansch e Fujita 14 e de Free e Wilson,16 as relaçoes entre estrutura química e atividade biológica passaram a ser descritas de forma quantitativa, sendo este considerado o ano de nascimento do QSAR.15 Com o surgimento dos modelos de QSAR, pela primeira vez, os conceitos de físico-química orgânica foram usados para descrever de modo quantitativo a atividade biológica de um determinado composto, aplicados inicialmente para séries restritas de moléculas. Aspectos tridimensionais da interaçao composto-sistema biológico foram incluídos, dando origem aos modelos de QSAR-3D.15 Posteriormente, com o avanço na aquisiçao de dados tanto para os sistemas químicos como para os biológicos (vide próximos parágrafos), um grande número de informaçoes foi gerado. Como consequência, nos últimos anos, foram identificadas ferramentas, fundamentalmente matemáticas, que permitiram decodificar este volume imenso de informaçoes, em termos estruturais e biológicos.17 A contribuiçao do QSAR para o avanço do planejamento de fármacos é bastante reconhecida na literatura, sendo este considerado por alguns autores um dos primeiros exemplos de planejamento de fármacos com o auxílio do computador (CADD, do inglês Computer-Aided Drug Design),13,18 embora o termo CADD só tenha sido criado alguns anos depois. Uma revisao detalhada dos inúmeros estudos e aplicaçao dos modelos de QSAR em diferentes sistemas biológicos está fora do escopo deste artigo, sendo descritos em diversas publicaçoes e revisoes.19-24 A partir dos estudos e aplicaçao dos modelos de QSAR/QSAR-3D, lentamente houve um progresso no planejamento e síntese de novos compostos bioativos, sendo, ainda, os testes biológicos a etapa limitante. Esta barreira só foi superada com a disponibilidade dos testes in vitro usando, por exemplo, ensaios de inibiçao enzimática. Os testes in vitro permitiram nao só avaliar de forma mais rápida os análogos sintetizados, mas também aumentaram a confiabilidade dos resultados obtidos.12 Subsequentemente, o aparecimento da Química Combinatória25 e da triagem biológica automatizada em alta escala26 (HTS, do inglês High-Throughput Screening), bem como da evoluçao da engenharia genética, permitiram a síntese de grandes bibliotecas de compostos, que passaram a ser testados frente a seus alvos biológicos, num período de poucas semanas.27 Ao mesmo tempo, o planejamento de compostos bioativos, em especial de fármacos, se beneficiou grandemente do desenvolvimento da cristalografia de raios-X de proteínas e de técnicas multidimensionais em Ressonância Magnética Nuclear (RMN).8,13,28-30 Estas técnicas permitiram elucidar grande número de estruturas tridimensionais (3D) de potenciais alvos biológicos, sendo grande parte delas disponível no Protein Data Bank (PDB).31 No entanto, embora a Química Combinatória e o HTS tenham gerado um vasto número de compostos com diversidade estrutural, possibilitando a seleçao de ligantes que apresentassem um ótimo ajuste a um determinado alvo biológico, é consenso na literatura10,29,32 que estas técnicas nao levaram necessariamente à descoberta de novos fármacos. Alertando-se, assim, para a necessidade de se considerarem, o mais cedo possível, outras características do ligante que o tornam um fármaco.10,33,34 Isto significa que, além do ótimo ajuste do ligante a um determinado alvo biológico, devem-se considerar também sua absorçao, distribuiçao, metabolismo e eliminaçao e sua toxicidade, as chamadas propriedades ADME ou ADMET do ligante. Neste cenário, a inclusao de informaçoes sobre as propriedades físico-químicas e estruturais dos ligantes e o progresso dos métodos quimiométricos desempenharam um papel fundamental.9,10,12,35-38 A disponibilidade das estruturas 3D dos alvos biológicos impulsionou o surgimento de novas estratégias no planejamento de compostos bioativos, complementares às já utilizadas na época. Estas sao denominadas Structure Based Drug Design (SBDD), ou seja, planejamento de fármacos baseado na estrutura do alvo biológico. Por outro lado, as estratégias que nao consideram a estrutura do alvo biológico passaram a ser denominadas Ligand Based Drug Design (LBDD), ou seja, planejamento de fármacos baseado na estrutura do ligante. Neste artigo, os termos "alvo biológico" ou "receptor" serao usados indiscriminadamente para descrever uma macromolécula biológica na qual o composto bioativo, ou fármaco, ou ligante, deve se ligar. Normalmente esta macromolécula é uma proteína, mas também pode ser RNA ou DNA. E, ainda, o termo "ligante" será usado indiscriminadamente para se referir a qualquer molécula que se liga a uma macromolécula biológica, podendo ser um agonista, antagonista, substrato ou inibidor. Historicamente se considera que o primeiro fármaco descoberto usando modelo estrutural da proteína foi o captopril (Figura 1 (b)), inibidor da enzima conversora de angiotensina (ECA).1,6 A busca de inibidores da ECA como fármacos anti-hipertensivos se iniciou em 1965, com o pesquisador brasileiro Dr. Sergio H. Ferreira, a partir do estudo dos efeitos de peptídeos extraídos de veneno de cobra no sistema renina-angiotensina-aldosterona.1 No entanto, os resultados mais promissores só foram obtidos a partir da elucidaçao da estrutura 3D da carboxipeptidase A (enzima similar à ECA) complexada ao ácido L-benzil succínico. Este complexo foi usado como modelo para o sítio ativo da ECA, levando à descoberta, numa primeira etapa, do inibidor N-succinoil-l-prolina (IC50 = 330 µmol L-1) e, em seguida, do captopril (IC50 = 23 nmol L-1, descoberto em 1977).1,11 Ainda, no final dos anos noventa, foi descoberta a dorzolamida (Figura 1 (b)), um inibidor da enzima anidrase carbônica, usada no tratamento do glaucoma. A dorzolamida é o primeiro fármaco desenvolvido a partir da elucidaçao da estrutura 3D de seu alvo biológico, a anidrase carbônica.11,39 Além do captopril e da dorzolamida, outros exemplos de fármacos descobertos empregando estratégias de SBDD sao:1 donepezila,40 inibidor da acetilcolinesterase, usado no tratamento da Doença de Alzheimer; nelfinavir e amprenavir,11 inibidores da protease do vírus da imunodeficiência humana, usados no tratamento da síndrome da imunodeficiência adquirida; zanamivir e oseltamivir,41,42 inibidores da neuraminidase, antivirais usados no combate da infecçao pelo vírus influenza; imatinibe,43 inibidor da proteína quinase, anticancerígeno; aliscireno,44 inibidor da renina, usado para tratar hipertensao, e sitagliptina,45 inibidor da DPP-4 (dipeptidil peptidase 4), usada no tratamento do diabetes Tipo II. Contudo, o número de fármacos provenientes do uso de abordagens SBDD é, ainda, relativamente pequeno.1,46,47 Mais recentemente, além de se utilizar a estrutura 3D do alvo biológico, a flexibilidade deste alvo vem sendo cada vez mais incluída nas estratégias de SBDD. A importância da flexibilidade conformacional para a interaçao ligante-receptor é amplamente aceita na literatura.48-50 No entanto, somente com os avanços computacionais obtidos nas últimas décadas, a inclusao desta flexibilidade nos protocolos de SBDD se tornou factível, por meio, por exemplo, de simulaçoes de dinâmica molecular (DM) clássicas.48-51 É importante ressaltar que diferentes ferramentas computacionais vêm sendo amplamente usadas na indústria farmacêutica nas etapas tanto de descoberta (fase pré-clínica) como de desenvolvimento (fase clínica). Como exemplo do uso destas ferramentas, podemos citar: na identificaçao de hits52 e de compostos líderes (do inglês leads);53 no processo de otimizaçao dos compostos líderes; na prediçao e otimizaçao de suas propriedades ADMET e no desenvolvimento de formulaçao, entre outros.54-57
BUSCA VIRTUAL A busca virtual, ou triagem virtual, surgiu em resposta ao insucesso obtido com o uso da Química Combinatória em conjunto com os ensaios HTS, já que se observou que testar aleatoriamente um grande número de compostos nao resultou num avanço significativo na descoberta de novos fármacos. A busca virtual consiste em pré-selecionar os compostos com o auxílio do computador a partir de bancos de dados virtuais com um grande número de moléculas. Desta forma, apenas os compostos pré-selecionados sao submetidos aos testes de atividade in vitro. Esta pré-seleçao é feita prevendo-se, virtualmente, a atividade biológica de interesse por meio de diferentes abordagens (LBDD e/ou SBDD). Como vantagens desta estratégia têm-se que os compostos estudados nao precisam, necessariamente, existir fisicamente e que neste "teste virtual", in silico, nao há consumo de material.29 No entanto, diferentemente dos HTS, para se realizar a busca virtual torna-se crucial conhecer as propriedades responsáveis pela(s) interaçao(oes) entre o composto e o sistema biológico.29,58-60 Num primeiro momento, nao se faz necessário considerar algumas limitaçoes experimentais inerentes aos compostos selecionados, tais como solubilidade, formaçao de agregados, estabilidade, entre outras.29 Contudo, a importância de evitar o quanto antes resultados falso-positivos, bem como de priorizar apenas compostos com grandes chances de sucesso na fase clínica, tem feito com que estes aspectos sejam incluídos já nas etapas iniciais de seleçao. Para que os ligantes e/ou compostos selecionados possam, no futuro, se tornar fármacos é desejável considerar na busca virtual determinadas características, como sua solubilidade e suas propriedades ADMET.33,34,60 Sendo assim, tanto as informaçoes disponíveis sobre a(s) interaçao(oes) ligante-receptor quanto sobre as propriedades do ligante sao usadas na construçao do modelo de busca virtual. Em seguida, este é aplicado a um banco de dados virtual de moléculas. No entanto, a proposiçao de modelos de busca virtual com alta taxa de acerto é dificultada pela complexidade inerente às interaçoes ligante-receptor em nível molecular,61,62 além de outros fatores, tais como: múltiplos modos de ligaçao do ligante,63,64 múltiplas conformaçoes do ligante e do receptor,29,49,64,65 ligaçao com proteínas plasmáticas e propriedades ADMET do ligante.38,66,67 Tais dificuldades sao raramente superadas com a utilizaçao de uma única ferramenta computacional.68 Como alternativa, na literatura se sugere aplicar diferentes ferramentas de modo sequencial,29 como se fossem filtros de seleçao. Estes filtros podem ser aplicados em qualquer sequência sem, em princípio, alterar o resultado final da seleçao. Entretanto, com o objetivo de se otimizar o uso dos recursos computacionais, em geral, os filtros sao aplicados em ordem crescente de complexidade do cálculo. Assim, para o banco de dados virtual de moléculas se aplicam primeiramente filtros que necessitam de baixos recursos computacionais, deixando os filtros mais complexos e elaborados para serem aplicados nas etapas finais do processo, quando o número de compostos selecionados já for significativamente reduzido. De modo geral, os filtros podem ser agrupados em duas categorias distintas: (i) filtros uni- e bidimensionais (1D e 2D), que se baseiam nas propriedades físico-químicas e na conectividade dos compostos (filtros de propriedades "fármaco-similar" e de similaridade 2D) e (ii) filtros tridimensionais (3D), que se baseiam na distribuiçao espacial de características específicas, como regioes doadoras e/ou aceptoras de ligaçao de hidrogênio ou aquelas relacionadas ao volume da molécula (filtros farmacofóricos e de "formato molecular"), e no ancoramento. As vantagens, limitaçoes e exemplos de aplicaçoes recentes de sucesso destes filtros de seleçao serao apresentados e discutidos a seguir. O sucesso da busca virtual vai depender da qualidade tanto dos filtros de seleçao quanto do banco de dados usados.64 Além disso, cabe ressaltar que, por melhor que seja o poder de previsao do modelo proposto, este deve ser sempre submetido à validaçao experimental (usando-se, por exemplo, cristalografia de raios-X e/ou ensaios enzimáticos) com o objetivo de verificar sua utilidade na seleçao de compostos/ligantes bioativos.29,46,69 De modo semelhante aos ensaios de HTS, os compostos selecionados por meio da busca virtual que apresentam a atividade biológica de interesse, comprovada por validaçao experimental, sao denominados hits (representando resultados positivos).
FILTROS UNI- OU BIDIMENSIONAIS Os filtros de seleçao podem ser uni- ou bidimensionais, com base nas propriedades físico-químicas e/ou na conectividade dos átomos, sendo eles, por exemplo, filtros de propriedades "fármaco-similar", filtros de características estruturais e filtros de similaridade 2D. Filtros de propriedades "fármaco-similar" A ideia de usar propriedades "fármaco-similar" (do inglês "drug-like") como filtro de seleçao na busca virtual vem da observaçao de que fármacos apresentam certas propriedades físico-químicas e/ou estruturais que os distinguem dos demais compostos. Dentre as características desejadas para um fármaco podemos citar: ser solúvel em água e ser, de preferência, biodisponível por via oral. Um dos trabalhos pioneiros no sentido de identificar quais propriedades físico-químicas de um composto estao relacionadas com uma adequada biodisponibilidade oral foi desenvolvido por Lipinski e colaboradores em 1997. Neste trabalho,70 Lipinski analisou 2.245 fármacos que apresentavam uma boa biodisponibilidade oral (absorçao ou permeabilidade), utilizando quatro parâmetros físico-químicos que já haviam sido associados com medidas de permeabilidade, sendo eles: massa molecular, coeficiente de partiçao octanol/água calculado (usando o programa ClogP), número de átomos doadores de ligaçao de hidrogênio (soma dos átomos O-H e N-H) e número de átomos aceptores de ligaçao de hidrogênio (soma dos átomos O e N). Cerca de 90% dos compostos analisados apresentam massa molecular (MM) ≤500 g/mol, ClogP ≤5, número de átomos doadores de ligaçao de hidrogênio (HBD, do inglês hydrogen bond donor) ≤5 e número de átomos aceptores de ligaçao de hidrogênio (HBA, do inglês hydrogen bond acceptor) ≤10. E menos de 10% dos compostos analisados apresentam dois parâmetros fora da faixa descrita acima. Baseado nestes resultados, Lipinski sugeriu que compostos que apresentem dois ou mais parâmetros com valores fora destas faixas de corte têm grande chance de serem pouco permeáveis. A aplicaçao destes quatro parâmetros, acompanhadas dos valores de corte descritos acima, é chamada de "Regra dos 5" de Lipinski. Desde sua publicaçao em 1997, o artigo de Lipinski foi citado mais de 4.900 vezes (segundo o Scopus, acessado em agosto de 2017). Atualmente, a "Regra dos 5" de Lipinski é amplamente difundida na área da Química Medicinal, sendo usada rotineiramente nos protocolos de descoberta de fármacos.10,26,36 Uma série de outras regras para prever a biodisponibilidade oral foi derivada da regra de Lipinski, sugerindo-se, no entanto, diferentes valores de corte de acordo com os tipos de compostos analisados. A Tabela 1 mostra algumas das regras derivadas da "Regra dos 5".
Os valores de corte descritos para os compostos líderes sao menores quando comparados com os descritos para os fármacos (Tabela 1). Esta diferença se deve ao fato de que, durante a fase de otimizaçao da atividade de um composto líder, existe uma tendência de aumento da complexidade (por exemplo: aumento da MM, aumento do número de anéis e de ligaçoes com rotaçao livre) e da lipofilicidade destes compostos. Assim, para evitar que os compostos obtidos após este processo tenham baixa biodisponibilidade oral, seus valores de corte sao menores. Ainda, como esperado, quanto menor o composto, menores sao os correspondentes valores de corte usados. Além destes parâmetros físico-químicos, outros foram analisados e considerados como importantes para prever a biodisponibilidade oral de um fármaco, entre eles: o número de ligaçoes com livre rotaçao (RTB, do inglês rotatable bonds), área de superfície polar, número de anéis aromáticos e logD calculado (coeficiente de partiçao no sistema octanol/água incluindo a contribuiçao da ionizaçao para partiçao).76-78 Considerando que as abordagens apresentadas nesta revisao também podem ser usadas na descoberta de novos agroquímicos, descreve-se na literatura74,79 uma outra regra, derivada da de Lipinski, aplicada agora à inseticidas e à herbicidas pós-emergenciais. Esta regra foi proposta por Tice74 considerando diferentes valores de corte para cada um dos parâmetros usados por Lipinski e incluindo ainda o número de RTB (Tabela 1) como parâmetro. Além da biodisponibilidade oral, outras propriedades "fármaco-similar" relevantes podem ser incluídas nestes filtros, entre elas a solubilidade aquosa, a estabilidade metabólica e a toxicidade, sendo a solubilidade aquosa uma propriedade bastante desejada para um fármaco. No contexto da descoberta de fármacos, é mais importante garantir que o fármaco seja solúvel nas condiçoes experimentais e/ou no sistema biológico do que determinar de forma exata seu grau de solubilidade. Além de ser importante para permitir a avaliaçao biológica dos fármacos, a solubilidade está associada à sua biodisponibilidade oral.70 No entanto, a dificuldade de se prever a solubilidade aquosa de uma molécula é inerente à complexidade dos fatores envolvidos no processo de solubilizaçao. Citam-se, entre estes, as propriedades doadoras e/ou aceptoras de ligaçao de hidrogênio do composto e da água e o custo energético necessário para romper a estrutura cristalina no estado sólido permitindo sua solvataçao. As dificuldades inerentes para se prever esta propriedade sao um consenso na literatura.59,70,80,81 Assim, existem diversos modelos descritos na literatura82 baseados em descritores moleculares, bidimensionais ou tridimensionais, que variam desde simples índices até complexos modelos de QSPR (Quantitative Structure Property Relationships). Nenhum destes modelos é capaz de prever corretamente a solubilidade aquosa, considerando todo o espaço químico conhecido. Entre os modelos de prediçao de solubilidade aquosa descritos na literatura, podemos citar o "Solubility Forecast Index - SFI"80 e o Soly,81 calculado pelo programa Volsurf+.83 O Solubility Forecast Index - SFI foi proposto por Hill e Young,80 usando 36.610 compostos disponíveis na GSK. Estes foram divididos em três grupos segundo seus graus de solubilidade aquosa medidos experimentalmente: compostos com baixa solubilidade (<30 µmol L-1), compostos com solubilidade intermediária (30 - 200 µmol L-1) e compostos com alta solubilidade (>200 µmol L-1). Os autores propuseram que a solubilidade aquosa poderia ser descrita usando os valores de logD em pH 7,4 (clogDpH7,4, calculados pelo programa ACDLabs) e o número de anéis aromáticos (#Ar), dando origem ao índice SFI expresso pela Equaçao 1. Analisando os valores de SFI obtidos para os compostos com baixa, com intermediária e com alta solubilidades, os autores sugeriram que compostos com valores de SFI >5 teriam maior probabilidade de apresentar solubilidade aquosa baixa ou intermediária.80 Assim, este modelo nao calcula o grau de solubilidade de um composto, mas o classifica segundo a probabilidade de apresentar ou nao uma alta solubilidade aquosa. Embora as formas gráficas usadas para apresentar e comprovar as relaçoes entre a solubilidade e o SFI tenham sido criticadas na literatura,84 o uso de índices como o SFI como critério para selecionar compostos com maior probabilidade de apresentar alta solubilidade é interessante devido à simplicidade deste modelo. Diferentemente do índice SFI, o modelo de solubilidade aquosa proposto por Mannhold e colaboradores81 calcula o grau de solubilidade (denominado Soly). Outra diferença entre estes modelos é que o último foi obtido usando o método de Mínimos Quadrados Parciais (do inglês, Partial Least Squares - PLS)85 e campos de interaçoes moleculares (explicados em detalhes a seguir). O modelo de PLS foi construído usando 1.028 moléculas com valores de solubilidade aquosa determinados experimentalmente, apresentando os seguintes parâmetros estatísticos: r2 = 0,74; q2 = 0,73 (prediçao interna do modelo) e erro de prediçao externa de ~ 0,7 em unidades de log. Devido ao erro de prediçao externa, os autores concluem que o modelo nao deva ser usado para prever a solubilidade de compostos muito similares, podendo, no entanto, ser usado como filtro para remover compostos com valores de Soly abaixo de um determinado valor de corte.81 Entretanto, nenhum valor é sugerido. Uma das críticas para a aplicaçao de filtros de propriedades "fármaco-similar" na construçao de bancos de dados para serem usados na busca virtual é que estes reduzem o espaço químico, levando a uma possível diminuiçao na diversidade do banco.86 Neste mesmo sentido, outra crítica feita à aplicaçao destes filtros é a recorrente observaçao de que alguns alvos biológicos ainda nao explorados têm sítios de ligaçao grandes e bastante lipofílicos ou bastante polares. Nestes casos, o tamanho e as características destes sítios sugerem que a busca de hits e/ou compostos líderes deva ser feita usando compostos fora do "espaço químico de Lipinski".78,87,88 Além disso, algumas classes de compostos (ex. antibióticos, antifúngicos e produtos naturais) nao estao dentro do espaço químico definido pela regra de Lipinski, entretanto, apresentam uma boa biodisponibilidade oral.70 Estas classes de compostos têm características estruturais que as tornam substratos de transportadores naturais. Pelo exposto, embora algumas vezes criticada, a aplicaçao de filtros de propriedades "fármaco-similar" durante as etapas de desenvolvimento de um fármaco pode ser, ainda, recomendada,10,26,36 de acordo com o sistema estudado. Filtros de características estruturais A aplicaçao desses filtros tem como objetivo remover compostos com características estruturais indesejadas em um fármaco,89 sendo comumente denominados de "garbage filters".12,37 Algumas destas características sao associadas aos resultados falso-positivos nos ensaios in vitro. A preocupaçao de evitar o quanto antes resultados falso-positivos no processo de descoberta de fármaco é um consenso na literatura.10,37,90-94 Neste sentido, esta preocupaçao é bem descrita pelo conceito "fail fast, fail cheap".95 A traduçao literal deste conceito é "falhe rápido, falhe barato" e seu significado pode ser facilmente entendido quando se consideram tanto o tempo investido quanto os altos custos envolvidos nas fases de descoberta/desenvolvimento de fármacos (pré-clínica e clínica). Em 2014, Mullard96 estimou que o custo para se desenvolver um fármaco pode chegar a até 2,6 bilhoes de dólares. Além do custo exorbitante, este processo é bastante demorado, podendo levar de 10 a 15 anos. Assim, considerando a importância de identificar falso-positivos na etapa de descoberta (fase pré-clínica) bem como de selecionar apenas compostos com grande chance de sucesso para avançar nas etapas de desenvolvimento (fase clínica), um grande esforço vem sendo feito para entender as razoes e evitar, o mais cedo possível, a ocorrência destes falso-positivos e/ou insucessos.10,36,90,94,97-99 Dentre elas, a presença de grupos reativos37 bem como de subestruturas já reconhecidas por interferir nestes ensaios.90 Nos próximos parágrafos, serao brevemente descritos alguns dos motivos para ocorrência de falso-positivos nos ensaios in vitro. Compostos contendo grupos reativos frente a proteínas sao um motivo de resultados falso-positivos, pois a atividade observada para estes compostos se deve mais à sua reatividade do que à sua capacidade de interagir com o alvo de interesse. Os exemplos mais comuns de compostos reativos atuando como falso-positivos formando ligaçoes covalentes sao aqueles que possuem em sua estrutura grupos ou centros eletrofílicos. Estes grupos sao agentes alquilantes e/ou acilantes reativos frente a nucleófilos biológicos (ex. proteínas plasmáticas e glutationa). Uma lista de grupos reativos frente a nucleófilos biológicos foi descrita por Rishton100 e atualizada, em 2012, por Bologa e Oprea.37 A Figura 1S apresenta uma lista de alguns destes grupos reativos. E, embora estes grupos estejam presentes em algumas classes terapêuticas, Rishton defende que compostos contendo grupos reativos identificados como "ativos" devem ser avaliados com cautela para verificar se os resultados nao sao falso-positivos.100 Em 2002, um grupo de pesquisadores da Hoffmann-La Roche101 analisou as características de compostos identificados como hits em mais de oito ensaios HTS com diferentes alvos, bem como de compostos in house usados em pelo menos seis diferentes projetos envolvendo a descoberta de fármacos. Embora ativos, os autores salientam que as razoes para a recorrente identificaçao destes compostos como hits sao indesejáveis, ocorrendo por inibiçao inespecífica de determinados alvos (ou seja, compostos promíscuos) e/ou pela interferência com o ensaio e/ou com o método de detecçao (como moléculas coloridas ou fluorescentes). Seja devido a uma atividade promíscua seja por interferirem no ensaio, os autores concluem que estes hits geralmente nao sao bons compostos líderes, sendo denominados frequent hitters.101 Embora os autores tenham conseguido separar os frequent hitters (479 compostos) dos nao frequent hitters (423 compostos) usando modelos de redes neurais, eles nao encontraram subestruturas comuns a todos, ou a quase todos, que pudessem ser usadas como filtros na busca virtual. Em 2010, Baell e Holloway,90 analisando um conjunto de 93.212 compostos da biblioteca de HTS do WEHIMR - Walter and Eliza Hall Institute of Medical Research - testados em seis diferentes campanhas de HTS, observaram que 2.062 (2%) deram resultados positivos em pelo menos quatro delas. Em todas estas campanhas de HTS foram feitos ensaios de inibiçao de IPP (interaçoes proteína-proteína), usando a tecnologia AlphaScreen. Além dos motivos descritos acima, os autores também sugerem que o comportamento promíscuo destes compostos possa ser devido a sua capacidade de reagir com oxigênio singleto (no caso ensaios tipo AlphaScreen). Ainda, a partir da análise da estrutura destes hits, os autores sugeriram uma série de filtros estruturais agrupados de acordo com o número de compostos que apresentam a subestrutura sugerida como filtro. Por fim, os autores identificaram dez classes de compostos capazes de interferir com vários tipos de ensaios, denominados por eles como PAINS (do inglês, Pan Assay INterference compoundS) (Figura 2S). Como recomendaçao, sugerem evitar compostos contendo estas dez classes, embora algumas delas possam ser encontradas em fármacos já disponíveis no mercado (6,5%). Os autores salientam que, quando presentes em fármacos, estas classes também sao frequentemente associadas com sua toxicidade, reatividade ou instabilidade metabólica.90 O impacto dos resultados de Baell e Holloway90 na área de Química Medicinal foi tao grande89 que algumas revistas científicas de renome na área passaram a recomendar que compostos submetidos a ensaios in vitro fossem analisados quanto à presença de classes identificadas como PAINS. Pelo mesmo motivo, estas subestruturas foram disponibilizadas como filtros em vários programas usados para preparar bancos de dados virtuais de moléculas. Por sua importância, mais recentemente, dois grupos diferentes102,103 aplicaram e analisaram, em grande escala, estas classes identificadas como PAINS usando bancos de dados públicos. Entretanto, ambos mostraram que nao há uma relaçao direta entre a presença destas classes e a frequência com que determinado composto era identificado como hit, como proposto. Pelo contrário, observaram que alguns dos compostos destas classes90 foram identificados mais frequentemente como inativos do que como ativos. E, ainda, embora reconheçam a ocorrência de compostos capazes de interferir com vários tipos de ensaios,102,103 os autores nao recomendam o uso indiscriminado dos filtros sugeridos por Baell e Holloway.90 Considerando todos os aspectos levantados acima, a aplicaçao de filtros de características estruturais às bibliotecas e/ou aos bancos de dados de compostos mesmo antes que estes sejam submetidos a ensaios biológicos (in vitro ou in vivo) deve ser feita com muita cautela. Do ponto de vista dos autores desta revisao, somos da opiniao que os filtros de características estruturais devem ser utilizados somente quando houver embasamento químico e/ou biológico específico que os justifique. Assim, por exemplo, num projeto de busca virtual de inibidores nao covalentes de proteases, justifica-se o uso de filtros para remoçao de compostos com grupamentos eletrofílicos.104 Filtros de Similaridade 2D Filtros de similaridade se baseiam no conceito de que moléculas semelhantes apresentam atividades biológicas semelhantes. No entanto, a similaridade ou dissimilaridade entre duas moléculas depende das propriedades e/ou dos critérios usados para compará-las.105 Nos filtros de similaridade usando estruturas 2D, as moléculas sao descritas na forma de um conjunto de caracteres denominado fingerprint molecular (em português:26 "impressao digital" molecular), representado na Figura 2.
Figura 2. Representaçao de alguns tipos de fingerprints moleculares: (a) baseado em subestruturas-chave, (b) topológico ou path-based e (c) circular
Os fingerprints moleculares consistem em uma série de bits (valores 0 ou 1), representando a ausência (0) e a presença (1) de uma determinada subestrutura/fragmento em uma molécula (Figura 2). Estes fingerprints moleculares podem ser agrupados em quatro tipos:106
A escolha do tipo de fingerprint molecular irá influenciar significativamente o resultado da busca virtual. Dentro do nosso conhecimento, nao existe um único tipo de fingerprint molecular que seja sempre capaz de encontrar todos os compostos com atividade biológica. Recentemente, encontram-se na literatura publicaçoes comparando os diferentes tipos de fingerprints moleculares.109 Uma vez que os fingerprints tenham sido gerados, estes podem ser comparados usando diferentes medidas de similaridade, sendo o coeficiente de Tanimoto (Tc), representado pela Equaçao 2, a mais comumente empregada.106,110 Assim, o valor do Tc entre as moléculas A e B é calculado dividindo o número de bits iguais a 1 nas duas moléculas ("c", bits comuns, mostrado no numerador) pelo resultado da soma do número de bits iguais a 1 na molécula A ("a") e na molécula B ("b") subtraindo-se o número de bits comuns às duas ("c"). O valor do Tc varia de 0 a 1, significando 0 (zero) nenhuma sobreposiçao entre os fingerprints e 1 (um) uma completa sobreposiçao dos fingerprints. A magnitude do valor do Tc depende do número de bits presentes nos fingerprints. Assim, quanto maior a molécula de referência, maiores serao os valores de Tc. Num filtro de similaridade 2D, como valor de corte do Tc, sugere-se escolher aquele capaz de diferenciar compostos ativos dos inativos (denominados, geralmente, de decoys).111 Na busca virtual, estes filtros podem ser usados para encontrar compostos estruturalmente semelhantes a determinado(s) composto(s) que já apresente(m) a atividade biológica de interesse.112 Desta forma, um dos fatores que afeta o sucesso dos filtros de similaridade 2D é a escolha da molécula de referência, pois nem todas as regioes da molécula sao igualmente relevantes para a atividade biológica. Os filtros de similaridade 2D sao um dos filtros mais simples de serem utilizados na busca virtual, podendo ser aplicados mesmo quando as informaçoes sobre a relaçao entre estrutura e atividade biológica sao ainda bastante limitadas.112 Outra aplicaçao da similaridade 2D é no agrupamento de compostos previamente selecionados por outros filtros, escolhendo-se um composto como representativo de cada grupo. Uma das vantagens da similaridade 2D é seu baixo custo computacional, podendo ser aplicada a bancos de dados com um grande número de compostos.112 No entanto, sua principal limitaçao é nao considerar a conformaçao 3D da molécula.110 E, ainda, nao menos importante é a ocorrência de compostos similares apresentando, no entanto, atividades biológicas distintas, denominados "activity cliffs".113-115
FILTROS TRIDIMENSIONAIS Os filtros tridimensionais consideram a distribuiçao espacial das propriedades e/ou a estrutura 3D de cada um dos compostos, ligantes ou moléculas. Exemplos destes filtros sao os farmacofóricos, os baseados no formato (do inglês "shape") e o ancoramento, sendo este último o com maior custo computacional. Filtros farmacofóricos Os filtros farmacofóricos selecionam compostos a partir de modelos farmacofóricos. Por definiçao, farmacóforo é um arranjo espacial das propriedades estéricas e eletrônicas necessárias para garantir interaçoes supramoleculares (nao-covalentes) ótimas entre um ligante e seu alvo biológico específico, e, assim, ativar (ou inibir) uma resposta biológica.116 O farmacóforo é um conceito abstrato para considerar as características moleculares comuns em uma série de ligantes que sao cruciais para sua interaçao com o alvo biológico (Figura 3). Assim, um farmacóforo nao é uma molécula real, tampouco uma associaçao de grupos funcionais.116
Figura 3. Representaçao de um modelo farmacofórico típico gerado a partir do complexo ligante-receptor: (a) reconhecimento das interaçoes no complexo ECA-lisinopril (Ki = 0,27 nmol L-1)118 usando o programa LigandScout,117 (b) modelo farmacofórico sobreposto ao lisinopril, (c) modelo farmacofórico utilizado na busca virtual e (d) tipos de regioes de interaçao ECA-lisinopril reconhecidas pelo LigandScout,117 sendo HBD e HBA regioes doadora e aceptora de ligaçao de hidrogênio, respectivamente. Complexo ECA-lisinopril obtido diretamente do PDB (código 1O86, resoluçao de 2,0 Å118
Um modelo farmacofórico é um conjunto de regioes de interaçao (características químicas) alinhadas no espaço tridimensional. A natureza destas regioes de interaçao corresponde à das interaçoes nao covalentes ligante-receptor mais comumente observadas na Química Medicinal (ex. doadora e/ou aceptora de ligaçao de hidrogênio, eletrostática, hidrofóbica, cátion-π e π-π). Estes modelos podem ser construídos usando informaçoes da estrutura 3D do complexo ligante-receptor (SBDD) e/ou da estrutura 3D de uma série de ligantes com atividade biológica (LBDD).51,111,117 Quando os modelos sao construídos com base na estrutura 3D do complexo ligante-receptor, a identificaçao das regioes de interaçao importantes para a atividade biológica é feita de modo intuitivo, analisando aquelas presentes no complexo (Figura 3). Por outro lado, quando os modelos sao construídos com base na estrutura de um ligante, ou de uma série de ligantes, a identificaçao destas regioes é mais complexa. Neste último caso, a obtençao da conformaçao bioativa e o alinhamento da série de compostos sao etapas cruciais para a construçao do modelo.119 Nao existe um número ideal de regioes de interaçao para se propor um modelo farmacofórico. Acredita-se que quanto maior o número de regioes de interaçao menos hits serao selecionados.51 Modelos com muitas regioes de interaçao (ex. ≥7) selecionam um número pequeno de hits, que terao uma grande chance de serem similares à estrutura de referência. Por outro lado, modelos com poucas regioes de interaçao (ex. ≤3) irao selecionar hits inespecíficos sendo, portanto, de pouca utilidade para busca virtual.51 De modo análogo ao filtro de similaridade 2D, os filtros usando modelos farmacofóricos sao susceptíveis à ocorrência dos "activity cliffs". Além disso, mais especificamente para estes filtros, é importante lembrar que compostos semelhantes podem, ainda, apresentar diferentes modos de ligaçao.120 Existem diversos programas disponíveis comercialmente que permitem reconhecer e gerar automaticamente modelos farmacofóricos, entre eles: CATALYST,121 FLAP,122 LigandScout117 e MOE.123 Todos estes podem gerar modelos farmacofóricos partindo das estruturas tanto do receptor como do ligante. Independentemente da forma como o modelo farmacofórico tenha sido gerado, este deve ser capaz tanto de selecionar compostos ativos como de diferenciar entre os ativos e os inativos (decoys). Assim, a avaliaçao prévia do desempenho do modelo farmacofórico gerado é bastante importante para o sucesso da busca virtual. Além de se contar o número de compostos ativos e inativos selecionados por um determinado modelo farmacofórico, na literatura sao descritos outros critérios para se avaliar a qualidade dos modelos gerados.124-126 Os critérios mais comumente descritos sao o fator de enriquecimento e a área sobre a curva (AUC, do inglês area under the curve), ambos obtidos a partir da curva ROC (do inglês Receiver Operator Characteristic, Figura 4), que mostra a fraçao de compostos ativos versus a fraçao de compostos inativos para um dado valor de escore (medida do ajuste do composto ao modelo farmacofórico), partindo-se dos compostos com melhor classificaçao.
Figura 4. Representaçao da curva ROC típica mostrando a obtençao da AUC e do fator de enriquecimento (EF) de 10%. Nesta curva, cada ponto representa a fraçao de ativos/inativos selecionados para um dado valor de escore, partindo-se do maior valor de escore até o menor. A linha vermelha representa uma curva com AUC igual a 0,5 (esperada se os compostos tivessem sido selecionados aleatoriamente). Neste exemplo, os valores da AUC e do EF10% sao iguais a 0,81 e a 5 (0,5/0,1), respectivamente
O fator de enriquecimento (EF) é a fraçao de compostos ativos (fa) obtidos quando uma determinada porcentagem de compostos inativos é encontrada (fi), ou seja, EF = fa/fi. Assim, o EF depende do valor da porcentagem de compostos inativos considerado (fi = 1%, 5% ou 10%), variando de 0 a 1/fi. Deste modo, um modelo perfeito apresentaria um valor de EF = 1/fi, enquanto um modelo que seleciona compostos ativos e inativos de modo aleatório teria um valor de EF = 1. O valor do AUC representa a probabilidade de um composto ativo receber um valor de escore maior que um composto inativo. Este valor varia de 0 a 1, sendo 1 o valor esperado para um modelo perfeito. Curvas com AUC = 0,5 indicam que os compostos ativos e inativos sao selecionados de forma aleatória. Estas métricas podem ser usadas para analisar a qualidade de outros filtros usados na busca virtual que serao apresentados nos próximos itens.124 Na literatura sao encontrados vários exemplos de sucesso do uso de modelos farmacofóricos na busca virtual, permitindo identificar compostos ativos frente a diferentes alvos biológicos.127-129 Além dos compostos selecionados apresentarem atividade frente ao alvo de interesse, alguns deles têm características estruturais bastante diferentes daquelas observadas nos compostos usados para construir os modelos. Assim, um exemplo interessante foi observado nos estudos realizados por Rechfeld e colaboradores.129 Estes pesquisadores buscavam inibidores da interaçao PKCε/RACK2 (interaçao proteína-proteína). No entanto, a ausência de informaçoes sobre inibidores nao peptídicos desta interaçao, associada às características do sítio ativo da PKCε (grande, raso, exposto ao solvente e flexível), tornam esta tarefa bastante desafiadora. Os pesquisadores construíram um modelo farmacofórico baseado nas interaçoes entre a PKCε e um inibidor peptídico (EAVSLKPT) observadas na estrutura cristalográfica. Este modelo foi aplicado a um banco de dados contendo 300.000 moléculas, das quais foram selecionadas 468 (0,2%). A seleçao final foi feita a partir da classificaçao de cada molécula segundo seu ajuste geométrico ao modelo farmacofórico e da análise por inspeçao visual, resultando em 19 (4,0%) compostos que foram adquiridos e testados in vitro. Um deles apresentou atividade inibitória significativa (IC50 = 25 µmol L-1),129 sendo usado como estrutura de partida para construçao de uma série de 19 compostos.129 Vários compostos desta série apresentaram atividade biológica, sendo que o mais ativo apresentou IC50 = 5,9 µmol L-1. Este estudo mostra como modelos farmacofóricos podem ser usados com sucesso na identificaçao de compostos bioativos, mesmo quando o alvo é considerado nao druggable e quando as informaçoes sobre outros inibidores sao limitadas. Modelos farmacofóricos também podem ser gerados usando apenas a estrutura do receptor (ou seja, sem qualquer ligante).130 Neste caso, nao é necessário o conhecimento prévio de ligantes. Outra vantagem dos modelos gerados deste modo é que estes nao sao restritos ao espaço químico ocupado pelos compostos já descritos como ligantes de um determinado alvo. Nos modelos farmacofóricos gerados deste modo, as regioes de interaçao sao obtidas mapeando a superfície do sítio de ligaçao do receptor alvo. Um dos métodos mais comuns para se obterem estes modelos é por meio dos cálculos dos campos de interaçao molecular (do inglês Molecular Interaction Fields - MIFs), usando sondas moleculares de diferentes naturezas (doadora e/ou aceptora de ligaçao de hidrogênio, hidrofóbica e aromática). Estes campos de interaçao molecular podem ser calculados usando, por exemplo, o programa GRID.131 Durante este cálculo, o sítio de ligaçao do receptor alvo é colocado em uma caixa com grade regularmente espaçada. Em seguida, sondas moleculares (representando átomos ou moléculas de prova) sao posicionadas nos vértices desta grade e valores de energia de interaçao entre a sonda e o receptor sao calculados. Os valores de energia de interaçao calculados sao usados para identificar regioes de interaçao favoráveis ("hot spots"58) ao redor da estrutura do receptor biológico. Estes pontos de interaçao favoráveis podem ser usados para construir um modelo farmacofórico baseado somente na estrutura do alvo biológico.130 Como mencionado anteriormente, além de se utilizar a estrutura 3D do alvo biológico, sua flexibilidade vem sendo cada vez mais incluída nas estratégias de SBDD. Uma forma de incluir a flexibilidade conformacional nos filtros farmacofóricos é gerar modelos farmacofóricos usando diferentes conformaçoes do complexo ligantereceptor. Estas conformaçoes podem ser obtidas experimentalmente (por cristalografia de raios-X ou por RMN) ou por computador (ex. simulaçoes de DM clássicas).51,132,133 A importância de se considerar a flexibilidade conformacional na construçao dos modelos farmacofóricos foi analisada por diferentes grupos.132-134 Nestas análises, modelos farmacofóricos construídos usando complexos cristalográficos ("modelos rígidos") sao comparados àqueles usando complexos obtidos por simulaçoes de DM ("modelos flexíveis"). No geral, os "modelos flexíveis" tanto obtêm um melhor desempenho quanto sao capazes de selecionar compostos nao identificados usando apenas os "modelos rígidos". Uma crítica comum a esse tipo de abordagem é o pequeno número de snapshots ("fotografias") usado como representante dos diferentes modos de ligaçao observados ao longo de toda a simulaçao.51 Além disso, é comum encontrar na literatura trabalhos que nao utilizam qualquer critério para escolher os snapshots representativos das simulaçoes (ex. selecionando o último observado na simulaçao). A escolha destes snapshots representativos é uma etapa crítica que pode impactar, significativamente, os resultados obtidos.48 Mais recentemente, Wieder e colaboradores51 propuseram uma estratégia para incluir a flexibilidade na criaçao dos modelos farmacofóricos que nao depende da prévia seleçao de alguns snapshots representativos. Nesta estratégia, todos os snapshots obtidos durante a simulaçao de DM sao usados para gerar modelos farmacofóricos, que sao agrupados de acordo com sua semelhança. Para cada grupo, o valor da energia do ligante em cada uma das estruturas presentes no grupo é calculado. A seguir, o modelo farmacofórico que corresponde à estrutura com valor de energia médio é escolhido como representativo do correspondente grupo. Por fim, os modelos farmacofóricos representativos obtidos para um determinado alvo sao usados na busca virtual. Deste modo, para cada alvo várias listas de hits sao obtidas (uma para cada modelo representativo). Estes hits sao agrupados gerando uma nova lista, na qual cada hit é contado uma única vez. A classificaçao dos hits é, entao, dada pelo número de vezes que cada hit foi selecionado. A validade desta estratégia foi analisada usando 40 complexos ligante-receptor obtidos do PDB. Para cada alvo, foi usado um conjunto de compostos ativos e de compostos preditos como inativos obtidos do banco DUD-E. Como resultado, os autores observaram que o uso desta estratégia permitiu encontrar modelos melhores quando comparados aos obtidos usando somente as estruturas do PDB.51 Com base no exposto, a aplicaçao de filtros farmacofóricos independentemente de se incluir ou nao a flexibilidade conformacional do receptor é uma estratégia de sucesso no caminho para a descoberta de novos compostos ativos. É importante salientar, no entanto, que este sucesso irá depender tanto do número quanto da natureza da regiao de interaçao dos modelos farmacofóricos. Filtros baseados no formato molecular Os filtros baseados no formato molecular ("shape") selecionam moléculas com base na sua similaridade de "formato". O formato pode ser definido como sobreposiçao de volumes ou de superfícies (Figura 5). A ideia de se incluir o formato como filtro vem do fato de que, se duas moléculas têm um formato similar, talvez possam apresentar propriedades similares.135 O conceito de similaridade baseada no formato nao é novo, no entanto, estes filtros passaram a ser usados rotineiramente na busca por novos compostos ativos a partir do surgimento de ferramentas computacionais de busca em larga escala. Existem vários algoritmos de busca baseados no formato, entre eles ROCS136 e Shape Screening137 Entretanto, um destaque especial é dado para o programa ROCS,136 pois este também é reconhecido como uma ferramenta de escolha na busca baseada no formato.138
Figura 5. Representaçao de um modelo típico baseado no formato gerado a partir da estrutura 3D do ligante: (a) estrutura 3D do lisinopril (Ki = 0,27 nmol L-1 118) sobreposta ao modelo baseado no formato ("shape") gerado pelo programa ROCS,136,139 (b) modelo usado na busca virtual por formato, (c) estrutura 3D do lisinopril sobreposta ao modelo baseado no formato, incluindo características químicas, como gerado pelo programa ROCS136,139 e (d) modelo de formato, incluindo características químicas, usado na busca virtual e (e) alguns dos tipos de características químicas reconhecidas pelo programa ROCS,136,139 sendo HBA e HBD características aceptora e doadora de ligaçao de hidrogênio, respectivamente. A estrutura 3D do lisinopril foi retirada do complexo ECA-lisinopril obtido diretamente do PDB (código 1O86, resoluçao de 2,0 Å)118
Além do formato da molécula, o programa ROCS136 permite incluir informaçoes sobre algumas características químicas na busca virtual (Figura 5), representando átomos ou grupos funcionais como anéis e átomos doadores ou aceptores de ligaçao de hidrogênio. Desta forma, diferentes tipos de medidas de similaridade podem ser calculadas com base no formato (Shape Tanimoto), nas características químicas (Color Tanimoto) e na combinaçao dos dois (Combo Tanimoto). A combinaçao do formato e das características químicas pode melhorar significativamente o desempenho deste filtro. De modo análogo ao descrito para os modelos farmacofóricos, para se realizar a busca por similaridade pelo formato é preciso fornecer uma determinada estrutura 3D da molécula como referência. No entanto, diferentemente dos modelos farmacofóricos baseados no ligante, este filtro parece ser menos sensível à conformaçao da molécula de referência, apresentando, portanto, uma vantagem em relaçao aos modelos farmacofóricos. Nesta abordagem, torna-se mais importante a escolha da molécula de referência do que a obtençao da conformaçao bioativa.138 Ainda, como descrito para os modelos farmacofóricos, os modelos baseados no formato devem ter seu desempenho avaliado antes de serem usados como filtros na busca virtual. Esta avaliaçao de desempenho quanto à capacidade de diferenciar ativos de inativos pode ser feita usando as mesmas métricas já descritas para avaliar o desempenho dos modelos farmacofóricos. Filtros de ancoramento O ancoramento (do inglês85 docking) consiste em posicionar um ligante dentro do seu sítio de ligaçao e, em seguida, estimar sua afinidade pela proteína alvo85,140 (Figura 6). A aplicaçao deste filtro para bibliotecas de compostos permite a seleçao de acordo com seu valor de afinidade por determinada proteína alvo. Os estudos de ancoramento podem ser divididos em duas etapas: a primeira envolve a prediçao correta da pose do ligante (ou seja, sua conformaçao e orientaçao dentro do sítio de ligaçao) e a segunda envolve a prediçao correta da afinidade do ligante. As duas etapas sao complexas e apresentam limitaçoes.
Figura 6. Representaçao típica do ancoramento de um banco de dados virtual de moléculas dentro do sítio ativo de determinada proteína alvo: (a) definiçao da regiao do sítio ativo considerada no ancoramento e (b) as duas etapas envolvidas no ancoramento (prediçoes da pose e da afinidade). Ancoramento realizado usando o programa FRED141 e cinco compostos do banco de dados ChEMBL ativos frente a enzima alvo ECA. A estrutura da ECA foi obtida diretamente do PDB (código 1O86, resoluçao de 2,0 Å)118 e os compostos 1 a 5 correspondem ao CHEMBL110925, CHEMBL1560, CHEMBL1907752, CHEMBL409920 e CHEMBL2092878, respectivamente
Para que a prediçao da pose do ligante (ou seja, seu modo de ligaçao) possa ser feita de forma correta é necessário considerar todos os graus de liberdade conformacionais do ligante (translacional, rotacional e conformacional) de modo rápido e eficiente. Assim, quanto maior e mais flexível for o ligante, mais difícil deverá ser prever de forma correta seu modo de ligaçao. De modo geral, a varredura do espaço conformacional do ligante pode ser descrita por quatro métodos:
O modo de ligaçao observado no complexo ligante-receptor obtido por cristalografia de raios-X é considerado, dentro do erro experimental, como uma das possíveis conformaçoes bioativas do ligante. Assim, o desempenho dos programas de ancoramento quanto à obtençao da pose correta é, normalmente, avaliado observando-se quanto os resultados obtidos reproduzem estes dados experimentais. Em geral, todos os programas de ancoramento, usando qualquer um dos quatro métodos descritos acima, sao capazes de reproduzir satisfatoriamente (com valores de RMSD149 ≤2Å) as poses dos ligantes observadas nos complexos obtidos por cristalografia.150 Este tipo de avaliaçao de desempenho é chamado de re-docking.151 A segunda etapa do ancoramento é prever e classificar a afinidade de diferentes poses de um mesmo ligante, e/ou de diferentes ligantes, por determinada proteína alvo. Esta etapa é fundamental para o sucesso do ancoramento, pois o programa deve ser capaz de diferenciar as poses corretas das incorretas, bem como os compostos ativos dos inativos. Métodos de cálculo de energia de Gibbs usando mecânica estatística foram desenvolvidos para modelar as interaçoes proteína-ligante e, assim, prever a afinidade desta ligaçao. Entretanto, estes métodos ainda sao computacionalmente muito caros p, ara serem usados como forma de avaliaçao de um grande número de complexos ligante-receptor. Como alternativa, os programas de ancoramento preveem a afinidade ligante-receptor por meio de funçoes de ranqueamento. Estas funçoes fazem várias suposiçoes e simplificaçoes nao considerando completamente todos os aspectos envolvidos no reconhecimento ligante-receptor, como, por exemplo, as contribuiçoes entrópicas e a polarizabilidade. De modo geral, as funçoes de ranqueamento podem ser agrupadas em três classes:
Estudos comparativos mostram que todas as funçoes de ranqueamento têm enorme dificuldade para identificar a pose mais correta dentre todas as poses geradas, sendo bastante importante a inspeçao visual dos resultados obtidos. Além disso, outra limitaçao das funçoes de ranqueamento é a prediçao absoluta da afinidade do ligante pelo seu alvo. Melhores resultados sao obtidos quando se analisa a capacidade das funçoes classificarem de forma mais ou menos correta a atividade relativa de um conjunto de ligantes. No entanto, o desempenho das funçoes de ranqueamento está longe de ser ideal e parece ser bastante dependente do alvo molecular usado.29,46,140,150,153,154 A avaliaçao do desempenho destas funçoes de ranqueamento quanto à capacidade de diferenciar ativos de inativos pode ser feita usando as mesmas métricas já descritas para avaliar o desempenho dos modelos farmacofóricos.124 Um exemplo recente de sucesso do uso do ancoramento foi a busca de novos ativadores do receptor de opioíde-µ (µOR) partindo de um banco de 3 milhoes de compostos líder-similar (lead-like).155 Estes compostos foram ancorados no sítio de ligaçao do receptor µOR usando o programa DOCK.156 As 2.500 moléculas com melhores valores de escore foram analisadas visualmente, considerando sua novidade estrutural, sua capacidade de formar interaçoes com resíduos polares reconhecidos como importantes para formaçao do complexo ligante-receptor e excluindo aquelas com conformaçoes energeticamente desfavoráveis. Nesta etapa, 23 moléculas foram selecionadas para serem compradas e testadas frente ao receptor. Destas moléculas, 7 (30%) mostraram Ki entre 2,3 e 14 µmol L-1, sendo estruturalmente diferentes dos compostos já descritos como inibidores do receptor µOR. Entretanto, os compostos inicialmente identificados precisavam ser melhorados quanto às suas atividades (Ki na faixa de poucos µmol L-1). Para isso, os autores usaram um conjunto de 500 compostos análogos aos mais ativos contendo as principais regioes para ligaçao com o receptor, bem como outros grupos capazes de fazer novas interaçoes com o receptor. Estes 500 análogos foram ancorados e os 15 com melhores escores foram selecionados e testados. Destes, 7 (47%) foram ativos, com Ki entre 42 nmol L-1 e 4,7 µmol L-1. O composto mais ativo (42 nmol L-1) foi, entao, modificado por síntese orgânica, resultando em um composto bastante ativo, com Ki = 1 nmol L-1, que também apresentou uma alta seletividade. Consideramos importante ressaltar que neste exemplo a seleçao final dos compostos foi feita com base na inspeçao visual, que é uma etapa indispensável do ancoramento. Além da inspeçao visual, outros aspectos importantes para o sucesso do ancoramento sao: (i) a escolha da estrutura tridimensional do alvo molecular a ser usada (alta qualidade), (ii) a inclusao da flexibilidade conformacional do alvo e (iii) a identificaçao de águas estruturais. Estes aspectos serao brevemente discutidos a seguir:
Os três aspectos descritos acima sao importantes nao só nos estudos de ancoramento, mas em qualquer abordagem que considere a estrutura do receptor. Embora os programas de ancoramento tenham várias limitaçoes, seu uso como filtro na busca virtual resultou na identificaçao de um grande número de ligantes que foram, subsequentemente, validados tanto usando ensaios enzimáticos155 quanto determinando experimentalmente a estrutura 3D do complexo receptor-ligante.46,155 Ainda, o sucesso do uso deste filtro vai depender da qualidade do banco de moléculas virtuais, do tipo de alvo e dos critérios de escolha dos hits. Aspectos relacionados à qualidade do banco de dados serao apresentados e discutidos a seguir. Em publicaçao recente, Irwin e Shoichet46 sugerem que se poderiam encontrar entre 2 e 5 novas classes de compostos com atividade biológica usando o ancoramento e quando sao testados pelo menos de 25 a 50 compostos.46 No entanto, a aplicaçao deste ancoramento a alvos moleculares com sítios de ligaçao amplos e rasos leva a uma menor taxa de sucesso como, por exemplo, para algumas proteases e interaçoes proteína-proteína.46 Nestes casos, seria necessário testar um número muito maior de compostos sem, ainda, garantia de sucesso.46 Por fim, independentemente do alvo molecular estudado, para o sucesso do ancoramento é necessário que o pesquisador seja bastante criterioso ao analisar as poses e, principalmente, os valores de escore. Neste contexto, a etapa de inspeçao visual é indispensável.46 Ainda, o filtro de ancoramento tem o maior custo computacional quando comparado aos filtros apresentados anteriormente (similaridade 2D, farmacofórico e baseado no formato). Assim, na busca virtual usando diferentes filtros de seleçao de modo sequencial, o filtro de ancoramento deveria ser utilizado por último, quando o número de compostos já foi significativamente reduzido.127
BANCOS DE DADOS VIRTUAIS DE MOLÉCULAS A preparaçao e/ou escolha do banco de dados de moléculas a ser usado na busca virtual sao etapas cruciais para o sucesso desta busca. Existem vários bancos de dados virtuais de moléculas, gratuitos ou comerciais, que podem ser usados na busca virtual, como o ChEMBL,166 o ZINC,167 o PubChem,168 o PDBbind,169 o WOMBAT,170 e o DrugBank,171 dentre outros. O formato das moléculas pode variar de acordo com o banco, por exemplo, uni- (SMILE) ou tridimensional (MOL2 ou SDF). A sequência de etapas envolvidas na preparaçao do banco de dados depende de diversos fatores, como o alvo molecular em estudo e o(s) tipo(s) de filtro(s) que será(ao) usado(s) na busca virtual (ex. de similaridade 2D, farmacofórico, baseado no formato e de ancoramento). De modo geral, as principais etapas empregadas na preparaçao do banco de dados envolvem: remoçao de compostos com grupos funcionais indesejados ("garbage filters"), remoçao de compostos com propriedades físico-químicas e/ou estruturais indesejadas, correçao das estruturas e obtençao de diferentes conformaçoes. Cada uma destas etapas será brevemente discutida a seguir. Remoçao de compostos com grupos funcionais indesejados Os bancos de dados usados para busca virtual podem conter, por exemplo, compostos com grupos funcionais e/ou subestruturas capazes de gerar resultados falso-positivos nos ensaios in vitro (ex. como os PAINS) e/ou compostos com grupos reativos frente a determinados alvos biológicos. Esta etapa de remoçao de compostos, geralmente, é denominada de "limpeza" (cleaning up) e os filtros usados podem ser chamados de "garbage filters".37,64,172 No entanto, como já apresentado e discutido, a aplicaçao indiscriminada destes filtros, em especial daqueles descritos como PAINS,90 nao é recomendada.102,103 Já o uso dos filtros considerando apenas grupos reativos é menos criticado,37,64,172 exceto quando o objetivo da busca virtual for selecionar compostos que atuem formando, por exemplo, uma ligaçao covalente.128 Remoçao de compostos com propriedades físico-químicas e/ou estruturais indesejadas Como já apresentado, nao há um consenso na literatura sobre a inclusao de filtros de propriedades "fármaco-similar" durante a etapa de preparaçao dos bancos de dados. Um argumento a favor de incluir estes filtros é poder selecionar, já nas primeiras etapas, compostos com uma maior probabilidade de apresentar propriedades ADMET nas faixas adequadas.36,37,97,172 A principal crítica é que a inclusao destes filtros restringe o espaço químico, diminuindo a chance de se encontrarem novas classes de compostos.87,173 Outra crítica é que os critérios de corte usados nestes filtros nao se aplicam a determinadas classes de compostos (em especial, produtos naturais), bem como a certos tipos de alvos moleculares.87,88 Correçao das estruturas Esta etapa é fundamental durante a preparaçao dos bancos de dados e nao há críticas a respeito da sua inclusao. A etapa de correçao de estruturas visa a garantir que as moléculas presentes no banco de dados estejam descritas corretamente quanto à sua quiralidade (quando conhecida); hibridizaçao dos átomos nas ligaçoes químicas; seu estado de protonaçao (definido para um determinado pH) e quanto à sua forma tautomérica. A relevância desta etapa é facilmente compreendida considerando, principalmente, os filtros baseados nas interaçoes ligante-receptor (como, por exemplo, farmacofórico e ancoragem). Nestes filtros, os padroes de interaçao de uma determinada molécula poderao depender, por exemplo, de seu estado de protonaçao (ex. nas interaçoes iônicas) e/ou da sua forma tautomérica (ex. nas ligaçoes de hidrogênio). Além disso, diferentes isômeros estéricos apresentam uma distribuiçao espacial diferente, que poderá modificar tanto sua forma quanto seu padrao de interaçao em três dimensoes.37,64,174 Obtençao de diferentes conformaçoes Um dos maiores desafios desta etapa é gerar para cada molécula um conjunto de diferentes conformaçoes que seja adequado para varrer e que represente todo seu espaço conformacional.37,64,175 Esta etapa tenta garantir que seja possível encontrar a conformaçao bioativa dentre as conformaçoes geradas. Existem vários programas capazes de gerar conformaçoes 3D, entre eles: o Open Babel,107 o Omega176 e o iCon.177 Recentemente, encontra-se na literatura uma revisao sobre os métodos usados para gerar estas conformaçoes.178 No entanto, nenhum deles é capaz de gerar, em todos os casos, conformaçoes próximas às bioativas.179 O número de conformaçoes necessárias para se varrer o espaço conformacional vai depender da flexibilidade de cada molécula (expressa, geralmente, pelo número de ligaçoes com livre rotaçao), sendo maior para moléculas mais flexíveis. Assim, num primeiro momento, poderíamos supor que o ideal seria gerar o maior número de possíveis conformaçoes. Entretanto, quanto maior o número de conformaçoes geradas, maior o espaço em disco necessário para armazenar o banco de dados, bem como o custo computacional de aplicar os filtros de seleçao.64 Nao existe, dentro do nosso conhecimento, um número ideal de conformaçoes que devam ser geradas. Além do número de confôrmeros, outro fator importante é evitar a presença daqueles com alta energia. Embora existam na literatura exemplos de ligantes em complexos que apresentam conformaçoes de alta energia, estes nao sao a maioria, sendo reportado na literatura que 70% dos ligantes formam complexos com energias torcionais inferiores a 3 kcal mol-1.64 Na preparaçao do banco de dados, além das etapas descritas acima, alguns pesquisadores sugerem agrupar as moléculas segundo suas similaridades estruturais e selecionar algumas como representativas de cada grupo.37
SIMULAÇOES DE DINAMICA MOLECULAR APLICADAS NA BUSCA VIRTUAL Um dos primeiros modelos propostos para explicar a atividade biológica de um determinado composto foi o modelo chave-fechadura descrito por E. Fisher em 1894. Neste modelo, o receptor é a fechadura e o ligante é a chave.180 As ranhuras da chave corresponderiam às interaçoes ligante-receptor e ambos sao considerados como estruturas rígidas.180 Em 1958, Koshland181 propôs o modelo do ajuste induzido, no qual a formaçao do complexo ligante-receptor induz mudanças conformacionais no receptor, incluindo assim a sua flexibilidade. Posteriormente, surgiu o modelo de seleçao conformacional,182 no qual o receptor livre (sem o ligante) adota um conjunto de diferentes conformaçoes e o ligante se ligaria, preferencialmente, a uma das conformaçoes pré-existentes. Este modelo foi proposto para explicar as mudanças conformacionais observadas no sítio de ligaçao após um determinado ligante interagir com um sítio alostérico.49,183 Independentemente do modelo considerar que a interaçao ligaçao-receptor ocorra por ajuste induzido e/ou seleçao conformacional, a flexibilidade do ligante ("chave") e do receptor ("fechadura") tornam-se evidentes.184 De um modo ou de outro, a flexibilidade do ligante já tem sido considerada há algum tempo na busca virtual.46,64,140 No entanto, considerar a flexibilidade do receptor continua sendo um desafio.46,50,51,184 Como já apresentado, uma estratégia bastante aceita para se incluir a flexibilidade do receptor na busca virtual é usar um conjunto de conformaçoes deste receptor.29,48 Este conjunto de conformaçoes pode ser obtido experimental ou computacionalmente, usando Mecânica Estatística (simulaçoes de DM ou MC). Considerando que a obtençao experimental deste conjunto de conformaçoes nem sempre é possível, as simulaçoes usando Mecânica Estatística ganharam uma grande importância, em especial as simulaçoes de DM.48,184 Simulaçoes de DM clássicas sao métodos computacionais usados para estudar o movimento dos átomos e das moléculas aplicando a equaçao de movimento de Newton (Equaçao 3). Nesta equaçao, a força líquida (fi) atuando em um átomo i de um sistema num determinado instante corresponde à sua massa (m) multiplicada por sua aceleraçao (a). A configuraçao do sistema neste instante é representada por um vetor r, que descreve a posiçao de N átomos que interagem no espaço cartesiano (r={x1,y1,z1,x2,y2,z2,..,xN,yN,zN}). Nas simulaçoes de DM, esta força é descrita de forma clássica usando uma funçao de energia potencial empírica (V(r), também chamada de campo de força, mostrado na Figura 3S). Nesta aproximaçao, o movimento dos núcleos é mantido e valores médios sao usados para descrever o movimento dos elétrons. Assim, a integraçao da equaçao de movimento de Newton durante a simulaçao gera sucessivas configuraçoes do sistema, resultando numa trajetória de coordenadas em funçao do tempo.48 Uma limitaçao nestes campos de força é nao considerar a polarizabilidade dos átomos, pois as cargas parciais destes nao podem se alterar durante a simulaçao. Campos de força polarizáveis foram criados para contornar esta limitaçao, mas sao ainda muito caros computacionalmente. Outra limitaçao desses campos de força é nao permitir que ocorra a quebra ou formaçao de novas ligaçoes, impedindo que mecanismos de catálise enzimática sejam estudados.185 Para contornar esta limitaçao podem-se usar simulaçoes híbridas com mecânica quântica e clássica (QM/MM). As trajetórias obtidas nas simulaçoes de DM sao um conjunto snapshots (fotografias). Os snapshots representam diferentes conformaçoes do receptor ao longo do tempo. Estas conformaçoes podem ser agrupadas selecionando-se algumas conformaçoes representativas, usando, por exemplo, os valores de RMSD da cadeia principal do receptor calculados ao longo de toda trajetória. Estas conformaçoes podem, entao, ser usadas na busca virtual, aplicando-se, por exemplo, filtro de ancoramento.48,51,186 No caso de simulaçoes da estrutura do receptor complexada com o ligante, os diferentes modos de ligaçoes do ligante observados durante a trajetória podem ser usados para gerar diferentes modelos farmacofóricos.51,132,133 Além disso, a estabilidade da(s) interaçao(oes) ligante-receptor pode ser analisada ao longo da trajetória e utilizada para auxiliar na escolha das regioes de interaçao presentes nos modelos farmacofóricos.132
CONCLUSOES A busca virtual de compostos bioativos tem sido bastante utilizada na identificaçao de novos compostos com atividade biológica, em especial de fármacos. Esta busca consiste em pré-selecionar compostos com o auxílio do computador a partir de bancos de dados virtuais com um grande número de moléculas. No entanto, a proposiçao de modelos de busca virtual com alta taxa de acerto é uma tarefa ainda bastante desafiadora, uma vez que este modelo considera um sistema inerentemente muito complexo. Assim, uma das estratégias sugeridas na literatura para realizar a busca virtual é a utilizaçao sequencial de diferentes filtros de seleçao, sendo que o sucesso desta busca está fortemente relacionado com a qualidade e eficiência de cada um dos filtros aplicados, bem como do banco de dados usado. Neste artigo de revisao descrevemos alguns dos filtros de seleçao que podem ser usados na busca virtual (filtros de propriedades fármaco-similar, de características estruturais, de similaridade 2D, farmacofórico, baseado no formato e de ancoramento). Para cada um destes filtros descrevemos suas características, vantagens e limitaçoes, acompanhadas de literatura recente e relevante para a Química Medicinal, área que tem mostrado significativo avanço no Brasil.187 Adicionalmente, apresentamos as principais etapas envolvidas na preparaçao de um banco de dados virtual de moléculas, acompanhadas de literatura recente. Esperamos que este artigo de revisao possa contribuir para aprimorar ou complementar os conhecimentos do leitor, em aspectos que consideramos relevantes para compreender cada uma das estratégias usadas em Química Medicinal aqui apresentadas.
MATERIAL SUPLEMENTAR Algumas imagens das estruturas/grupos funcionais usados como filtros estruturais e da representaçao do campo de força utilizados neste trabalho estao disponíveis em http://quimicanova.sbq.org.br, na forma de arquivo PDF, com acesso livre.
AGRADECIMENTOS Agradecemos aos Professores E. I. Ferreira e R. V. C. Guido por nos alertar da importância de disponibilizar este material em português para a comunidade científica, em especial para os alunos iniciantes na área. E, ainda, à OpenEye Scientific Software e à Inte:Ligand pelos programas computacionais usados para gerar as Figuras 3, 5 e 6. Este trabalho foi financiado pela Fundaçao de Amparo à Pesquisa no Estado de Sao Paulo (FAPESP) e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). A.T-do Amaral é membro do CEPID Redoxoma (No. 2013/07937-8) e do NAP Redoxoma (PRPUSP). E. Piccirillo foi bolsista de Doutorado da FAPESP (No. 2014/01614-5 e 2012/06633-2).
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