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Hans stammreich: uma perspectiva histórica Hans Stamreich: a historical perspective |
Dalva L. A. de Faria
Departamento de Química Fundamental, Instituto de Química, Universidade de São Paulo, 05508-000 São Paulo - SP, Brasil Recebido em 21/10/2019 *e-mail: dlafaria@iq.usp.br The introduction of Raman spectroscopy in South America and the development of techniques which allowed the use of radiation in the red and near infrared are discussed in this work, highlighting not only the technical aspects but also the European political and social contexts in the 1930s. When the Nazis came to power in 1933, thousands of jewish scientists, journalists and artists fled Germany, escaping from oppression, persecution and death; many of them played a pivotal role in the development of science in America. This is the case of Hans Stammreich. INTRODUÇÃO Nos 50 anos que se seguiram à morte do Prof. Stammreich várias biografias foram publicadas,1-3 assim como obituários em diversas revistas científicas4-6 e jornais,7 além de homenagens em geral.8,9 Muito sobre sua atuação acadêmica foi revelado nessas instâncias, porém, há aspectos sobre sua atuação profissional e também sobre sua vida pessoal que ainda não foram adequadamente abordados. As décadas que nos separam de março de 1969 talvez tenham dado o distanciamento necessário para que isso ocorresse agora. Grande parte das informações que serão apresentadas a seguir é do próprio punho de Hans Stammreich (ou Hanns Stammreich, como se identificava no período que antecedeu sua emigração ao Brasil) e constam de dois Curricula Vitae escritos em português,10,11 não datados, mas que provavelmente foram preparados no período entre 1942-1945 e em 1947 quando se deu contratação como professor colaborador e catedrático, respectivamente, no Departamento de Física da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) da USP; há ainda um terceiro Curriculum escrito em alemão cuja data não é possível precisar. Muitos dos documentos usados na preparação deste texto fazem parte do acervo doado pela Sra. Charlotte Stammreich, viúva do Prof. Stammreich, à Universidade de São Paulo – aparentemente a doação foi feita inicialmente ao Prof. Dr. Shozo Motoyama que posteriormente (1986) o encaminhou ao Centro de Apoio à Pesquisa em História "Sérgio Buarque de Hollanda" (CAPH) da FFCL12 – mas algumas informações foram obtidas de documentos do Depto. de Física da FFCL que foram digitalizadas, em um projeto iniciado sob a coordenação da Profa. Amélia Império Hamburger (Instituto de Física da USP) em 1995,13 bem como de diversos livros e informações de jornais da época.
VIDA NA ALEMANHA Hans Stammreich, nascido em 16 de julho de 1902 em Remscheid, localizada na região administrativa de Dusseldorf, era filho de Maximilien Stammreich (1867-1941) e Henriette Alsberg (1880-1934). Maximilien, ou Max como é frequentemente citado na literatura, era médico e tinha sua própria clínica. De acordo com H. W. Morgan,14 do Depto. de Física do Oak Ridge National Laboratory, Hans era uma criança precoce e seus pais tiveram um papel ativo em sua educação4. Concluiu a graduação em 1920, em Remscheid1, ingressou na Sociedade Alemã de Química em 1922 (Figura 1) e recebeu o título de Doutor em Ciências com grande distinção (magna cum laude) na Escola Politécnica de Berlim-Charlottenburg, hoje TU Berlim, em 1924. Sua tese versava sobre a desensibilização de emulsões de brometo de prata em gelatina e foi orientada pelo Prof. Adolf Miethe (1862-1927); apesar da literatura reportar que em sua banca estavam Max Bodenstein, Fritz Haber e Walther H. Nernst1,2 nas páginas introdutórias de sua tese estão apenas os nomes de Max Bodenstein15 e Alfred Stock.16
Figura 1. Certificado de filiação à Sociedade Alemã de Química. Fonte: Centro de Apoio à Pesquisa em História da Ciência, Depto. de História, FFLCH; Arquivo privado "Prof. Hans Stammreich"
Logo após a obtenção de seu doutorado, Stammreich opta pela carreira acadêmica e ingressa, em 1924, como assistente júnior do Prof. A. Miethe no Instituto de Fotoquímica da Escola Politécnica de Berlim-Charlottenburg (esse ano consta de um dos Curricula Vitae elaborado pelo próprio Stammreich, o ano que aparece em outras biografias é 19251-3). Com a morte de Miethe em 1927 tornou-se nesse mesmo ano assistente no laboratório do Prof. E. Lehmann e em 1930 tornou-se responsável pela criação de um laboratório de espectroscopia na mesma Instituição, cargo que ocupou até 1933 quando tornou-se assistente sênior; logo depois, com a tomada do poder pelo partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores da Alemanha (Partido Nazista) ele, por ser judeu, foi exonerado. A carta enviada pelo Comitê de Ações da Escola Técnica de Berlim do Partido Nacional-Socialista a Stammreich em 4 de abril de 1933 (Figura 2) trazia: "Considerando que há claras evidências de que você não é um ariano e o clima nacional atual, nós o recomendamos a solicitar afastamento de suas funções e, até que uma decisão seja tomada, que não entre mais na Escola Técnica". Em 2 de maio daquele ano foi afastado provisoriamente de suas funções pelo então Reitor da Escola e formalmente exonerado em 24 de julho de 1933.17
Figura 2. Carta do Comitê de Ações do partido Nacional-Socialista da Alemanha exonerando H. Stammreich de suas funções na Escola Politécnica de Berlim-Charlottenburg. Fonte: Centro de Apoio à Pesquisa em História da Ciência, Depto. de História, FFLCH; Arquivo privado "Prof. Hans Stammreich"
Durante o período em que trabalhou com o Prof. Miethe, envolveu-se com um dos temas mais polêmicos de sua carreira: a formação de pequenas quantidades de ouro nas lâmpadas de mercúrio (Figura 3) ou, como escreveu em seu Curriculum elaborado duas décadas depois "em 1924/27, publicou com o Prof. Miethe pesquisas sobre a possível dissociação do átomo de mercúrio por descargas elétricas e sobre a formação e microanálise de traços mínimos de ouro".11 Essa informação aparece também em seus outros Curricula, o que indica que ele nunca acreditou que a detecção de linhas do espectro atômico do Au nas lâmpadas de mercúrio que construía (e que aumentavam de intensidade com o tempo de funcionamento das lâmpadas) decorresse de alguma contaminação em sua aparelhagem. Algumas patentes a esse respeito foram geradas no período (Figura 4).
Figura 3. Reproduções de duas publicações da década de 1920 sobre a possível formação de microquantidades de ouro a partir de descargas elétricas em mercúrio. Fonte: Centro de Apoio à Pesquisa em História da Ciência, Depto. de História, FFLCH; Arquivo privado "Prof. Hans Stammreich"
Figura 4. Patente relacionada à formação de ouro a partir de Hg. Fonte: Centro de Apoio à Pesquisa em História da Ciência, Depto. de História, FFLCH; Arquivo privado "Prof. Hans Stammreich"
Segundo Stammreich e Miethe, a quantidade de ouro formada era muito pequena (aparentemente da ordem de 10-3 mg de Au por quilograma de Hg)18 para justificar o aproveitamento comercial do método, mas o desafio de ambos era entender o fenômeno observado. Em carta endereça à revista Nature em 9 de agosto de 1924 por Frederick Soddy lê-se "realmente, algum tempo antes do anúncio do Prof. Miethe era claro para mim que, passando uma descarga com tensão suficientemente alta por vapor de mercúrio, não apenas essa transmutação deve ocorrer como ela é inevitável, a menos que nossa visão atual sobre a estrutura atômica esteja radicalmente errada"19 (Figura 5). Naquela carta, Soddy dizia ainda que "se a perda de um elétron pelo núcleo de um elemento (gerando radiação) observada nos processos de desintegração radioativa resulta no aumento do número atômico desse elemento em uma unidade, então o ganho de um elétron por um núcleo atômico deve produzir a diminuição do número atômico também em uma unidade";19 no caso de um isótopo de mercúrio de número atômico 80, isso produziria um isótopo de ouro de número atômico 79. Essa hipótese foi firmemente combatida à época por F. W. Aston, 20 que afirmou que se ouro pudesse ser formado pela adição de um elétron ao núcleo de um átomo de mercúrio sua massa atômica deveria ser pelo menos 198 u ou seja, perceptivelmente mais alto do que o do ouro cujo valor aceito à época era 197,2 u.21
Figura 5. Carta de Soddy, comentando a publicação de Miethe a respeito da formação de ouro a partir de mercúrio. Fonte: Centro de Apoio à Pesquisa em História da Ciência, Depto. de História, FFLCH; Arquivo privado "Prof. Hans Stammreich"
Pouco tempo depois (1927) Miethe faleceria e, segundo um colaborador que na ocasião escreveu sua biografia, mesmo em seu leito de morte ele estava convicto de suas observações sobre o que chamava de decomposição nuclear do Hg e planejava experimentos que pudessem comprová-la.22 Ainda em Berlim, Miethe e Stammreich firmam contrato com a Siemens e Halske para a produção de lâmpadas a vapores metálicos (1925) e Stammreich registra na Alemanha mais três patentes sobre lâmpadas desse tipo, em 1930, 1931 e 1933; neste último caso, a patente foi solicitada em 1929 mas somente foi liberada no final de agosto de 1933, quando ele e sua esposa já estavam morando em Paris. Patentes similares foram depositadas na Bélgica, França, Inglaterra, Canadá, Escócia e Holanda, entre 1930 e 1932. Stammreich também idealizou um instrumento para registro fotográfico da taxa de sedimentação de eritrócitos chamado de "Sedigraph" (entre 1930 e 1933) que aparentemente foi comercializado pela Leitz-Bergman de Berlim (Figura 6).
Figura 6. "Sedigraph" foi um instrumento de diagnóstico médico baseado na determinação fotográfica da taxa de sedimentação de glóbulos vermelhos, idealizada por H. Stammreich. Fonte: Centro de Apoio à Pesquisa em História da Ciência, Depto. de História, FFLCH; Arquivo privado "Prof. Hans Stammreich"
A experiência profissional de Stammreich demonstrada nessas patentes foi fundamental para seu sucesso posterior com a espectroscopia Raman porque dominava o conhecimento técnico das fontes de radiação monocromática (lâmpadas de descarga) e os detectores (placas fotográficas) usados nos espectrógrafos Raman de então. Em 1929 Hans casa-se com Charlotte Marcuse (1908-2008) que era assistente de laboratório na mesma Instituição em que Stammreich trabalhava. Foi nesse período em Berlim (anterior a 1933) que o casal tornou-se amigo de Axel Eggebrecht e Arthur Koestler, aparentemente por participarem de rodadas de pôquer que, segundo Alfred Apfel ocorriam aos sábados à noite em sua casa;23 Apfel era advogado e conhecido por defender judeus na já conturbada Berlim do final da década de 1920 e início da década de 1930. O nome de Stammreich aparecerá, anos mais tarde, na biografia de Koestler que relata o período de prisão na Espanha e revela uma inesperada atuação de Stammreich como figura importante da Internacional Comunista (Comintern) que, naquela época, era peça fundamental na resistência ao nazismo na Europa.24 A esse respeito, em um de seus Curricula (provavelmente elaborado em 1942 ou 1943) diz que colaborou "durante os anos anteriores à guerra, de 1933 a 1939, de vários comitês e organizações que tinham por objetivo a assistência às vítimas do hitlerismo na Alemanha e na Áustria, ajudando-as a sair daqueles países, etc. etc.". Ainda segundo o texto, "ocupou-se especialmente dos homens de ciência e profissionais liberais".10
PARIS: 1933 A 1940 Einstein, desde 1933 domiciliado fora da Alemanha, teve um papel extremamente importante no acolhimento de cientistas e intelectuais judeus que passaram a ser intensa e ferozmente perseguidos com a ascensão dos nazistas ao poder. São dele várias cartas de recomendação que facilitaram a Stammreich não somente encontrar uma colocação em Paris, como também ser acolhido no Brasil, posteriormente. Segundo depoimento de sua viúva, que lhe sobreviveu em quase quatro décadas, conheceram Einstein e sua esposa, Elsa, durante as primeiras semanas de emigração que foram passadas na Bélgica; Einstein, antes de se estabelecer nos Estados Unidos, ficou alguns meses em Antuérpia (28/3/1933 a 9/9/1933) de onde partiu para a Inglaterra e de lá para os EUA, aportando em Nova Iorque em 17/10/1933.25 Antes de deixar o Continente, Einstein voltou a visitá-los em Paris, cidade na qual Stammreich lecionava graças às indicações feitas por ele (Figura 7): foi professor na Escola Municipal de Química e Física (que tinha então Paul Langevin como diretor) e ensinou físico-química na Sorbonne (Prof. Charles Fabry era então Diretor do Instituto de Pesquisas Ópticas daquela Universidade).
Figura 7. Carta de recomendação à Stammreich escrita por Einstein. Fonte: Centro de Apoio à Pesquisa em História da Ciência, Depto. de História, FFLCH; Arquivo privado "Prof. Hans Stammreich"
Segundo depoimento de Da. Charlotte2, em Paris tiveram a oportunidade de fazer novas amizades entre refugiados alemães (cientistas, escritores e artistas) e de conviver com amigos que tinham desde Berlim, sendo que além dos que já foram citados pode-se também acrescentar o nome de Lion Feuchtwanger; aparentemente os franceses, exceto Fabry e Langevin, mantinham certo distanciamento do casal. Desse período é a participação de Stammreich como representante alemão na Internacional Comunista como já reportado anteriormente.24 Enquanto a guerra na Europa não chegava até Paris, Stammreich teve a oportunidade de trabalhar por um ano em Teerã, na implantação de um laboratório de espectroscopia no Instituto Estadual do Ministério de Minas naquela cidade. Chama a atenção o fato dessa viagem ter sido mediada por um político britânico (Dudley Leigh Aman, Lord Marley) que, de acordo com Einstein,26 era simpatizante do partido comunista soviético; considerando que Stammreich era membro do Comintern é possível que essa viagem tivesse também outros propósitos, mas não há evidências disso. Nesse período, Stammreich também realizou visitas mais curtas a Moscou e Leningrado e, em 1936, apresentou no Instituto Estadual de Óptica de Leningrado curso sobre princípios e métodos de medição de absorção de radiação no ultravioleta, visível e infravermelho, a convite de Sergey Ivanovich Vavilov, importante físico russo cujas maiores contribuições referem-se a estudos sobre luminescência, tendo participado em 1934 da investigação que descobriu um novo tipo de radiação (radiação Vavilov-Cherenkov) cujos desdobramentos levaram Pavel Cherenkov a receber, mais de 20 anos depois, o prêmio Nobel de Física.27
A INVASÃO DE PARIS E A FUGA DA EUROPA Os alemães expandiram seus domínios pela Europa, chegando à França no início de 1939; em setembro daquele ano, os imigrantes alemães masculinos (entre eles Stammreich) foram aprisionados em um campo perto de Orleans e alguns meses depois tiveram a opção de irem servir na Legião Estrangeira, construindo estradas, ou saírem da França. A intenção original era irem aos Estados Unidos, porém, Einstein os alerta (Figura 8) sobre um problema de cota para obtenção de visto, o que os fez direcionarem sua viagem ao Brasil.
Figura 8. Carta de Einstein à Charlotte Stammreich comentando a dificuldade em obter visto para os EUA. Fonte: Centro de Apoio à Pesquisa em História da Ciência, Depto. de História, FFLCH; Arquivo privado "Prof. Hans Stammreich"
A relação entre Aloysio de Castro (médico, professor e poeta carioca) e Einstein, que se estabeleceu no período em que ambos participavam no Comitê para Cooperação Intelectual da Liga das Nações (entidade precursora da ONU) foi fundamental, porque Castro interferiu pessoalmente para a agilização da autorização para vinda de Stammreich ao Brasil, provavelmente por solicitação de Einstein. Em 2 de maio de 1940 os Stammreich estavam a bordo do vapor Jamaique que partiu de Bordéus com destino ao Rio de Janeiro e que tinha escala em Lisboa, Casablanca e Dakar (Figura 9). Quando o Jamaique deixou o porto de Casablanca (então território francês) em 14 de maio, Hans não estava mais na lista de passageiros: foi retirado da embarcação pelas forças de segurança e levado para um campo de concentração provisório onde permaneceu por alguns meses. Assim, Da. Charlotte chegou ao Rio de Janeiro sozinha em 30 de maio de 1940 (Figura 9) à bordo do vapor francês Jamaique "quase sem dinheiro e sem conhecer ninguém", além de não ter notícias de seu marido.
Figura 9. Acima: Diário de bordo do vapor Jamaique mostrando que Hans e Charlotte haviam embarcado em Bordéus em 2 de maio de 1940. Abaixo: Registro de entrada no Brasil apenas de Charlotte Stammreich, em 30/5/1940. Fonte: https://www.familysearch.org/wiki/pt/Brasil,_Porto_do_Rio_de_Janeiro,_Listas_de_Passageiros_e_Imigrantes_ (Registros_Hist%C3%B3ricos_do_FamilySearch), acessada em Outubro 2019
Segundo o relato de Da. Charlotte,2 Stammreich conseguiu deixar Casablanca subornando um oficial,28 obtendo com isso um lugar em uma pequena embarcação (o cargueiro português Vilar Formosa), que também levava Camille Chautemps e outros membros do governo local à época.29 O Vilar Formosa aportou em Lisboa em 14 de setembro de 1940, de onde Hans embarcou finalmente para o Brasil no vapor brasileiro Cuyabá e desembarcou na cidade do Rio de Janeiro em 27 de outubro de 1940 (Figura 10). Curiosa e tristemente, o nome de Stammreich na lista de passageiros do vapor aparece como Hans Israel Stammreich (Figura 11), porque uma lei alemã de 17/08/193830 exigia que os judeus inserissem nomes "tipicamente judaicos" aos seus passaportes: os homens passaram a usar o nome Israel e as mulheres, Sara.
Figura 10. Registro de entrada no Brasil de Hans Stammreich, em 27/10/1940, proveniente de Lisboa, a bordo do navio Cuyabá. Fonte: https://www.familysearch.org/wiki/pt/Brasil,_Porto_do_Rio_de_Janeiro,_Listas_de_Passageiros_e_Imigrantes_ (Registros_Hist%C3%B3ricos_do_FamilySearch), acessada em Outubro 2019
Figura 11. Registro de bordo do navio Cuyabá mostrando que o nome de Stammreich foi escrito acrescentando Israel, um procedimento anti-semita adotado por vários países europeus. Fonte: https://www.familysearch.org/wiki/pt/Brasil,_Porto_do_Rio_de_Janeiro,_Listas_de_Passageiros_e_Imigrantes_ (Registros_Hist%C3%B3ricos_do_FamilySearch), acessada em Outubro 2019
A intercessão de Aloysio de Castro e Einstein foi fundamental para a vinda dos Stammreich ao Brasil, porque a política migratória de Getúlio Vargas proibia a concessão de vistos para semitas; a inclusão de Israel ao nome de Stammreich mostra claramente a aversão aos judeus durante o Estado Novo. O embaixador do Brasil na França na ocasião, Luiz Martins de Souza Dantas, desobedeceu ordens expressas do então Ministro das Relações Exteriores (Oswaldo Aranha) que proibia a concessão de visto para judeus e outras pessoas consideradas indesejáveis. Estima-se que mais de 1000 vidas tenham sido salvas dessa forma e a atitude heroica do Embaixador é relatada no livro "Quixote nas Trevas: o embaixador Souza Dantas e os refugiados do nazismo" (de Fábio Koifman) o qual inspirou o filme "Querido Embaixador", lançado em 2017. Finalmente livres da perseguição nazista na Europa, o casal não se adaptou ao clima da cidade do Rio de Janeiro e mudam-se em seguida para São Paulo, onde Stammreich começou a trabalhar em uma indústria de fabricação de luminosos (Niil Neon Ltda.). A data exata da mudança do casal é incerta, mas há uma comunicação de alteração de endereço (para R. Inglaterra, 296 em São Paulo) datada de 19/05/194131 no registro de estrangeiros de ambos.
PRIMEIROS ANOS NO BRASIL Sua vasta experiência com projeto e desenvolvimento de lâmpadas de descarga possibilitou que atuasse por vários anos (até julho de 1946 e a partir de 1945 sendo como consultor) na empresa Niil Neon Ltda, ligada à iluminação e produção de anúncios luminosos. Esse período atuando na indústria fez com que aprendesse rapidamente o português e, ainda no início de 1941, obteve uma carta de recomendação de Aloysio de Castro (cuja cópia é mostrada na Figura 12) endereçada ao então reitor da USP Rubião Meira, na qual seu interesse em conhecer a Escola Politécnica é declarado; é possível que essa visita tenha ocorrido, mas não há registro disso nem de qualquer vínculo com aquela Escola. Em junho de 1944 uma nova carta de recomendação, desta vez escrita pelo Diretor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (Plínio Ayrosa) a pedido do então Reitor da USP (Jorge Americano) e endereçada ao Chefe do Depto. de Física (Gleb Wataghin, Figura 13) aproximou Stammreich da Universidade, que começou a se envolver com projetos tecnológicos desenvolvidos pela Marinha. Naquela ocasião iniciou-se a história de Hans Stammreich na Universidade de São Paulo.
Figura 12. Carta de apresentação de Stammreich escrita por Aloysio de Castro e endereçada a Rubião Meira, então reitor da Universidade de São Paulo. Fonte: Centro de Apoio à Pesquisa em História da Ciência, Depto. de História, FFLCH; Arquivo privado "Prof. Hans Stammreich"
Figura 13. Carta de apresentação de Stammreich escrita por Plinio Ayrosa, então diretor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP e endereçada a Gleb Wataghin, diretor do Depto de Física. Fonte: Centro de Apoio à Pesquisa em História da Ciência, Depto. de História, FFLCH; Arquivo privado "Prof. Hans Stammreich"
CONTRATAÇÃO NA USP A época não era auspiciosa, devido à participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial. Após o ataque a Pearl Harbor em 1941 os Estados Unidos declararam guerra ao Japão e, no ano seguinte, aos outros países do Eixo. Pressionado, o governo de Getúlio Vargas declarou a participação do Brasil nas forças aliadas em agosto de 1942, o que implicou em rompimento de relações diplomáticas com os países do Eixo. Essa situação teve um forte impacto na Universidade de São Paulo que, recém-criada (1934), havia optado por professores estrangeiros para estruturar seus departamentos acadêmicos. Muitos professores alemães e italianos foram exonerados e as pesquisas que eram realizadas foram suspensas e substituídas por outras, vinculadas às atividades militares. No Depto. de Física foram implantadas pesquisas em "balística, radares e desenvolvimento de aparelhos para identificar submarinos, além de estudos a respeito das propriedades dos materiais ferromagnéticos".32 Marcello Damy então diretor do Depto. de Física, participou da equipe envolvida no desenvolvimento de um sonar para a Marinha, projeto esse que teve financiamento do Fundo Universitário e Pesquisas para a Defesa Nacional. É muito provável que Stammreich tenha se envolvido com esse projeto porque há relatórios de atividades então realizadas, voltados à construção de válvulas de mercúrio e ao desenvolvimento de papéis especiais para serem usados em registradores de sonares.11,33 Por razões óbvias, ele não pode ser contratado até 1945, quando a guerra foi encerrada. Torna-se responsável pela cadeira de Física Superior em 1947, ano em que adquire um espectrógrafo Raman que se tornou o primeiro em operação rotineira na América Latina: um Lane-Wells com lâmpada de mercúrio e três prismas de 10 cm de base, que conferiam "resolução de 3 cm-1 em 4358 Å e "com excelente definição entre 4000 e 6500 Å".34 (Figura 14). Nos documentos digitalizados do antigo Depto. de Física da FFCL-USP foi encontrado um orçamento datado e 6/8/1937 (proposta no. 1175) para aquisição de um espectrógrafo Zeiss com arranjo de Försterling35 o qual com lâmpada de Hg e acessórios foi orçado em RM 6.232 (reichsmark, moeda alemã até 1948); muito provavelmente esse espectrógrafo foi comprado porque há uma nota de entrega (no. 5737) datada de 6/12/1938 na qual há a assinatura de Abrahão de Moraes atestando o recebimento de um "tubo de quartzo para lâmpada seg. Raman". Aparentemente esse instrumento não gerou qualquer publicação e seu nome aparece somente em 1953, quando Stammreich o usa para obter o espectro Raman de BrCl usando uma lâmpada de hélio36 como será detalhado adiante.
Figura 14. Foto do espectrógrafo Lane-Wells comercializado no final da década de 1940. Imagem retirada da ref. 34 (reprodução autorizada pela revista Analytical Chemistry)
Um dos pesquisadores que escreveram biografias de Stammreich após seu falecimento foi Henry W. Morgan do Laboratório Nacional de Oak Ridge (Tennesee, EUA) e nela é citado o envolvimento de Stammreich com corridas de cavalos, destacando que ele teria juntado pequena fortuna com a atividade e que usava parte desses recursos com o laboratório, devido à escassez de financiamento na época.4 Essa informação poderia levar à indagação se Stammreich teria usado recursos próprios para aquisição do espectrógrafo, mas um documento proveniente do Depto. de Física da FFCL-USP (Figura 15) apresenta o valor da compra (US$ 10.172,00), nele incluídos os acessórios, e o número do processo (18-490) de onde adviriam os recursos.
Figura 15. Relação de instrumentos pedidos à Lane-Wells Co., com indicação da origem dos recursos. Fonte: Acervo do Instituto de Física da USP, http://acervo.if.usp.br/uploads/IF/DF/IV-0/IF-DF-IV-02-00-0000-02101-0.pdf, acessada em Outubro de 2019
STAMMREICH E A ESPECTROSCOPIA RAMAN O primeiro artigo sobre espectroscopia Raman publicado por Stammreich saiu em setembro de 1949 nos Anais da Academia de Ciências37 e nele foi utilizado o espectrógrafo Raman Lane-Wells adquirido em 1947 pelo Depto. de Física da USP. Nesse artigo, alguns ésteres benzoicos foram estudados usando a linha em 435,8 nm de uma lâmpada de mercúrio, objetivando compreender o efeito de ligações de hidrogênio intermoleculares sobre a frequência de vibração da carbonila. O espectrógrafo Lane-Wells usava as linhas da lâmpada de Hg como radiação excitante e empregava três prismas de vidro flint para dispersar a radiação espalhada, proporcionando um poder de resolução de 2,5 cm-1 na região da radiação de excitação (435,8 nm). O registro do espectro era feito com filme fotográfico que deveria ter como características desejáveis sensibilidade boa e uniforme na região visível do espectro, além de granulação compatível com o poder de resolução espectral do espectrógrafo. O filme usado nesse artigo foi o Tri-X-Panchromatic (Eastman Kodak Co.) que atendia essas características até ca. 650 nm. A posição das bandas era determinada usando um comparador que tinha precisão de leitura entre 1 e 2 µm o que permitia, segundo Stammreich e Gonçalves, "a determinação de comprimentos de onda com um erro de ± 0,1 Å, ou seja, ± 0,5 cm-1, na região da linha excitante".37 A necessidade de empregar comprimentos de onda mais longos na obtenção dos espectros Raman decorria do fato de que as linhas em 435,8 nm e 546,1 nm das lâmpadas de mercúrio, então usadas como fonte de excitação, não podiam ser empregadas no estudo de substâncias fotossensíveis, fluorescentes ou altamente coloridas, por conta da decomposição fotoquímica ou térmica ou então devido à emissão de luz que esses comprimentos de onda ocasionavam. Radiações na região do vermelho ou do infravermelho próximo, apesar de serem desfavoráveis devido à dependência com a quarta potência da frequência da radiação excitante apresentada pelo espalhamento de luz, minimizam esses efeitos indesejáveis do uso de radiações mais energéticas. De fato, Krishnamurti (lâmpada de cádmio, 643,9 nm)38 e Thompson (lâmpada de He 587,6 nm)39 já haviam publicado no final da década de 1930, espectros obtidos em comprimento de onda mais longo, entretanto, haviam dificuldades técnicas que só seriam superadas uma década depois e que impediam que a excitação nessa região do espectro pudesse ser feita de forma rotineira. Stammreich entendeu que lâmpadas de He eram a melhor opção para amostras com as características acima citadas e desenvolveu lâmpadas estáveis e duráveis, além de ter construído seu próprio espectrógrafo no qual os prismas foram substituídos por redes de difração contornando assim os problemas técnicos associados à excitação em comprimentos de onda longos. Em uma publicação de 1956,40 Stammreich fornece detalhes do arranjo experimental que foi empregado e de como atacou as principais dificuldades experimentais no uso de radiação no vermelho e infravermelho próximo. O primeiro artigo publicado usando uma lâmpada de He apareceu em 1950, também nos Anais da Academia Brasileira de Ciências.41 O comprimento de onda 587,6 nm foi usado para estudar a relação de intensidade entre as bandas Stokes e anti-Stokes do CCl4 e o mesmo arranjo experimental foi utilizado em um estudo sobre azobenzenos,42 também publicado em 1950. No caso do azobenzeno, um trabalho anterior da literatura reportava o estudo dessa substância empregando as linhas amarelas da lâmpada de Hg em 577,0 nm e 579,1 nm (dubleto).43 Esses comprimentos de onda haviam sido tentados em outros trabalhos do grupo de Stammreich, sem sucesso por causa da fraca intensidade dessas linhas e da absorção da radiação incidente e espalhada pela amostra, no caso de amostra intensamente colorida; além disso, a dispersão recíproca reportada no artigo da literatura era muito baixa (160 Å/mm) e devido a todos esses fatores os autores observaram apenas três bandas Raman para o azobenzeno. Stammreich usou uma lâmpada de He (linha amarela em 578,6 nm) e investigou o azobenzeno como uma solução de concentração 2,5% (volume) em CCl4; usando tempo de exposição de 20 minutos, ele e sua equipe registraram 12 bandas Raman, duas das quais haviam sido observadas no trabalho anteriormente publicado. É importante destacar que havia dois problemas cruciais no desenvolvimento de lâmpadas de hélio para uso rotineiro em espectroscopia Raman: a pureza do gás usado e a estabilidade da lâmpada uma vez que a pressão do gás diminuía com o tempo de uso. O primeiro ponto decorre do fato de neônio ser um contaminante usual mesmo no hélio então comercializado como espectroscopicamente puro, que continha de 100 ppm a 0,1% de Ne;40 neônio apresenta diversas linhas no vermelho e infravermelho próximo, sobrepondo-se ao sinal das amostras. Apesar de ser possível purificar o gás comercial, os procedimentos eram trabalhosos e Stammreich optou por obter He naturalmente puro a partir de areia monazítica.44 Esse tipo de areia, encontrada no litoral brasileiro, é rica em monazita, um fosfato mineral que é uma das principais fontes de cério, mas também contém quantidades significativas de tório o qual apresenta decaimento α, fazendo com que a areia se torne também rica em hélio; esse gás pode ser extraído por aquecimento e purificado com procedimentos simples. O segundo ponto que foi determinante para o sucesso alcançado pelas lâmpadas de He desenvolvidas por Stammreich foi abordado empregando na lâmpada um reservatório de gás, o que permitia que mantivesse seu desempenho por algumas centenas de horas.45 Essa questão ganha em relevância quando se considera que as linhas do hélio são substancialmente menos intensas que as do Hg e o espalhamento é desfavorecido em comprimentos de onda maiores, tornando necessários longos tempos de exposição da amostra à radiação excitante. Com as lâmpadas de He, Stammreich usou inicialmente o espectrógrafo Lane-Wells, mas, porque a dispersão dos prismas era pior no vermelho, ele busca alternativas para melhorar a qualidade dos espectros tanto do ponto de vista da intensidade das bandas quanto da resolução espectral. Assim, em 1953 ele emprega para comprimentos de onda mais longos um espectrógrafo produzido pela Zeiss que usa 3 prismas de vidro no arranjo de Förstering46 que, como citado anteriormente, fora adquirido no final da década de 1930 pelo Depto. de Física da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP.47 Até onde se tem conhecimento esse artigo foi o primeiro produzido empregando esse espectrógrafo e, até onde se tem conhecimento, foi também o primeiro espectro Raman obtido com excitação no infravermelho próximo, no qual a linha em 811,5 nm de uma lâmpada de argônio foi utilizada na geração do espectro Raman de bromo líquido. Apesar disso, certamente que prismas não eram a melhor opção nessas condições de excitação e em 1955 Stammreich, Forneris e Sone publicam um artigo sobre o espectro Raman de dicloreto de enxofre e nele, pioneiramente, é empregado um espectrógrafo dotado de redes de difração de transmissão da Bausch & Lomb com brilho (blaze), que apresentava poder de resolução espectral comparável ao do Lane-Wells com lâmpada de Hg.48 Poucos anos depois (1961), Stammreich e Forneris, usando uma rede de difração adequada (2160 linhas/mm com brilho em 600 nm na primeira ordem da rede) e uma lâmpada de He (587,6 nm) obtiveram o espectro Raman de cloro líquido com resolução espectral entre 0,3 cm-1 e 1,5 cm-1 o que permitiu separar as contribuições das espécies isotópicas do cloro (35Cl2, 37Cl2 e 35Cl37Cl).49 Espectros Raman excitados no vermelho e com alta resolução só foram registrados porque no final da década de 1940 já havia redes de difração de alta refletividade e com blaze (brilho) que permitiam concentrar "até 70% ou mesmo 80% da luz entrando no colimador em uma determinada região espectral de uma ordem do espectro".40 Na década de 1950 a sensibilidade dos filmes e placas fotográficos na região cima de 650 nm também foi apreciavelmente melhorada, possibilitando o registro dos espectros Raman com excitação em comprimentos de onda mais longos. Em sua publicação de 1956 na revista Spectrochimica Acta na qual descreve a técnica empregada por ele na obtenção de espectros excitados no vermelho ou no infravermelho próximo, Stammreich chama a atenção para o fato de que havia um número "surpreendentemente grande de moléculas simples cujos espectros vibracionais não eram conhecidos ainda"; tais compostos, por outro lado, "são frequentemente fortemente coloridos, ou mesmo opacos à luz visível, ou fotoquimicamente instáveis ou fluorescentes e, portanto, não indicados para as técnicas convencionais de excitação em espectroscopia Raman".40 Uma inspeção rápida em sua lista de publicações mostra que substâncias com essas características foram amplamente investigadas por Stammreich usando os espectrógrafos altamente luminosos, com alta resolução espectral e excitação em comprimentos de ondas mais longos. Tais publicações empregam espectroscopia Raman na investigação da natureza de ligações químicas e elucidação da estrutura molecular das substâncias. Alguns de seus trabalhos de maior impacto são frequentemente lembrados: os estudos sobre metal-carbonilos, que tiveram a colaboração inestimável de Oswaldo Sala, Yara Tavares, Pawel Krumholz e Kiyoyasu Kawai;49 as investigações sobre halogênios e inter-halogênios realizados juntamente com Roberto Forneris, O. Sala, Y. Tavares e Yoshio Kawano,51 que redundaram em uma colaboração com Willis B. Person, George R. Anderson e James N. Fordemwalt da Universidade de Iowa (EUA) acerca de poli-haletos;52 os estudos sobre halogenetos de enxofre e selênio (com R. Forneris)53 e também de fósforo (com Stephen G. Frankiss, Foil A. Miller e Therezinha T. Sans);54 a determinação da frequência de vibração Hg-Hg e dos comprimentos de ligação em compostos mercúricos, conduzida juntamente com T. Teixeira Sans;55 as investigações sobre a estrutura de cromatos (com Darwin Bassi e O. Sala)56 e de dicromatos (com Sala, Bassi e Hans Sierbert);57 e as análises de ciano complexos de metais, levadas a cabo por O. Sala, Y. Kawano e Richard Spragg.58 Merece ainda destaque o estudo de espectroscopia vibracional do bis(benzeno)cromo realizado juntamente com Wolfgang Lüttke, Heinz P. Fritz e R. Forneris,59 no qual concluiu-se que o cátion dessa espécie tinha simetria D6h. Desses artigos, os mais citados de acordo com a coleção principal do Web of Science são o de caracterização vibracional do íon dicromato,57 o estudo sobre poli-haletos52 e a investigação sobre o espectro Raman e as constantes de força de moléculas quadrado planares do tipo AB4,60 os quais continuam recebendo citações até os dias de hoje. A configuração empregada por Stammreich era tão eficaz, que durante vários anos recebeu amostras dos mais importantes centros de investigação do mundo e, dentre eles, estava o laboratório de Sir Geoffrey Wilkinson (1921-1996), importante químico inorgânico britânico agraciado com o Prêmio Nobel de Química em 1973 por seu trabalho pioneiro na investigação de compostos organometálicos do tipo sanduíche; em 1959 ele obteve excelentes resultados com amostras que enviou a São Paulo61 mas, posteriormente, quando o Imperial College adquiriu um instrumento Raman que usava radiação laser, passou a descrever tal instrumento como "uma máquina de incineração instantânea", porque seus complexos com ligação metal-metal queimavam facilmente quando irradiados.62 Esse fato exemplifica a excelência com que o trabalho experimental de Stammreich e seu grupo era conduzido. A partir da segunda metade da década de 1950 Stammreich participou de diversos congressos na Europa e, naquela ocasião, não havia uma linguagem que pudesse ser universalmente usada pelos pesquisadores. As dificuldades inerentes em termos de comunicação já eram objeto de estudos feitos por especialistas em linguística e pesquisadores e levou à criação da InternationalAuxiliary Language Association em 1924 que tinha por objetivo criar um idioma auxiliar internacional.63 Esse idioma (interlíngua) foi lançado em 1951 e em maio de 1952 Forrest F. Cleveland criou uma revista chamada Spectroscopia Molecular publicada nesse idioma,64 a qual circulou por vários anos. Nessa revista pode ser encontrado um artigo de autoria de Stammreich ("Le spectroscopia Raman a undes longe")65 e cujo conteúdo foi publicado de modo mais detalhado em Spectrochimica Acta, no mesmo ano (1956).40 Aparentemente havia um livro sobre espectroscopia a ser lançado em interlíngua e entre os colaboradores estava Hans Stammreich,64 mas não há indícios de que esse livro tenha sido efetivamente lançado. De qualquer forma, esse episódio demonstra que Stammreich estava convencido da "necessidade de aprimorar a transmissão da informação espectroscópica para além das barreiras do idioma". Sua vida profissional construída em São Paulo é uma prova cabal disso.
CONCLUSÕES Este texto procurou detalhar alguns aspectos pessoais e profissionais da trajetória percorrida por Hans Stammreich desde Berlim até São Paulo em anos de grande turbulência na Europa, com inevitáveis reflexos no Brasil. Do mesmo modo que foi pioneiro no uso de espectrógrafo Raman na América Latina, ele preparava-se para a aquisição do primeiro espectrômetro laser Raman: um Jarrell-Ash 25-300 com um duplo monocromador de Czerny-Turner, lasers de He, Ar ou Kr e fotomultiplicadora. Sua morte prematura não impediu a aquisição do espectrômetro nem desmantelou o laboratório de espectroscopia molecular que criara na década de 1940, consolidado ao longo dos anos por seus seguidores. Hans Stammreich é um exemplo de como o Brasil beneficiou-se da diáspora causada por uma ideologia tóxica que, ao tentar destruir cientistas e intelectuais judeus na Europa, espalhou-os pelo mundo e contribuiu para o desenvolvimento científico e tecnológico, em especial nas Américas.
AGRADECIMENTOS À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo pelo suporte financeiro (16/21070-5) e a Claudia Schüzky do setor de arquivos da Technische Universität Berlin (TU Berlim) pela colaboração na pesquisa histórica.
NOTAS E REFERÊNCIAS 1. Sala, O.; Ciência e Cultura 1969, 21, 785. 2. Schrader, B.; Otto, A.; Bunsenmagazin 2000, 5, 120. 3. Porto, P.A.; Corio, P.; Faria, D.L.A. Em Centenário Simão Mathias: Documentos, Métodos e Identidade da História da Ciência; Alfonso-Goldfarb, A. M.; Goldfarb, J.L.; Ferraz, M. H. M.; S. Waisse, S., orgs.; PUC-SP: São Paulo, 2010, p. 255. 4. Morgan, H.W.; Raman Newsletter 1969, 8, 19. 5. Obituário, Appl. Spectrosc. 1969, 23,286. 6. Obituário, Naturwiss. Rundsch. 1969, 22, 553. 7. USP perde cientista alemão, Estadão, 30 de março de 1969, p. 144. 8. Sala, O.; Bassi, D.; Santos, O.S.; Hase, Y.; Forneris, R.I.M.G.; Temperini, M.I.A.; Kawano, Y.; Espectroscopia Raman Princípios e Aplicações, Fundação Valeparaibana de Ensino: São José dos Campos, 1984. 9. A Quinta Conferência Internacional de Espectroscopia Raman (ICORS) aconteceu em Freiburg, em setembro de 1976 e os organizadores endereçaram à Sra. Charlotte Stammreich uma mensagem de saudação: "Cara Sra. Stammreich! Na ocasião da 5th International Conference on Raman Spectroscopy, os colegas de seu reverenciado marido, reunidos em Freiburg enviam cordiais saudações". Centro de Apoio à Pesquisa em História da Ciência, Depto. de História, FFLCH; Arquivo privado "Prof. Hans Stammreich" (S IV / 3,2,b). 10. Centro de Apoio à Pesquisa em História da Ciência, Depto. de História, FFLCH; Arquivo privado "Prof. Hans Stammreich" (S I). Currículo anterior a 1944. 11. Centro de Apoio à Pesquisa em História da Ciência, Depto. de História, FFLCH; Arquivo privado "Prof. Hans Stammreich" (S I). Currículo posterior a 1944. 12. http://caph.fflch.usp.br/node/5, acessada em Outubro 2019. 13. O Acervo Histórico do IFUSP foi idealizado pela física Amélia Império Hamburger, professora do Instituto que, de 1995 a 2004, coordenou atividades intermitentes do Projeto Memória do IFUSP, voltadas para a organização arquivística, inventário analítico, acondicionamento e divulgação da documentação do Departamento de Física (de 1934 a 1970) e do Arquivo Mario Schenberg, entre outros. De 2011 a 2017 o Projeto foi coordenado pelo Prof. Ernst Wolfgang Hamburger e desde 2017 tem a coordenação do Prof. Ivã Gurgel. 14. Henry W. Morgan, físico do Oak Ridge National Laboratory (EUA), especialista em espectroscopia de absorção no infravermelho. 15. Max Ernest August Bodestein (1871-1942), físico-químico alemão que deu importantes contribuições no campo da cinética química. 16. Alfred Stock (1876-1946), químico inorgânico; foi pioneiro na síntese de boranos e silanos. 17. Informação que consta da solicitação de compensação apresentada por Hans Stammreich à TU Berlim por sua exoneração em 1933. O documento é o único sobre Stammreich que restou após os bombardeios de Berlim em 1945, que destruíram o prédio da Universidade; ele está nos arquivos da TU Berlim. 18. Miethe, A.; Stammreich, H.; Ber. Dt. Chem. Ges, 1926, 59, 359. 19. Soddy, F.; Nature 1924, 114, 249. 20. Francis William Aston, físico e químico britânico; ganhou o prêmio Nobel de Química em 1922 pela identificação de isótopos de elementos não radioativos, empregando espectrometria de massas, e pela regra dos números inteiros, pela qual a massa de todos os elementos incluindo seus isótopos podia ser expressa por meio de números inteiros em relação à massa do isótopo 16 do oxigênio. 21. Aston, F.W.; Nature 1925, 116, 208. 22. Seegert, B.; Zeitschrift für technische Physik 1927, 7, 1927 23. Schwing, H.; Alfred Apfel "Mein liebes Tierchen... in inniger Liebe Dein Alfred" Briefe & Karten an seine tochter Hanna Busoni, Epubli: Berlim, 2014. 24. Scammell, M.; Koestler: The Literary and Political Odyssey of a Twentieth-Century Skeptic, Random House Publishing Group: Nova Iorque, 2009. 25. McManus, J.; Notes Rec. 2014, 68, 311. 26. https://louyehi.wordpress.com/2017/06/22/une-lettre-confidentielle-deinstein-revele-quil-se-mefiait-du-communisme-meme-dans-la-lutte-contre-les-nazis/, acessada em Outubro 2019. 27. Frank, I.M.; Soviet Physics Uspekhi. 1984, 27, 385. 28. Esse episódio é detalhado no artigo do Prof. Riveros neste número especial de Química Nova. 29. O jornal A Batalha, do Rio de Janeiro, em sua edição de 15/9/1940 relata a chegada a Lisboa (no dia anterior) de Camille Chautemps, a bordo do cargueiro português Vilar Formosa, cuja procedente de Casablanca; o jornal A Noite, também do Rio de Janeiro, reporta em 4/11/1940 a chegada de Chautemps àquela cidade, a bordo do navio português Angola no dia anterior. 30. Lei sobre a alteração de nomes e sobrenomes, de 17 de Agosto de 1938 promulgada pelo regime Nazista; https://www.ushmm.org/learn/timeline-of-events/1933-1938/law-on-alteration-of-family-and-personal-names, acessado em Outubro 2019. 31. O Registro de Estrangeiros de Charlotte Stammreich (no. 107.334 emitido no Rio de Janeiro) aponta que ela solicitou a mudança de endereço para São Paulo em 19/5/1941. 32. A Física brasileira durante a Segunda Guerra Mundial (1939 - 1949); http://acervo.if.usp.br/guia2, acessada em Outubro 2019. 33. Centro de Apoio à Pesquisa em História da Ciência, Depto. de História, FFLCH; Arquivo privado "Prof. Hans Stammreich". Relatório de atividades, sem data, provavelmente referente ao período imediatamente anterior à sua contratação. 34. Propaganda da Lane-Wells Co. publicada em Anal. Chem. 1948, 20, 11, 8A. 35. Hansen, G.; J. Opt. Soc. Am. 1948, 38, 759. 36. Stammreich, H.; Forneris, R.; J. Chem. Phys. 1953, 21, 944. 37. Stammreich, H.; Gonçalves, B.; An. Acad. 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