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Editorial


Hans Stammreich: um dos presentes de Hitler

Dalva L. A. de Faria; Marcia L. A. Temperini

Laboratório de Espectroscopia Molecular, Instituto de Química - Universidade de São Paulo


O título deste prefácio ao número especial de Química Nova, dedicado à memória do Prof. Hans Stammreich por ocasião do 50º. aniversário de seu falecimento, é uma citação ao livro escrito em 2003 por Jean Medawar e David Pyke1 (O Presente de Hitler - Cientistas que Escaparam da Alemanha Nazista). Nele, os autores relatam como o êxodo de cientistas judeus alemães provocado pela inclemente perseguição dos nazistas a partir de 1933 contribuiu para o desenvolvimento da ciência fora da Alemanha. Hans Stammreich não é citado nesse livro, mas certamente poderia ter sido.

Este número especial de Química Nova é uma justíssima homenagem a esse cientista, que desempenhou papel central no desenvolvimento da espectroscopia vibracional não somente no Brasil, mas também na América do Sul, ao introduzir a espectroscopia Raman em nosso Continente, no final da década de 1940, e por dar contribuições importantes, pelas quais ocupa posição de destaque na história dessa técnica.

Devido à perseguição aos judeus, Hans Stammreich emigrou para o Brasil chegando à cidade do Rio de Janeiro em outubro de 1940. Sua esposa, Da. Charlotte, já o havia precedido em alguns meses e a incompatibilidade com o clima, demasiado quente, fez com que se estabelecessem em São Paulo. Por sua larga experiência na produção de lâmpadas de descarga, expressa já naquela época por várias patentes depositadas em diversos países, começou a trabalhar em uma indústria de fabricação de anúncios luminosos; nesse período aprendeu o idioma e adaptou-se à vida no Brasil.

Apesar de ter adquirido um espectrógrafo Raman comercial poucos anos após ser contratado pelo Depto. de Física da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, com o qual publicou seu primeiro artigo científico sobre espectroscopia Raman em 19492, Stammreich optou por desenvolver sua própria instrumentação para suplantar o desafio de estudar amostras altamente coloridas, fotossensíveis ou luminescentes; nesse sentido, desenvolveu lâmpadas de He, Ar e metais alcalinos que produziam linhas no amarelo, vermelho e infravermelho próximo, tendo sido o pioneiro no uso de redes de difração no lugar de prismas porque a dispersão que produzem é maior em comprimentos de onda longos, proporcionando melhor resolução espectral. Esse espectrógrafo encontra-se preservado e em exposição no Bloco 4 Térreo do Instituto de Química da USP, onde o Prof. Stammreich estabeleceu-se em 1966 quando trocou seu laboratório da Av. Brigadeiro Luiz Antônio, no centro de São Paulo, pelas recém-inauguradas instalações do Conjunto das Químicas, no campus da USP no Butantã, que viriam oficialmente a se constituir na sede do Instituto de Química em janeiro de 1970, com a implantação da reforma universitária. A mudança aparentemente foi precipitada pelo fato do proprietário do imóvel da Av. Brigadeiro Luiz Antônio não ter mais interesse em locá-lo para a Universidade, apesar disso, segundo membros do LEM à época, Stammreich havia manifestado interesse em optar pelo Depto. de Química quando a reforma universitária fosse implantada, o que infelizmente somente aconteceu após seu falecimento.

O Prof. Stammreich tem – indexados no Web of Science – 51 artigos científicos, aos quais somam-se os vários que publicou em revistas então não indexadas, inclusive nacionais como os Anais da Academia Brasileira de Ciências e Anais da Faculdade de Farmácia e Odontologia da USP, perfazendo um total de 87 artigos, a sua quase totalidade publicados nos 29 anos em que esteve no Brasil. Um fato que chama muito a atenção é que a qualidade de seus trabalhos faz com que ainda hoje, tantos anos após sua morte, tenham um número expressivo de citações, como mostrado na Figura 1 que cobre o período de 1924 até 2019.

 


Figura 1. Número de citações dos artigos de H. Stammreich desde 1924 até 2019: o número de citações segue expressivo mesmo após meio século de sua morte

 

Apenas duas teses de doutorado foram orientadas por Stammreich: as de Oswaldo Sala e Roberto Forneris, mas desde o início de suas atividades na Universidade de São Paulo soube se cercar de pessoas competentes, dedicadas e motivadas, que foram capazes de levar a cabo um meticuloso trabalho experimental que, além de espectroscopia, envolvia também conhecimentos de vidraria, eletrônica e mecânica, produzindo resultados que eram interpretados com profundo rigor acadêmico. Nesse período também é importante citar a colaboração inestimável de Pawel Krumholz, detentor de invejável cultura em química e que se tornou professor colaborador no Depto. de Química em 19663. Na Figura 2 estão indicadas as pessoas que colaboraram mais diretamente com o Prof. Stammreich, bem como a equipe de docentes do LEM, constituída desde 1969 até os dias de hoje.

 


Figura 2. Diagrama mostrando os principais colaboradores de Stammreich e a estrutura do Laboratório de Espectroscopia Molecular

 

A partir de março de 1969, coube ao Prof. Oswaldo Sala dar continuidade ao trabalho desenvolvido por Stammreich, enfrentando desafios imensos e de diversas naturezas4, concomitantemente à adaptação às novas fontes de excitação (lasers) e novos detectores (fotomultiplicadoras). Com a introdução dos lasers, houve um ressurgimento do interesse na espectroscopia Raman, com a possibilidade de exploração mais ampla do efeito Raman ressonante, de efeitos não lineares e de técnicas resolvidas no tempo, o que foi possível graças à disponibilidade de lasers pulsados. É também dessa época (1974) a observação pioneira do efeito de intensificação do espalhamento Raman que, anos depois (1977), descobriu-se ser causado por características específicas de alguns tipos de superfícies (efeito SERS).

O Laboratório de Espectroscopia Molecular (LEM), criado pelo Prof. Stammreich no final da década de 1940 não deixou de atuar nessas novas áreas de investigação que se abriram em decorrência das novas tecnologias; contribuições teóricas e práticas de grande impacto, em especial relacionadas ao efeito Raman ressonante e efeito SERS, foram dadas graças à dedicação incansável da equipe liderada pelo Prof. Oswaldo Sala. Há cerca de vinte anos, a aquisição de um microscópio Raman dedicado permitiu aos membros do LEM explorar um dos campos de atuação mais marcantes de Stammreich: as aplicações práticas que resultam da investigação da natureza íntima das substâncias, como emblematicamente representado pelo artigo publicado em 19355, no qual propõe um método baseado em raios X para diferenciar pérolas naturais das cultivadas. Não é sem razão, portanto, que hoje as investigações aplicadas desenvolvidas no LEM se estendem de sistemas biológicos e bioquímicos à investigação de minerais e objetos arqueológicos.

Neste número especial de Química Nova o leitor encontrará aspectos biográficos e acadêmicos da vida de Hans Stammreich bem como contribuições de alguns dos pesquisadores e pesquisadoras formados ou que mantiveram colaboração com o laboratório criado por ele. É, certamente, uma homenagem merecida e, talvez acima de tudo, uma demonstração de que se a obra sobreviveu ao cientista foi porque a semente plantada por ele encontrou no ambiente acadêmico da ainda jovem Universidade de São Paulo o solo fértil e as condições propícias para germinar e frutificar.

 

AGRADECIMENTOS

A publicação deste número especial de Química Nova foi possível graças ao apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (processo número 16/21070-5), da Bruker do Brasil e da Renishaw Latino Americana Ltda.

 

NOTA E REFERÊNCIAS

1. A evocação desse livro foi, muito pertinentemente, feita pela Profa. Shirley Schreier ao final do Simpósio em homenagem ao Prof. Hans Stammreich ocorrido no IQUSP em 29/7/19, pelo que agradecemos.

2. Stammreich, H.; Phys. Rev. 1950, 78, 79.

3. Vichi, E.J.S; Quím. Nova 1983, 6, 152.

4. http://lem.iq.usp.br/wp-content/uploads/2016/01/Memorias_sobre_o_Lab_de_Espec-atualizado.pdf. Consultado em 15/09/2019.

5. Stammreich, H.; Dispositif de discernement de perles fines e de perles cultivées, La Perle, Paris, 1935.

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