JBCS



4:38, sex dez 6

Acesso Aberto/TP




Assuntos Gerais


Entre tipos e radicais: a construção do conceito de valência
Between types and radicals: the construction of the concept of valence

Helena S. Alvares NogueiraI; Paulo Alves PortoII,*

I. Instituto de Química, Universidade de São Paulo, 05508-000 São Paulo - SP, Brasil
II. Departamento de Química Fundamental, Instituto de Química, Universidade de São Paulo, 05508-000 São Paulo - SP, Brasil

Recebido em: 03/09/2018
Aceito em: 22/10/2018
Publicado em: 28/11/2018

Endereço para correspondência

*e-mail: helena.savignani.leite@usp.br

RESUMO

This paper presents a historical case study regarding the development of the concept of valence in late nineteenth and early twentieth centuries. The case study focuses on Edward Frankland's contribution to the process which lead to the convergence of two theories about the combination of the elements: the theory of types and the theory of radicals. Results show how such process involved many other scientists from various countries and how the concept of valence related to studies on bonding, periodicity and chemical structure. Changes in the nomenclature and notation were also observed. In the beginning of the twentieth century, the empirical concept of valence received theoretical explanations under the light of the then new theories on electronic structure of atoms. Thus, this case study exemplifies the complexity of the process of development of a scientific concept and, in particular, shows the multiplicity of connections of the concept of valence in the body of chemical knowledge.

Palavras-chave: valence; history of chemistry; theory of types; theory of radicals; chemical bonding; Edward Frankland.

INTRODUÇAO

O conceito de valência, assim como outros conceitos científicos, foi sendo construído e reconstruído ao longo dos anos, até se tornar o que conhecemos hoje. Entre o final do século XIX e o início do século XX, o conceito ganhou destaque nos trabalhos de diversos químicos, tanto orgânicos quanto inorgânicos, e no século XX se modificou com as novas teorias atômicas e contribuiçoes originadas na física quântica.1-4

O presente trabalho tem como objetivo investigar a contribuiçao de Edward Frankland (1825 - 1899) na construçao do conceito de valência, partindo da hipótese de que esse personagem desempenhou um importante papel de sumarizar concepçoes semelhantes, propostas por autores contemporâneos, em um processo que conduziu, simultaneamente, à amalgamaçao da teoria dos tipos com a teoria dos radicais. Assim, focalizamos a questao acerca de como as ideias de Frankland, relacionadas às concepçoes de Friedrich August Kekulé (1829 - 1896) para os compostos de carbono, convergiram no conceito de valência. Adicionalmente, levando em conta que a mudança da noçao clássica de valência para uma concepçao quântica para os átomos poderia ser considerada como uma ruptura paradigmática (considerando o entendimento kuhniano de paradigma), poder-se-ia perguntar como foi encaminhada essa transiçao. Dessa forma, pretende-se contribuir para a compreensao da origem e das transformaçoes do conceito de valência, que ainda hoje é relevante, especialmente no contexto do ensino superior e médio de química.5-13

Nossa abordagem segue parâmetros da contemporânea historiografia da ciência, buscando compreender a construçao do conceito de valência no contexto em que foi proposto, conforme as teorias e metodologias do período. Para isso, recorremos a fontes primárias (publicaçoes de cientistas da época em análise) e secundárias (produçoes de historiadores da ciência que se dedicaram ao tema, revisitados de maneira crítica).14-16 Conforme aponta Canguilhem, o objeto da história da ciência é dinâmico: à medida que a própria ciência se transforma com o passar do tempo, os discursos produzidos sobre ela sao ressignificados - de modo que a historiografia da ciência periodicamente se renova.17

Dessa forma, o estudo de caso histórico aqui apresentado foi guiado pela investigaçao das diferentes teorias que influenciaram e foram influenciadas pela teoria de valência, considerando seus principais formuladores, os locais em que essas teorias foram criadas e desenvolvidas, e os problemas que visavam responder, delineando o contexto de sua formulaçao.

 

A CONSTRUÇAO DO CONCEITO DE VALENCIA

Na atualidade, o conceito de valência ainda está presente nas aulas e nos livros de química geral, sendo útil para a formaçao e no trabalho dos químicos. Segundo o Compendium of Chemical Terminology (também conhecido como Gold Book) da IUPAC, valência (em inglês, valence) se refere ao número máximo de átomos univalentes, como o hidrogênio, a que o átomo sob consideraçao pode se unir ou substituir. Para além dessa definiçao clássica, o termo "valência" é encontrado adjetivando vários outros termos, como nas expressoes camada de valência, elétrons de valência, ligaçao de valência e outras. Ou seja, embora a definiçao clássica nao tenha sido totalmente superada, o termo tem abrangência mais ampla e é utilizado em várias áreas da química, o que pode ser observado desde o final do século XIX e início do século XX, com o advento da teoria estrutural e da quântica.

Kuznetsov procurou caracterizar as mudanças no nome atribuído ao conceito que hoje chamamos de valência.18 Outros termos foram usados previamente, tais como: basicidade, proposto em 1852 por Alexander Williamson (1824 - 1904); atomicidade, usado em 1857 por Kekulé; equivalência e quantivalência, usados também por Kekulé a partir de 1858. Nesse momento, surgiria nos trabalhos de Kekulé o termo valência, como uma forma reduzida e abreviada das palavras "equivalência" e "quantivalência". Esses três termos estariam relacionados pela mesma raiz latina, valens (de valere, que entre outras acepçoes tem o sentido de "estar forte"), cujo significado estaria ligado à ideia de força. Assim, a palavra "valência" sugeria um "poder" ou uma "força de combinaçao" existente entre dois elementos.18

A transformaçao do conceito ao longo do tempo esteve relacionada, além das conexoes teóricas, com o aperfeiçoamento de técnicas e equipamentos de análise durante o século XIX, realizado por químicos visando à produçao e caracterizaçao de novos materiais e substâncias, principalmente orgânicas.19,20 Isso pode ser constatado em artigos de Frankland, nos quais o autor destaca a importância de modificaçoes promovidas em certos instrumentos e técnicas, tais como: o aperfeiçoamento de eudiômetros (aparelhos para análise de gases); o desenvolvimento de equipamentos para destilaçao e coleta de substâncias sensíveis a reaçoes com oxigênio ou com a umidade do ar; e de reatores para resistir a elevadas pressoes decorrentes da formaçao de gases.21-23

Desde meados do século XIX, já se considerava a importância do conceito de valência para os estudos sobre a estrutura da matéria.24 Entao chamado de atomicidade, o conceito ganhou força nos trabalhos de Kekulé, Alexander Butlerov (1828 - 1886), Frankland, Archibald Couper (1831 - 1892), Alfred Werner (1866 - 1919), entre outros, durante o período compreendido entre o final do século XIX e o início do século XX.2-4,24 A história registra uma clássica disputa entre Kekulé e Werner, que respectivamente defendiam ser constante ou variável a natureza da valência de um elemento.18,25,26 Já no século XX, o conceito de valência sofreu as influências de novas teorias atômicas, como nos trabalhos de Gilbert Lewis (1875 - 1946),27,28 e, posteriormente, da mecânica quântica. Essa evoluçao foi dividida em três períodos por Araújo Neto, caracterizados pela emergência e desenvolvimento do conceito, entre os anos de 1850 e 1870; pela ampla divulgaçao e utilizaçao do conceito, entre os anos de 1870 e 1920; e por fim, após 1920, pela modificaçao do conceito pela aplicaçao e influência da mecânica quântica.4

Ao longo da trajetória de construçao e modificaçao do conceito de valência, é possível observar sua transformaçao de um conceito que visava explicar a estrutura química de compostos orgânicos para um conceito que atualmente é usado para descrever as ligaçoes químicas, tanto em moléculas orgânicas quanto inorgânicas.

Dessa forma, o conceito de valência e sua construçao ao longo dos séculos XIX e XX é um exemplo de como a ciência evolui por cooperaçao e interdependência. A história do conceito de valência mostra vários cientistas que trabalharam em teorias distintas (teoria dos radicais e teoria dos tipos) e por toda a Europa, principalmente Alemanha (onde havia uma forte química orgânica sintética e estudos sobre afinidade química), Inglaterra (estudos sobre eletroquímica e sobre modelos atômicos) e França (país consagrado como berço da "nova química" de Antoine Lavoisier [1743 - 1794] e seus colaboradores, e no qual também se destacaram os estudos sobre afinidade química). Nao se pode desconsiderar que a forte presença da química em vários países da Europa se deve também ao estabelecimento de instituiçoes de ensino de ciências, de sociedades científicas e ao intercâmbio entre seus membros nos séculos XVIII e XIX.29-32 Embora muitas discussoes e disputas de autoridade ou por apoio tenham ocorrido, essa diversidade de pesquisas e pessoas levou a uma evoluçao relativamente rápida do conceito de valência e à resoluçao de problemas da época, como o estabelecimento de fórmulas estruturais e a caracterizaçao dos produtos de reaçoes químicas.25

A transformaçao das ideias sobre valência somente foi possível devido a outros conceitos que já estavam, de certa forma, estabelecidos, e que geraram um contexto científico favorável. Esse contexto incluía, no caso em estudo: a invençao da pilha e o desenvolvimento da eletroquímica; a teoria atômica de Dalton; a lei da composiçao constante e a lei das proporçoes múltiplas; o dualismo de Lavoisier e Jöns Jacob Berzelius (1779 - 1848); e o amplo trabalho de síntese e caracterizaçao de compostos orgânicos.30 Esses conceitos nao eram consensualmente aceitos pela comunidade científica da época - principalmente a teoria atômica, pois havia ainda uma grande desconfiança sobre a real existência dos átomos como entidades físicas indivisíveis. Entre os nomes envolvidos na construçao da teoria de valência, havia apoiadores e opositores da concepçao de átomos. Williamson, por exemplo, utilizou a teoria da valência para defender a teoria atômica, enquanto Frankland a utilizou para demonstrar que uma teoria metafísica - como era considerada por muitos a teoria atômica, por nao possuir evidências diretas - nao era necessária para explicar os compostos químicos.33,34 Por fim, é preciso considerar a importância do estudo da química orgânica para o desenvolvimento econômico, principalmente da Alemanha, uma vez que o crescimento e aprimoramento das sínteses orgânicas permitiram a significativa expansao das indústrias químicas, que se tornaram uma grande força econômica na Europa.35

O presente estudo de caso mostra diferentes facetas do desenvolvimento do conceito de valência. Inicialmente, sao focalizados alguns dos cientistas - em especial, Frankland - cujos trabalhos estao relacionados à construçao desse conceito, bem como as mudanças na nomenclatura e notaçao da valência. Após essa parte introdutória, sao focalizadas as duas rotas principais que foram concorrentes durante um período, e que depois deram origem à teoria de valência: a teoria dos tipos e a teoria dos radicais.30 Embora aqui sejam diferenciadas, as duas teorias se confundiam muitas vezes, e os autores da época podiam migrar de uma para outra com certa facilidade.36 Finalmente, se aborda a aplicaçao do conceito de valência nos estudos sobre estrutura, ligaçao e periodicidade química, no contexto da transiçao dos modelos clássicos para a abordagem quântica da estrutura atômica.

 

ALGUNS CIENTISTAS ENVOLVIDOS

Muitos cientistas estiveram envolvidos direta ou indiretamente na construçao e desenvolvimento do conceito de valência ao longo da segunda metade do século XIX e primeira metade do século XX, sendo Kekulé e Frankland os mais conhecidos e citados. O primeiro foi um químico orgânico alemao que se dedicou à elaboraçao da teoria dos tipos. Kekulé publicou inúmeros trabalhos nos quais apresentava aplicaçoes e exemplos dos conceitos de tipo e de valência, principalmente em compostos orgânicos, para os quais estabeleceu uma teoria completa. Frankland foi um químico britânico que se dedicou à elaboraçao da teoria dos radicais, tendo sido muito influente na área de notaçao e na discussao sobre a relaçao da valência com os compostos orgânicos saturados e insaturados. As ideias de Kekulé e Frankland serao abordadas em maior profundidade nas seçoes seguintes, com destaque para a teoria dos tipos e a teoria dos radicais. Ambas possuíam o mesmo objetivo de organizar e explicar os compostos orgânicos, mas surgiram de forma praticamente independente e foram posteriormente unificadas, servindo como bases para a teoria de valência.25

Muitos outros cientistas contribuíram para o processo de elaboraçao do conceito de valência. A seguir sao citados alguns, seguindo o levantamento feito por Russell.25 Odling foi um químico britânico que facilitou a propagaçao da ideia de valência por criar uma primeira forma de notaçao (aspas escritas junto com o símbolo do elemento químico). Williamson, químico britânico, foi um dos criadores do conceito de tipo químico, trabalhou na identificaçao de radicais poliatômicos e depois de tipos condensados, tendo sido um grande apoiador e divulgador da teoria atômica e de sua relaçao com o conceito de valência.33,37 Kolbe foi um químico alemao que trabalhou intensamente na parte experimental, obtendo muitos dados que foram interpretados como apoio às teorias de outros químicos, como Frankland, tendo também colaborado na elaboraçao da teoria do carbono tetravalente. Couper, químico britânico, por ter morrido muito jovem foi rapidamente esquecido, mas trabalhou intensamente na produçao de dados e na construçao de uma notaçao para a valência. Alexander Crum Brown (1838 - 1922) deu continuidade aos trabalhos de Couper e acabou ganhando os créditos por trabalhos de seu professor, como a notaçao da valência por meio de traços entre os símbolos dos elementos.25,30

Há ainda outros que nao foram incluídos diretamente por Russell entre os que ele chamou de "fundadores da teoria de valência", mas que sao citados pelo próprio Russell e outros autores no contexto da história desse conceito. Por exemplo, Mendeleev incorporou ideias sobre a valência em sua classificaçao periódica; Loschmidt criou a representaçao por círculos, depois aperfeiçoada por Kekulé; Werner foi um dos defensores e estudiosos da valência variável e da estrutura química em compostos inorgânicos; Butlerov realizou inúmeros trabalhos em termos da estrutura química dos compostos; Stanislao Canizzaro (1826 - 1910) estudou os metais e suas múltiplas valências, e trabalhou na determinaçao de pesos atômicos - entre outros. Observa-se, portanto, que o conceito de valência nao pode ser atribuído a um único cientista, mas resultou de contribuiçoes de muitos autores.

 

CONCEPÇOES DE VALENCIA - DIFERENTES NOMENCLATURAS E NOTAÇOES

A nomenclatura e a notaçao usadas para esse conceito se modificaram ao longo do tempo, assim como o próprio conceito. No período estudado, segunda metade do século XIX e primeira metade do século XX, é possível caracterizar três concepçoes distintas para a valência: inicialmente, como [1] propriedade numérica dos átomos; depois, como uma [2] interaçao entre os átomos; e, por último, como [3] sinônimo de ligaçao química.25

Em relaçao à concepçao [1], Russell,25 assim como Kuznetsov,18 cita as diferentes classificaçoes dadas aos elementos químicos usando o referido conceito como critério, ou seja, classificavam-se os elementos de acordo com seu número de valência. Entendia-se a valência como força de combinaçao, considerada intrínseca ao elemento e, portanto, independente das condiçoes e dos outros átomos aos quais o elemento se une. Quando o termo usado era basicidade, os elementos eram classificados usando-se um prefixo designativo de um numeral, seguido pela palavra básico, ou seja, monobásico, dibásico, e assim por diante. Quando o termo empregado era atomicidade, a classificaçao se dava usando o prefixo de numeral seguido da palavra atômico, ou seja, monoatômico, diatômico, e assim por diante. Quando o termo escolhido passou a ser valência, ou um de seus correlatos (equivalência e quantivalência), houve duas nomenclaturas. Em uma delas, o prefixo de numeral era seguido do radical valente, ou seja, univalente, bivalente, etc., nomenclatura que foi apresentada e utilizada pela primeira vez por August von Hofmann (1818 - 1892) em 1865, e é usada até os nossos dias. A segunda nomenclatura foi proposta por William Odling (1829 - 1921) em 1864, utilizando os termos mônada, díade, tríade, e assim por diante, termos mais relacionados à ideia de ligaçao química entre os elementos.18,25

Em relaçao à notaçao, duas formas foram utilizadas: primeiramente as aspas no canto superior direito do símbolo do elemento, como, por exemplo, H' e O'', apresentada por Odling em 1855. Essa notaçao foi posteriormente substituída por algarismos romanos na mesma posiçao, como, por exemplo, HI e OII.38

A concepçao de valência [2], que se refere à interaçao entre os átomos, difere da concepçao anterior, uma vez que nao se trata mais de uma propriedade intrínseca do elemento, mas sim dependente do outro átomo ao qual se une. Essa concepçao era a mais presente durante o século XIX, devido à dificuldade existente na época em se estudar os átomos de forma isolada, sendo mais fácil estudar seus compostos. Nesse contexto, foram utilizados inicialmente o termo afinidade, depois atomicidade e, por fim, valência. É preciso deixar claro que o termo atomicidade nao tinha, no século XIX, o mesmo significado que tem na atualidade, ou seja, naquela época se referia à afinidade entre dois elementos, e nao à quantidade de átomos em uma molécula, como consideramos hoje em dia.

Ainda nessa concepçao, uma primeira notaçao com parênteses ou chaves entre os elementos ou grupos de elementos (tipos ou radicais, conforme as teorias que serao descritas nas seçoes posteriores) foi usada por Williamson, Adolph Kolbe (1818 - 1884), Charles Gerhardt (1816 - 1856), Frankland, Butlerov, entre outros, conforme exemplificado na Figura 1.

 


Figura 1. Representaçao por chaves (reproduzido da ref. 25, p. 95)

 

Essa notaçao foi criticada por Frankland,39 que apontou a existência de mais de uma notaçao para um mesmo composto, dependendo dos tipos ou radicais considerados. Johann Loschmidt (1821 - 1895) propôs uma forma de representaçao utilizando círculos, cujo contato representava uma ligaçao química, a intersecçao uma ligaçao múltipla, e tamanhos ou cores distintas representavam átomos distintos (Figura 2).

 


Figura 2. Molécula de água conforme a representaçao por círculos (reproduzida da ref. 25, p. 97)

 

Essa notaçao foi modificada por Kekulé, que relacionava o tamanho da representaçao para o átomo com sua valência, de forma proporcional, como pode ser exemplificado pela Figura 3 (observa-se que o tamanho da representaçao do átomo de carbono sugere suas quatro valências, sendo o hidrogênio monovalente). A representaçao dos átomos nas longas cadeias carbônicas fez com que esse tipo de notaçao ficasse conhecida como "fórmulas salsichas".

 


Figura 3. Representaçao de Kekulé: "fórmula salsicha" para o metano (reproduzido da ref. 4, p. 16)

 

Quanto à concepçao [3] citada por Russell,25 tem-se a identificaçao entre valência e ligaçao química. Durante algum tempo, houve autores que consideraram esses termos como sinônimos, ainda que isso nao fosse consenso na comunidade científica. Para evitar a confusao, alguns cientistas usaram atomicidade ou "valency" para indicar o poder de combinaçao dos átomos e "valence" ou ligaçao química para indicar a uniao entre dois átomos.25 Entretanto, essa diferenciaçao nao chegou a alcançar grande difusao.

Nesse contexto em relaçao à notaçao, foi proposta a representaçao de linhas ligando os átomos, que inicialmente eram representados por círculos, e depois passaram a ser, por simplicidade, representados apenas pelos seus símbolos químicos, como pode ser visto nas Figuras 4 e 5.

 


Figura 4. Representaçao por círculos e traços (reproduzido da ref. 25, p. 102)

 

 


Figura 5. Representaçao simplificada (reproduzido da ref. 25, p. 107)

 

Essa notaçao foi criada por Couper e Crum Brown, embora tenha sido conhecida somente pelo nome do último, e depois simplificada por Frankland, sendo usada até hoje. Tanto Crum Brown quanto Frankland ressaltaram que essa era apenas uma representaçao gráfica e nao a realidade, sendo útil em muitos casos para explicar isomerismos e produtos de reaçao.24,25,38,40-45

Antes do modelo de Crum Brown ser aceito e amplamente utilizado, as formas de notaçao acima citadas podiam coexistir para indicar ambos os aspectos (valência e ligaçao) dos radicais (podiam ser usados símbolos específicos para cada radical; por exemplo: "Me" para metila) e dos elementos, como se pode ver nas Figuras 6 e 7, retiradas de artigos de Frankland e B. F. Duppa.46,47A notaçao com números e chaves foi explicada por Frankland em artigo de 1866, dedicado somente a esse tema.48

 


Figura 6. Representaçao por chaves e aspas (reproduzido da ref. 46, p. 30)

 

 


Figura 7. Representaçao por chaves e algarismos romanos (reproduzido da ref. 47, p. 18)

 

Em 1904, Richard Abegg (1868 - 1910) relacionou a valência com a distribuiçao eletrônica, conceituando valência (+) e contra-valência (-) como, respectivamente, o número de elétrons recebidos ou doados numa ligaçao. 49 Alguns anos depois, Lewis propôs uma explicaçao eletrônica para a ligaçao química, e os traços passaram, entao, a representar os elétrons compartilhados entre dois átomos, e nao mais a valência dos elementos.50,51

 

A TEORIA DOS RADICAIS

A teoria dos radicais surgiu no âmbito da química orgânica, uma área que, na metade do século XIX, ainda dava seus primeiros passos. Havia muitas questoes em aberto, referentes à composiçao de certas substâncias, suas propriedades, suas reatividades, as causas da reatividade, etc., para as quais a teoria dos radicais - assim como a teoria dos tipos - buscava encontrar respostas. Nesse processo, seus adeptos foram descobrindo novas substâncias e as classificando e caracterizando. Essas teorias buscavam identificar o que haveria em comum em diferentes compostos, como um grupo de átomos unidos de determinada forma e que se conservaria ao se transformar um composto em outro. Esses grupos de átomos seriam como peças de um jogo de montar, sendo que uma das teorias chamava essas peças de "tipos", e a outra, de "radicais". Havia, porém, diferenças entre essas duas teorias, como a possibilidade de se isolar esses grupos de átomos (somente aceita pela teoria dos radicais), e o tamanho dessas "peças" que constituiriam as substâncias.

Porém, as dificuldades dos químicos em isolar experimentalmente os radicais - uma vez que uma de suas características, segundo Russell25 e Camel52 e colaboradores, era serem grupos de átomos que poderiam estar isolados ou em uniao com outro grupo, isto é, outro radical - levou à maior aceitaçao da teoria dos tipos, os quais nao precisavam ser isolados para assim serem caracterizados. Além disso, esta teoria previa a mudança das propriedades dos tipos ao serem unidos a outros, enquanto a teoria dos radicais previa a manutençao de suas propriedades mesmo após a uniao com outros radicais, levando à formaçao de um produto com propriedades intermediárias entre os dois radicais que lhe deram origem - o que nem sempre era observado experimentalmente.53

Nas primeiras décadas do século XIX, o químico sueco Berzelius havia proposto seu conhecido dualismo, segundo o qual todo composto químico (orgânico ou inorgânico) possuiria dois radicais, um positivo e outro negativo, que se saturariam formando uma substância neutra.30,43,52,54 Essa ideia é considerada por Gay30, Russell25 e Palmer26 como uma primeira ideia de valência, que influenciou a criaçao e o desenvolvimento da teoria dos radicais, pois Berzelius já considerava grupos de átomos que iriam se unindo e formando os compostos, os quais teriam propriedades semelhantes aos radicais que lhes deram origem.

A partir disso, muitos químicos começaram a trabalhar na identificaçao e na caracterizaçao dos radicais, entendidos na época como conjuntos de átomos que se comportariam como se fossem elementos químicos, ou seja, teriam propriedades e reatividades próprias. Entre esses químicos, podemos destacar Kolbe, que trabalhou na síntese de radicais por meio de reaçoes eletroquímicas e métodos de análise orgânica. Kolbe criou a chamada doutrina dos radicais emparelhados (1848), baseada nos trabalhos de Berzelius, a qual descrevia uma série de radicais e suas diversas combinaçoes. Kolbe também se dedicou a estudos que buscavam reduzir os radicais ao mínimo possível, separando os chamados radicais simples (constituídos por apenas um elemento) dos radicais compostos (com mais de um elemento).25,29,53,55-57

Outro exemplo muito relevante das investigaçoes em torno dos radicais foi a síntese e caracterizaçao do radical cacodilo (que hoje é reconhecido como sendo a substância de fórmula molecular C4H6As2) e de seus derivados. Dessas investigaçoes participaram diversos químicos, dentre os quais se destacaram Robert Bunsen (1811 - 1899), com uma série de artigos publicados entre 1837 e 1847, e Berzelius, que propôs o nome cacodilo (do grego "kakos" - mau e "od" - odor) devido ao odor repulsivo do composto. Esse radical foi o primeiro a ser isolado, e se acreditava possuir as características esperadas para um radical (ser isolável e ser encontrado como uma parte fixa em reaçoes de adiçao e substituiçao). Esse feito renovou o ânimo dos químicos da época em trabalhar com a teoria dos radicais e, posteriormente, com a teoria de valência. Sobre isso, escreveu Roscoe em homenagem póstuma a Bunsen:

A pesquisa do cacodilo é de nosso interesse, nao só porque, como vimos, nos fornece o primeiro exemplo de um radical isolável, mas também porque auxiliou Frankland e Kekulé a ilustrar mais exatamente o termo "valência química" (Roscoe, 1900, apud Russell, p. 27).25

Essa investigaçao deu origem a diversos outros trabalhos de síntese, como os de Frankland que, em suas tentativas de isolar os hipotéticos radicais metila e etila, acabaram por levá-lo aos chamados compostos organometálicos. Bunsen a considerou como um dos passos mais importantes no desenvolvimento da química orgânica.20,25,58

Conforme já mencionado, a teoria dos radicais teve Frankland como um de seus principais nomes. Inicialmente, Frankland trabalhou junto com Kolbe, e depois de forma independente, na síntese e caracterizaçao de radicais, dando a eles nomes e fórmulas, como no caso do ácido metacetônico e seus derivados (ou seja, compostos que também possuíam o grupo ácido ou o grupo metacetônico) e, também, do cianeto. Algumas dessas sínteses foram questionadas por outros químicos da época, principalmente pelos adeptos da teoria dos tipos.29,59-62 Com o amadurecimento de seu trabalho, Frankland passou a se dedicar mais especificamente à síntese e caracterizaçao de compostos organometálicos, os quais considerava como sendo uma classe dentro dos radicais, ou mesmo como uma classe de compostos formados por mais de um radical. Frankland utilizou a mesma metodologia adotada anteriormente em seu trabalho com os vários radicais orgânicos, realizando os mesmos tipos de análises com todos os produtos obtidos, ou seja, realizando destilaçoes, testes de solubilidade, métodos para determinar pontos de fusao e ebuliçao e para definir a composiçao (porcentagem em massa dos elementos). Os detalhes dessas metodologias podem ser encontrados nos trabalhos de Frankland listados nas referências bibliográficas ao final deste artigo.39,48,59-65

A partir de 1852, Frankland propôs o conceito de poder de combinaçao dos átomos, que seria representado por um número constante para cada elemento e que seria característico dos compostos formados por ele. Utilizando esse critério, Frankland sistematizou uma série de elementos e radicais com o mesmo poder de combinaçao e com o mesmo caráter eletroquímico, ou seja, eletropositivos e eletronegativos. Essas séries permitiam estabelecer relaçoes entre diversos compostos e prever a existência de novos compostos, a partir da substituiçao de radicais respeitando o poder de combinaçao de cada um deles. Por analogia, era possível também prever algumas das propriedades e a reatividade desses novos compostos.23,41,48,63-65

Frankland também estabeleceu uma classe de reaçoes químicas chamadas de reaçoes de oxidaçao e reduçao, com base na alteraçao do poder de combinaçao dos metais. Nas diferentes transformaçoes químicas, o poder de combinaçao dos metais poderia ser usado em sua totalidade (que seria o comportamento dos compostos saturados, ou seja, com todas as valências ativas) ou em um valor menor (compostos insaturados, isto é, com algumas valências ativas e outras latentes). Assim sendo, diferenças na variaçao do poder de combinaçao de um dado metal implicariam em diferenças nas propriedades de seus compostos, sendo, porém, todos estáveis nas condiçoes dos experimentos. Essa concepçao demonstra que Frankland aceitava a ideia de valência variável.39,48,66

Frankland também relacionou seus compostos organometálicos com os tipos inorgânicos já estabelecidos, e criou uma nomenclatura única, unindo as duas teorias (dos tipos e dos radicais), baseada no que hoje conhecemos como valência. De acordo com essa nomenclatura, os compostos eram divididos em grupos de acordo com um elemento presente e com a sua valência, como se pode observar na citaçao a seguir, na qual sao mencionados os grupos ternário (valência 3) e o de cinco átomos (valência 5):

... em especial, os compostos de nitrogênio, fósforo, antimônio e arsênio exibem a tendência desses elementos em formar compostos contendo 3 ou 5 equivalentes de outros elementos, e nessas proporçoes suas afinidades sao mais bem satisfeitas. Assim, no grupo ternário temos NO3, NH3, NI3 (...) e no grupo de cinco átomos, NO5, NH4O, NH4I... Sem oferecer qualquer hipótese acerca da causa desse agrupamento simétrico dos átomos, resta suficientemente evidente... que tal tendência ou lei prevalece e que, independente do caráter dos átomos que se unem, o poder de combinaçao do elemento que atrai (se me permitem o termo) é sempre satisfeito pelo mesmo número desses átomos (p. 440, grifo nosso)63

Nessa passagem, em geral identificada com a proposiçao do conceito de valência por Frankland, o autor nao utiliza esse termo, mas a expressao poder de combinaçao. O trecho citado aqui se encontra no contexto de uma discussao a respeito da possibilidade de unificar as teorias dos tipos e dos radicais. Para Frankland, essa unificaçao era desejada e, buscando isso, conduziu novas pesquisas nos anos seguintes, preparando novas substâncias, especialmente compostos organometálicos, visando aumentar a lista de compostos e demonstrar com mais exemplos as valências por ele defendidas.39,63

Entretanto, como observou Araújo Neto:

Os argumentos de Frankland se baseavam em um conjunto restrito de regularidades e ele se recusava a constituir uma teoria a respeito. Isso favoreceu a apresentaçao de diversos contra-exemplos, que decorriam da confusao que atormentava as fórmulas empíricas, em funçao da ausência de uma demarcaçao clara entre os átomos e os equivalentes químicos. Esses exemplos e o fato de que a capacidade de combinaçao de um elemento podia variar minaram a ampla aceitaçao das ideias de Frankland (p. 15).4

Esses contraexemplos e as refutaçoes das teorias eram propostos até pelos próprios químicos adeptos da teoria dos radicais. Isso pode ser visto em artigo de Kolbe publicado em 1855, no qual questionou resultados experimentais e as hipóteses de Williamson a respeito das constituiçoes dos ésteres, álcoois e ácidos orgânicos, que diferiam daquelas defendidas por Kolbe.67 O mesmo autor, em outros artigos, questionou a própria teoria dos radicais, mostrando algumas de suas deficiências e questoes nao respondidas.53,56 Por exemplo, em artigo de 1851, Kolbe discutiu a necessidade de rever a definiçao de radical como um grupo inalterável de átomos, concepçao que levava a dificuldades em explicar o resultado de certas reaçoes de substituiçao. Kolbe reconheceu que, de acordo com a teoria eletroquímica,

a natureza de um composto nao pode ser considerada como independente da natureza química dos seus constituintes. Este consenso... foi provavelmente o principal motivo pelo qual a questao da imutabilidade dos radicais orgânicos nao foi objeto de investigaçao na medida que ela merece.
Pode-se considerar como incontestável que a teoria dos radicais em seu estado presente nao basta para fornecer explicaçoes apropriadas para as inúmeras metamorfoses resultantes da chamada substituiçao e que, por uma adesao contínua à imutabilidade dos radicais, a base da teoria dos radicais torna-se continuamente enfraquecida (p. 370-371).56

A teoria dos radicais foi amplamente baseada no dualismo eletroquímico de Berzelius, do qual decorreu uma das principais questoes entao sem resposta: como explicar as reaçoes de substituiçao nas quais um radical negativo, como o cloro, por exemplo, podia substituir um radical positivo, como o hidrogênio, por exemplo (como no caso da produçao de ácido tricloroacético a partir de ácido acético). Esse problema levou os químicos a criarem outras teorias e modelos, como a teoria unitária ou a teoria do núcleo de Auguste Laurent (1807 -1853), segundo a qual todo composto possuía um núcleo fundamental no qual as substituiçoes poderiam ocorrer, formando um núcleo derivado. Dessa forma, o foco passava a ser a molécula e nao mais o átomo que estava sendo substituído. Superava-se, assim, a questao da troca de um átomo positivo por um negativo, que deixava de ser considerada como o aspecto mais importante, desde que a molécula mantivesse suas principais propriedades. Dessa maneira, a química passou de uma teoria dualista, baseada em átomos positivos e negativos, para uma teoria unitarista, baseada em grupamentos de átomos, ou seja, em moléculas como o foco central.23,30,37,52,57,68

 

A TEORIA DOS TIPOS

A teoria dos tipos é considerada a que mais influenciou a teoria de valência, e tem sido mais estudada que sua contemporânea teoria dos radicais. Os adeptos da teoria dos tipos tiveram, na época, maior prestígio que os defensores da teoria dos radicais, e até recentemente têm recebido maior atençao por parte dos historiadores da ciência.25,66,69 Essa teoria foi influenciada pelos estudos de botânica da época, pois buscava uma classificaçao para os elementos químicos em famílias e gêneros, e abandonava a ideia de Berzelius de compostos formados por atraçao eletroquímica.38

A teoria dos tipos foi elaborada principalmente pela comunidade de químicos orgânicos, e se tornou a maior influência para a teoria da química orgânica de Kekulé e, por consequência, para o conceito de valência. Segundo Araújo Neto e Santos,

A noçao de valência está intimamente relacionada com os primeiros passos da Química Orgânica. Pode-se dizer que a valência orientou e foi orientada pelos "programas de pesquisa orgânicos", muito antes de ser reconduzida à Química Inorgânica (p. 10).69

A teoria dos tipos surgiu em 1839, com Jean-Baptiste Dumas (1800 - 1884), químico francês que realizou muitos estudos sobre as reaçoes de substituiçao orgânica e que criou os conceitos de tipos mecânicos e tipos químicos. De acordo com Dumas, tipos mecânicos eram grupamentos de átomos que se uniam para formar substâncias, e seriam responsáveis por sua fórmula geral. Os tipos químicos, por sua vez, também eram grupamentos de átomos, e seriam responsáveis pelas propriedades químicas das substâncias que constituíam. Os tipos mecânicos e químicos poderiam ou nao ser iguais entre si. Foi somente em 1853 que o químico francês Gerhardt sistematizou os tipos em três grupos: o tipo água, o tipo hidrogênio e o tipo amoníaco, e os caracterizou como resíduos de reaçao que nao existiriam isolados (ao contrário dos radicais, que poderiam ser isolados) e se uniriam formando os produtos. Esses resíduos de reaçao eram determinados por meio experimental, principalmente por destilaçao e estudo da decomposiçao das substâncias. A decomposiçao separaria os resíduos ou tipos que formariam o composto em estudo, permitindo simplificar as fórmulas e compreender as relaçoes entre os compostos, como escreveu Dumas em 1834:

A fim de simplificar as fórmulas que, em geral, sao complexas demais para que a mente seja capaz de compreender as relaçoes, devemos pressupor que existe alguma organizaçao na molécula. Assim, supomos que a oxamida pode ser representada por dois componentes binários, o óxido de carbono e um nitreto de hidrogênio (Dumas, apud Fisher, p.110).68

Na citaçao acima, o exemplo utilizado por Dumas foi o da oxamida (cuja fórmula molecular é representada atualmente por C2H4N2O2). Ao ser analisada em laboratório, a oxamida foi decomposta em óxido de carbono e em um nitreto de hidrogênio (Dumas poderia estar se referindo à amônia ou à hidrazina), que resultariam de seus resíduos e que, portanto, permitiriam determinar os tipos que a comporiam.

Essa teoria foi amplamente aceita no âmbito da química orgânica, e levou a inúmeros estudos de fórmulas químicas e estruturais para os compostos, utilizando os tipos já conhecidos. Com base nos tipos, foi criada uma das primeiras classificaçoes dos compostos, separando-os em séries de acordo com sua combinaçao e suas propriedades. Essas séries caracterizavam o que hoje chamaríamos de funçoes orgânicas, mas na época poucos usavam essa expressao.18,25,30,37,38,43,52,57,68 Neste ponto, pode-se ressaltar uma diferença entre a teoria dos tipos e a teoria dos radicais: aquela se baseava nao apenas na composiçao dos compostos, mas também em sua reatividade. Assim, a teoria caracterizava os tipos considerando os produtos formados nas reaçoes, a composiçao das substâncias e a possível estrutura das mesmas.30

Williamson, que originalmente trabalhava com a ideia de radicais, adotou a concepçao de tipos, pois considerou que seus radicais nao eram isoláveis. Ele foi o primeiro a, em 1850, relacionar os tipos com um poder de combinaçao, baseando suas fórmulas em torno de elementos bivalentes ou dibásicos, principalmente o oxigênio, e classificando os tipos de acordo com a relaçao com esses elementos. Esse poder de combinaçao era considerado como uma força que causava as reaçoes e produzia os compostos.25,30

Em 1857, Kekulé caracterizou os tipos como um conjunto de átomos ou radicais que se combinam de acordo com sua basicidade, e que podiam ser modificados ou ter seus átomos substituídos, formando outros tipos, conforme regras estabelecidas experimentalmente.24,30 Após essa classificaçao inicial, Kekulé e Couper continuaram suas investigaçoes especificamente na química orgânica. Em 1858, Kekulé propôs a tetravalência do carbono, sustentada por inúmeros exemplos de compostos e de reaçoes, e a partir da qual se desenvolveram teorias estruturais da química orgânica baseadas em cadeias carbônicas e na possibilidade de ligaçoes múltiplas, de modo a sempre respeitar a tetravalência do carbono em todos os compostos.24,25,30,52 Assim, Kekulé classificou os compostos por ele já conhecidos, utilizando como critérios as cadeias carbônicas e suas modificaçoes, seja por substituiçao ou por formaçao de compostos cíclicos.36 Kekulé criou também uma das primeiras teorias estruturais baseadas nas cadeias carbônicas e nos átomos polivalentes, como o oxigênio e o nitrogênio (ou seja, átomos que, assim como o carbono, possuíam uma valência maior do que a unidade). O átomo de hidrogênio caracterizava a valência unitária, e poderia ou nao fazer parte dessas cadeias.24 Pode-se ainda afirmar que Kekulé foi um dos primeiros a mostrar a relaçao entre valência e pesos equivalentes (valência = peso atômico / peso equivalente), e a utilizar essa relaçao para demonstrar que alguns valores de pesos atômicos entao aceitos estavam incorretos, e deveriam ser corrigidos considerando os respectivos pesos equivalentes.66

Pode-se observar que Kekulé estudou a química orgânica e seus tipos fazendo uso da valência (com os diferentes nomes atribuídos a esse conceito na época). Outros químicos, como Couper, estudaram os compostos orgânicos nessa época e chegaram a algumas conclusoes diferentes. Couper admitia a existência do que ele chamou de afinidade eletiva, propondo a possibilidade de a valência nao ser constante para determinado tipo ou elemento.

Segundo Rocke,24 os químicos Butlerov, Couper e Kekulé estiveram entre os primeiros a criticar a teoria dos radicais e a teoria dos tipos:

Kekulé reiterou seu ponto de vista de que tanto os radicais quanto os tipos seriam meramente relativos e convencionais, assim como conceitos mutuamente complementares. (...) [Butlerov] afirmava, concordando com Couper, que o mundo químico deveria exaltar um único princípio, a "atomicidade" [i.e., a valência] (...) A confiante e abrangente utilizaçao desse princípio revelaria as relaçoes químicas dos átomos químicos, o arranjo das ligaçoes químicas, e resultaria finalmente em uma compreensao completa da estrutura química (p. 32 e 36, grifos no original).24

Butlerov e Couper afirmavam que tanto a teoria dos tipos quanto a dos radicais seriam muito limitadas, pois apenas alguns compostos e elementos as seguiriam. Segundo esses autores, havia muitas exceçoes que as desacreditavam, como a questao da isomeria, e que se devia buscar um princípio geral para a química, que poderia ser a teoria de valência.4,24,25,30 Butlerov também alegou que os estudos deveriam focalizar a afinidade entre os elementos químicos - pois esta seria a responsável pela formaçao dos compostos, por suas propriedades e reatividade.24,42 Finalmente, podem-se destacar as críticas de Frankland, adepto da teoria dos radicais, mas que também defendia sua unificaçao com a teoria dos tipos, afirmando que ambas possuíam pontos em comum e pontos positivos.

Além de recorrer ao termo "tipos" em diversos artigos, Frankland também afirmou que seus estudos dos compostos organometálicos o afastavam da teoria dos radicais e o aproximavam de outras teorias, como a dos tipos:

A formaçao e o exame dos corpos organometálicos prometem auxiliar uma fusao das duas teorias que por tanto tempo dividiram as opinioes dos químicos, e que foram precipitadamente consideradas irreconciliáveis. Pois, embora seja evidente que existem certos tipos de séries de compostos, também está claro que a natureza do corpo derivado do tipo original depende essencialmente do caráter eletroquímico de seus átomos individuais, e nao apenas da posiçao relativa desses átomos. (...) É óbvio que o estabelecimento dessa visao da constituiçao dos compostos organometálicos os removerá da classe dos radicais orgânicos e irá relacioná-los de forma mais íntima com a amônia e as bases de Wurtz, Hofmann e Paul Thénard (p. 441-442).63

A amalgamaçao das duas teorias levou à formaçao da teoria de valência.

 

ESTRUTURA QUIMICA E VALENCIA

A determinaçao da valência dos elementos e radicais, e seu uso na definiçao de fórmulas e estruturas químicas, foi feita de forma totalmente experimental, e baseada na tentativa e erro. Por meio de métodos experimentais eram determinados os elementos que compunham um composto e, em seguida, eram construídas todas as fórmulas possíveis usando a notaçao de Crum Brown (chamadas, originalmente, de diagramas de ligaçao). Tentava-se, entao, determinar qual seria a fórmula mais provável, de acordo com as propriedades do composto e com os produtos formados em diferentes reaçoes.26 Por esse método, tentava-se identificar tipos ou radicais cuja uniao pudesse resultar naquele novo composto, pois a discussao acerca da estrutura surgiu tanto no âmbito da teoria dos tipos quanto na dos radicais.1 Assim, diferentes estruturas podiam ser propostas para um mesmo composto. Segundo Araújo Neto, a valência era um conceito empírico que resultou da

percepçao de uma regularidade na combinaçao dos elementos, mas principalmente na determinaçao de transpor essa regularidade para outros elementos, tornando-a uma propriedade geral dos corpos elementares e um conceito-chave para a criaçao da teoria estrutural. Valência e afinidade nao sao a mesma coisa. A valência é um produto da afinidade de um elemento (p. 21).4

Outro aspecto a ser considerado é que só foi possível haver a discussao sobre as fórmulas e as estruturas dos compostos após haver uma nomenclatura e um simbolismo aceitos por todos.43 Crum Brown, cuja representaçao foi amplamente aceita e usada, realizava estudos relacionando a estrutura com as propriedades dos compostos e, com isso, ressaltava a importância de sua notaçao.42

Kekulé e Kolbe consideravam as fórmulas estruturais como construtos totalmente empíricos, e que seria impossível comprovar sua realidade física. Por isso, ambos falavam em "fórmulas reacionais", que explicariam a reatividade dos compostos e permitiriam compará-los. Esse posicionamento é coerente com a posiçao mais conservadora e baseada em fatos e experimentos adotada por ambos, principalmente por Kolbe.24,25,29,30,34,57

Russell25 afirma que, embora haja uma disputa de prioridade sobre o termo "estrutura química", o primeiro a usá-lo teria sido Butlerov, em substituiçao ao termo "fórmula constitucional", utilizado por Emil Erlenmeyer (1825 - 1909). Camel e colaboradores52 concordam com essa informaçao, e indicam que a substituiçao de um termo pelo outro ocorreu no congresso de química realizado em 1861 em Speyer. Dessa forma, considerando os estudos realizados relacionando o arranjo espacial dos átomos e suas propriedades, o emprego da expressao "estrutura química", e a correlaçao feita entre a estrutura e a valência (ou atomicidade, como se dizia na época), Butlerov foi considerado por muitos como o fundador da teoria estrutural.52 Por outro lado, durante muito tempo a prioridade foi atribuída a Kekulé e Couper, que propuseram a tetravalência do carbono e a formaçao de cadeias carbônicas, contribuindo para a teoria estrutural. Pode-se afirmar, portanto, que a proposiçao e uso das estruturas químicas foi um processo gradual e feito em conjunto, começando com os trabalhos de Kekulé, passando pela sistematizaçao e aprofundamento realizados por Butlerov (que aplicou a ideia de estrutura química aos compostos orgânicos até entao conhecidos), e seguem sendo aperfeiçoados até os nossos dias - nao cabendo falar em um único fundador.24,42

A partir dos estudos que relacionavam a estrutura química e a reatividade dos compostos, a química orgânica, baseada na concepçao de cadeias carbônicas, começou a apresentar questoes que levaram a um amadurecimento e aprofundamento das ideias de valência e de estrutura. Dentre essas questoes estava o isomerismo, fenômeno no qual compostos com mesma composiçao elementar (logo, com mesma fórmula molecular) apresentam propriedades físico-químicas distintas. O isomerismo foi primeiro observado por Berzelius com o ácido tartárico e o ácido racêmico, e o conceito foi posteriormente aprofundado pelo estudo dos compostos orgânicos por Frankland e Dumas. Outra questao investigada na época foi a existência de compostos saturados e insaturados, os quais estavam relacionados, respectivamente, ao uso total ou parcial da valência de um átomo. Daí decorre a questao clássica a respeito de a valência ser constante ou variável, pois os dois modelos apresentavam exceçoes e nao explicavam todos os compostos conhecidos. Em outros termos, colocava-se também a questao da igualdade da valência: se todas as valências seriam iguais, ou se algumas valências poderiam ser usadas apenas em parte.2,18,24,25,37,41,43,49 Somava-se a essas questoes a dificuldade de se aceitar a tridimensionalidade das moléculas e visualizá-las, aspecto que só foi incorporado à teoria estrutural de Kekulé por Van't Hoff e Le Bel no final do século XIX, quando ambos propuseram, de forma independente, as ideias de carbono tetraédrico e de isomeria espacial, ou seja, a existência do chamado átomo de carbono assimétrico.70

Em relaçao à variaçao ou nao da valência de determinado elemento, a principal questao era a validade da teoria da química orgânica, baseada na tetravalência do carbono. Para manter essa característica estável, Kekulé admitia a formaçao de ligaçoes múltiplas entre os átomos de carbono e entre carbono e oxigênio, sendo que a presença dessas ligaçoes explicaria diferentes propriedades e a reatividade dos compostos. Outros químicos da época, como Crum Brown, falavam sobre valências livres, reduzidas ou parciais, as quais explicariam uma afinidade residual nos átomos que possuíssem essa característica, aumentando a reatividade dos compostos nos quais eles estavam presentes. Por exemplo, um átomo que possui valência máxima igual a 4, mas está fazendo apenas 2 ligaçoes, possuiria 2 valências livres, as quais seriam responsáveis por aumentar a reatividade do composto - pois esse átomo ainda teria possibilidade de formar mais ligaçoes, ou seja, ainda possuiria a chamada afinidade residual. Henry Armstrong (1848-1937) chegou a relacionar essa afinidade residual à carga do elemento ou do composto, para explicar as propriedades de condutividade e os resultados dos processos de eletrólise.2,4,18,24-26,42 A relaçao entre o número de valência e a carga de um íon foi utilizada durante muito tempo ao longo do século XX.

 

LIGAÇAO QUIMICA E VALENCIA

Desde o início, o conceito de valência esteve relacionado com afinidade química e com a formaçao de "algo" entre os elementos que permitisse a eles ficarem juntos. Sendo assim, o termo valência durante muito tempo foi considerado como sinônimo de ligaçao química. Nas palavras de Araújo Neto e Santos,69 "Num mundo ainda sem elétrons, a valência é a causa da ligaçao química. Essa ligaçao, por sua vez, é formulada sem interesse em dar conta de suas causas" (p. 10-11). Segundo Russell,25 a falta de interesse em explicar a ligaçao e a estrutura química fez, em certo momento, diminuir a importância atribuída ao conceito de valência, devido a sua natureza empírica.

De acordo com Kuznetsov,18 houve uma evoluçao ao longo do tempo. Tem-se um estágio inicial, na metade do século XIX, no qual o número de valência era igual ao número de ligaçoes químicas formadas por determinado elemento, como se vê no trabalho de Frankland.48 Chega-se, no início do século XX, à definiçao de valência em termos de pares de elétrons em torno dos átomos, os quais entao definiriam o número de ligaçoes químicas. Ou seja, o conceito de valência passou de algo mais empírico para algo mais teórico, de algo macroscópico (propriedade do elemento e sua reatividade) para algo submicroscópico (estrutura atômica e teoria da ligaçao de valência).18,48 Nesse caminho, outros termos foram utilizados, ou foram sendo diferenciados e mais bem definidos, como, por exemplo, número de coordenaçao e número de oxidaçao, antes considerados numericamente iguais ao número de valência, termo que muitas vezes prevalecia nas publicaçoes e nos livros didáticos.11 Segundo Russell,66 Sutcliffe44 e Jensen,45 Frankland foi o responsável por difundir o termo "ligaçao química" em substituiçao ao termo "valência" - o qual, por possuir diversos significados, causava confusao. Porém, o próprio Frankland considerava que esta era uma questao apenas de nomenclatura. Em livro de 1866, ao comentar o significado das fórmulas gráficas utilizadas para representar os compostos, Frankland afirmou:

As linhas que conectam os diferentes átomos de um composto sao apenas símbolos imperfeitos para os laços de uniao (bonds of union) entre eles; e sequer é necessário mencionar que nao existem tais conexoes materiais. As ligaçoes (bonds) que de fato mantêm juntos os átomos de um composto, com toda a probabilidade, no que diz respeito à sua natureza, devem ser muito mais parecidas com aquelas que conectam os membros do nosso sistema solar (p. 25).71

Nesta citaçao, Frankland deixa claro que a ligaçao nao existiria como um ente concreto, uma vez que para ele seria mais provável que os átomos estivessem ligados, como os planetas do sistema solar, por forças de atraçao à distância, em vez de fixos, como sugerido pela notaçao e pelo termo "ligaçao".

A gradativa elaboraçao do conceito de ligaçao química se deveu à tentativa de explicar a combinaçao dos elementos de forma mais detalhada, e que estivesse relacionada com a estrutura atômica. J. J. Thomson (1856 - 1940) criou um modelo atômico que envolvia partículas subatômicas de cargas negativas, posteriormente chamadas de elétrons. A partir desse modelo, Thomson criou uma teoria de ligaçao química que era caracterizada pela perda e ganho de elétrons. Dessa forma, um elemento se tornava positivo (o menos eletronegativo da dupla) e outro negativo (o mais eletronegativo da dupla), e por forças eletrostáticas se uniriam. Embora essa concepçao estivesse de acordo com as teorias dualísticas, ela nao explicava as ligaçoes na maior parte dos compostos orgânicos, nem as substâncias formadas por apenas um elemento (como, por exemplo, H2).72

Nos anos 1910, vários cientistas se empenharam em explicar a combinaçao dos elementos com base nos modelos atômicos de Thomson, de Niels Bohr (1885-1962) ou outros contemporâneos. Entre eles, o mais famoso e bem aceito foi o modelo de Lewis, o qual descreve a ligaçao química como transferência de elétrons entre dois elementos. Essa transferência poderia ser total - que seria o caso da ligaçao iônica, caracterizada pela formaçao de cargas nos átomos - ou parcial. Os casos de transferência parcial poderiam ser de vários graus, desde os mais fracos, nos quais os elétrons se encontrariam igualmente compartilhados entre os dois átomos (por exemplo, no H2), até os mais fortes, nos quais o átomo mais eletronegativo atrairia mais os elétrons para si, porém ainda o compartilharia com o outro átomo.

Em artigo de 1916, Lewis publicou uma representaçao que ele havia criado alguns anos antes, registrada em memorando de 1902. Segundo ele, a ideia surgiu a partir da chamada "Lei de Abegg da valência e contravalência", de acordo com a qual "a diferença entre as valências máximas, positivas e negativas... de um elemento é, frequentemente, oito, e em nenhum caso é maior do que oito" (p. 767).50 Isso o levou a postular um modelo em que os elétrons de um átomo que participam de uma reaçao química estariam situados em sua regiao mais externa, e dispostos como nos vértices de um cubo (Figura 8). Assim, nas reaçoes químicas, para um dado átomo o número de elétrons nessa camada poderia variar de zero a oito - o que permitiria explicar a citada Lei de Abegg.

 


Figura 8. Modelos de Lewis para os "átomos cúbicos", mostrando o número de elétrons na camada externa de alguns átomos (reproduzido da ref. 50, p. 767)

 

Lewis utilizou também ilustraçoes para mostrar ligaçoes como compartilhamento de pares de elétrons entre dois átomos, no contexto de uma possível explicaçao para ligaçoes polares e apolares.50 A Figura 9 traz exemplos de representaçoes para ligaçoes simples e duplas entre átomos iguais.

 


Figura 9. Estruturas moleculares: (i) de um halogênio, X2, exibindo um par eletrônico compartilhado entre os átomos; e (ii) do oxigênio, O2, exibindo dois pares eletrônicos compartilhados (reproduzido da ref. 50, p. 775 e 778)

 

No mesmo artigo, os compostos foram representados também por meio de estruturas que ficaram conhecidas como estruturas de Lewis, das quais alguns exemplos se encontram na Figura 10.50,72-74

 


Figura 10. Estruturas de Lewis (reproduzido da ref. 72, p. 345)

 

A teoria do par de elétrons compartilhados foi amplamente divulgada nos EUA pelo químico Irving Langmuir (1881 - 1957), que realizou várias conferências explicando essa nova teoria e a chamada regra do octeto, a qual indicava o número de elétrons da última camada dos átomos e que seriam utilizados para formar os pares eletrônicos. Essas conferências fizeram com que muitos creditassem a teoria a Langmuir e nao a Lewis, o que gerou um desconforto entre os dois. Lewis publicou um livro e artigos nos quais deixava claro que era dele a prioridade sobre a criaçao do modelo de ligaçao por pares de elétrons, como se pode observar na seguinte citaçao:

A teoria tem sido designada em alguns lugares como teoria de Lewis-Langmuir, o que implicaria em algum tipo de colaboraçao. De fato, o trabalho do Dr. Langmuir foi totalmente independente: e os acréscimos que ele fez ao que foi afirmado ou estava implícito no meu artigo devem ser creditados somente a ele (Lewis, 1923, apud Jensen, p. 199).75

Esse modelo de ligaçao química, o qual era totalmente empírico, enfrentou resistências, em particular no que se refere aos "átomos cúbicos", nos quais os elétrons se encontravam em arranjos estáticos.

O conceito de ligaçao química continuou a ser elaborado nos anos seguintes, com os novos modelos atômicos de Ernest Rutherford (1871-1937), de Bohr e a teoria quântica, que levaram à separaçao final entre os conceitos de valência e de ligaçao química. As teorias da ligaçao de valência e dos orbitais moleculares correlacionam ambos os conceitos, mas os caracterizam como construtos distintos. De maneira resumida, se poderia dizer que a valência de um elemento seria a quantidade de elétrons em cada um de seus átomos que estariam disponíveis para serem compartilhados e formarem ligaçoes com átomos de outros elementos químicos; e que a ligaçao química seria o resultado do compartilhamento de elétrons entre os átomos de dois elementos químicos, ou a combinaçao de seus orbitais atômicos. Dessa forma, pode-se entender que o conceito de valência volta a ser uma propriedade dos elementos químicos, a qual pode estar envolvida na formaçao da ligaçao química, mas nao é a ligaçao química.3,4,28,44,49,51

 

PERIODICIDADE QUIMICA E VALENCIA

Muitos livros didáticos mencionam a valência como uma propriedade periódica identificada por Mendeleev. Essa ideia é apontada por Palmer26 como verdade para as séries curtas da tabela periódica, mas nao para as séries longas, que incluem os chamados metais de transiçao e os lantanoides e actinoides - estes, entretanto, nao estavam presentes na tabela original de Mendeleev.

Williamson classificou os elementos de acordo com suas valências, e Frankland aperfeiçoou essa classificaçao usando o maior número de valência conhecido para cada elemento, incluindo dessa forma os elementos com valência variável. Em sua tabela periódica, Mendeleev havia indicado, para cada grupo da tabela, uma fórmula geral para os compostos que eles formavam com o oxigênio ou com o hidrogênio, elementos mais comuns e com maior número de compostos conhecidos na época. Essa fórmula geral aparecia no topo das colunas,25,30,52 como se observa na Figura 11, que reproduz uma tabela periódica de 1871.

Na segunda metade do século XIX, as fórmulas eram obtidas por meio das valências, ou a valência era obtida pela composiçao que dava origem à fórmula. Entretanto, a existência de valências múltiplas para um mesmo elemento poderia levar a seu questionamento como propriedade periódica, pois as valências múltiplas nao variavam de forma regular.25

 


Figura 11. Tabela Periódica indicando hidretos e óxidos mais comuns para cada grupo (reproduzido da ref. 76, p. 111)

 

O estabelecimento de uma correlaçao entre o sistema periódico e a valência, e a credibilidade dada àquele sistema após o advento das teorias eletrônicas, renovaram a utilidade do conceito de valência, embora houvesse dificuldades com alguns elementos do meio da tabela periódica (metais de transiçao). As principais características atribuídas ao conceito de valência no contexto do sistema periódico foram: a igualdade entre o número máximo de valência de um elemento e o número do grupo no qual esse elemento se encontra; a valência como uma propriedade que define os compostos formados, sua estabilidade e algumas de suas propriedades; e a relaçao da valência com a eletroquímica, em termos de carga do cátion ou ânion do elemento, fornecendo assim um caráter positivo ou negativo para a valência e relacionando-a de uma forma mais direta com a teoria eletrônica, ou seja, com a quantidade de elétrons nos átomos. Nesse mesmo contexto, a criaçao da teoria do octeto consolidou a aceitaçao do número máximo de valência como sendo oito, o que já era aceito e defendido por alguns químicos da época com base empírica, ou seja, pela observaçao dos compostos até entao conhecidos, o que depois foi explicado em termos de quantidade de elétrons pela teoria eletrônica. Cabe, porém, ressaltar que essa teoria é válida apenas para parte da tabela periódica e para alguns compostos e, por isso, atualmente existem outras teorias na química de coordenaçao, mais sofisticadas, que abrangem valências maiores que oito para determinados elementos em seus compostos.3,18,49

 

CONSIDERAÇOES FINAIS

Este estudo de caso histórico permite observar alguns aspectos do complexo processo de construçao e transformaçao do conceito de valência. O trabalho de Frankland em busca da preparaçao dos radicais metila e etila o levou, inesperadamente, à síntese e posterior caracterizaçao dos compostos organometálicos. É curioso considerar que, assim como os compostos organometálicos representam um ponto de intersecçao entre a química orgânica e a inorgânica, foi no contexto de sua síntese que Frankland observou e explicitou a quantificaçao do "poder de combinaçao" dos elementos - dando assim um importante passo em direçao a outra combinaçao: a da teoria dos tipos com a teoria dos radicais. Uma das questoes fundamentais da química orgânica, entao em desenvolvimento, se referia à estrutura das substâncias: para aprofundar o entendimento sobre a combinaçao entre , os elementos, os químicos buscaram estabelecer a distribuiçao espacial das valências dos elementos. Além disso, buscava-se compreender a natureza da combinaçao entre os elementos, ou seja, quais forças estavam envolvidas, ou o que fazia com que determinados elementos se unissem e outros nao. No que tange a essa questao, o desenvolvimento de teorias sobre a ligaçao química buscava definir o que seria a valência, ou seja, fazer com que esse conceito deixasse de ser puramente empírico e ganhasse correspondência com alguma entidade físico-química. Os resultados observados nesta investigaçao sugerem, em vez de uma ruptura paradigmática no sentido kuhniano, um processo gradual, no qual as novas teorias para a estrutura eletrônica dos átomos foram sendo "enxertadas" no modelo clássico de valência, gerando "híbridos férteis", como os tipos de ligaçao química (chamadas, por certo período, de eletrovalência e covalência). Ao longo desse processo, foram propostas explicaçoes teóricas para as propriedades periódicas dos elementos observadas empiricamente.

Implicaçoes para o ensino de química poderao resultar deste estudo de caso - o qual já serviu como referência para a análise da apresentaçao do conceito de valência em livros didáticos de química geral destinados ao ensino superior publicados nos EUA nas primeiras décadas do século XX.77 Além disso, o estudo de caso pode orientar a elaboraçao de planos de aula para o ensino médio ou superior, nos quais os professores discutam alguns aspectos da construçao do conceito (como a relaçao entre as fórmulas químicas e a valência) ou da própria natureza da ciência (como o uso e o abandono de modelos, exemplificado pelos átomos cúbicos de Lewis; ou o caráter dinâmico da ciência, exemplificado pela multiplicidade de contribuiçoes de diferentes cientistas, e a convergência de duas teorias concorrentes que levou à teoria da valência). Sao algumas possibilidades que se oferecem aos professores de química para inserir o viés histórico em suas abordagens para o conceito de valência.

 

AGRADECIMENTOS

Os autores agradecem à Fundaçao de Amparo à Pesquisa do Estado de Sao Paulo (FAPESP) pela concessao de bolsas de mestrado (2016/09213-5) e de pesquisa no exterior (2014/24213-6), ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pelo auxílio à pesquisa (426519/2016) e pela concessao de bolsa de produtividade em pesquisa (307652/2017-3).

 

REFERENCIAS

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