JBCS



10:09, sáb nov 23

Acesso Aberto/TP




Artigo


Complexo estuarino lagunar mundaú-manguaba: caracterização da matéria orgânica natural e interação com íons Hg2+
Mundaú-manguaba lagoon estuary complex: characterization of natural organic matter and interaction with Hg2+

Alinne Diana Pinho WanderleyI; Andre Gustavo Ribeiro MendonçaI; Luciana Camargo de OliveiraII; Isis Martins FigueiredoI; Andrea Pires FernandesI; Luan Tavares BatalhaI; Wander Gustavo BoteroI,*

I. Universidade Federal de Alagoas, 57309-005 Maceió - AL, Brasil
II. Universidade Federal de São Carlos, Campus Sorocaba, 18052-780 Sorocaba - SP, Brasil

Recebido em 05/07/2019
Aceito em 28/11/2019
Publicado na web em 05/03/2020

Endereço para correspondência

*e-mail: wander.botero@arapiraca.ufal.br

RESUMO

The Mundaú-Manguaba lagoon estuary complex is the most important ecosystem in the state of Alagoas, and a source of sustenance for a large number of the state's inhabitants. However, degradation by anthropic sources has been causing impacts on this ecosystem. Understanding the characteristics of the natural organic material of the waters of the mundaú-manguaba lagoon complex is extremely important to understand the interaction dynamics of the contaminants in these lagoons. Thus, the objective of this work was to extract and characterize aquatic humic substances from the Mundau-Manguaba lagoon complex and to evaluate the interaction of this organic material with mercury ions. The profile of the aquatic humic substances of the respective lagoons evidenced the greater influence of aliphatic groups in their structures. The interactions of aquatic humic substances and mercury ions are directly related to the oxygen groups in their structures, corroborated by Principal Component Analysis. Thus, understanding the water and organic matter characteristics present in the Mundaú-Manguaba estuarine lagoon complex is fundamental for establishing strategies, seeking the preservation of this ecosystem and remediation of environmental contamination.

Palavras-chave: mercury; aquatic humic substances; complexation capacity; chemometrics.

INTRODUÇÃO

O complexo estuarino lagunar Mundaú-Manguaba (CELMM) é um dos ambientes mais representativos do litoral alagoano e apresenta um valor socioeconômico significativo para o estado de Alagoas, sendo considerado um dos mais importantes ecossistemas do Brasil.1 Formado pelo rio Mundaú, o qual desagua na laguna de mesmo nome e pelo rio Paraíba do Meio e Sumaúma, os quais deságuam na laguna Manguaba, ocorre a interligação e convergência das lagunas em direção ao oceano atlântico.2

O CELMM possui uma área total de 7844 km² com clima tropical e semiúmido com duas estações bem definidas: seca (setembro a março) e úmida (abril a agosto).3

Assim como muitos estuários, o CELMM, está entre as regiões com maior desenvolvimento produtivo e constitui uma importante fonte de sobrevivência para as populações que vivem em suas margens e deles retiram elevada porcentagem ou a totalidade do seu sustento. Silva e Souza4 estimam que cerca de 260.000 pessoas dependem direta ou indiretamente desse estuário como fonte de sustento e renda.

Porém, apesar da importância que esses ecossistemas desempenham para populações humanas e para várias espécies de organismos que deles dependem, o impacto devido a atividades antrópicas tem sido cada vez mais frequente, acarretando alterações em suas condições ambientais.5

Dentre as principais atividades antrópicas, destaca-se o lançamento de esgotos sanitários, disposição inadequada de resíduos sólidos, assoreamentos, eutrofização, lançamentos de efluentes industriais não tratados, baixa participação e comprometimento social no gerenciamento do complexo, ocupação desorganizada no entorno, práticas agrícolas inadequadas, pescas inadequadas, aporte de fertilizantes e agroquímicos utilizados na agricultura da cana-de-açúcar. Entretanto, são limitadas as ações de biomonitoramento ambiental por parte dos órgãos de fiscalização do Estado de Alagoas, e mesmo aquelas que existem não são realizadas de forma periódica e sistemática.

Estudos vêm relatando elevados teores de metais potencialmente tóxicos no CELMM,6,7 e, nos últimos anos, têm se quantificado teores significativos de íons mercúrio. Íons mercúrio são alvo de diversas pesquisas ambientais devido a sua elevada toxicidade, bioacumulacão e biomagnificação, podendo inclusive causar efeitos no sistema neurológico.8-13

Uma vez no ambiente, o mercúrio pode interagir com a matéria orgânica natural (MON) que poderá influenciar na mobilização, degradação e transporte dessas espécies no ambiente.8,9,14-20

Buscando compreender os mecanismos pelos quais a MON do sistema lagunar Mundaú-Manguaba influencia o transporte e disponibilidade de contaminantes nesse ecossistema, o presente trabalho extraiu e caracterizou substâncias húmicas aquáticas do CELMM e realizou estudos de complexacão com íons Hg2+.

 

PARTE EXPERIMENTAL

Foram utilizados reagentes de grau analítico (suprapur, Merck AG) e as soluções foram preparadas utilizando água desionizada (Milli-Q, Millipore).

 

AMOSTRAGEM

As amostras de águas do complexo lagunar Mundaú-Manguaba foram coletadas em frascos de polietileno previamente descontaminados com solução de ácido nítrico 10% (v/v). Os pontos de coleta das amostras de águas (9 pontos em cada laguna) foram definidos levando em consideração as características e a atividade antrópica dos locais (Figura 1).

 


Figura 1. Pontos de coleta de amostras de água no complexo estuarino lagunar Mundaú-Manguaba, Alagoas

 

Após a coleta, as amostras foram acidificadas até pH 2,0. As 9 amostras simples de cada laguna, foram unificadas em uma amostra composta.

Características físico-químicas das amostras de águas superficiais

As amostras de água superficiais foram caracterizadas físico-quimicamente (pH, cloreto, dureza, carbono orgânico total), conforme metodologias recomendadas pelo Standard Methods for the Examination of Water & Wastewater: Centennial Edition.21

Extração das substâncias húmicas aquáticas (SHA)

Antes de realizar a extração das SHA, as amostras de águas foram filtradas utilizando papel filtro whatman n°42 e acidificadas com solução de ácido clorídrico 6,0 mol L-1 até pH 3,0. A extração das SHA foi realizada de acordo com procedimento mais utilizado pelos pesquisadores associados a International Humic Substances Society com resina macroporosa XAD-8 e eluição com solução de NaOH 0,10 mol L-1 (vazão de 1,2 mL min -1). O valor do pH do extrato húmico extraído foi ajustado para 6,0.22

Caracterização das substâncias húmicas aquáticas

Determinação do carbono orgânico total (COT)

As determinações de COT foram feitas utilizando-se o método de combustão catalítica, sob atmosfera de oxigênio em equipamento Shimadzu TOC-5000 Analyzer com subseqüente detecção por infravermelho.

Espectroscopia molecular na região do UV-Visível

As análises da espectroscopia molecular na região do UV-Visível foram realizadas diluindo 0,10 mL de SHA em 2,90 mL de água desionizada com leitura em absorbância de 465 e 665 nm e 270 e 407 nm utilizando espectrômetro UV - 1650PC SHIMADZU para obtenção das razões E4/E6 e E2/E4, respectivamente.23

Espectroscopia de fluorescência na região do ultravioleta de luz visível

As espectroscopias de fluorescência na região do ultravioleta-visível foram realizadas diluindo-se 1,00 mL de SHA em 1,00 mL de água deionizada. Espectros de varredura sincronizada a um intervalo constante entre excitação e emissão de 55 nm com uma chave de abertura de 10 nm em uma varredura de 300 a 520 nm foram realizados para se obter a razão da intensidades de fluorescência em 470nm e 360 nm (I470/I360), indicativo do grau de humificação de acordo com as metodologia proposta.24

Espectroscopia de ressonância magnética nuclear de 1H, 13C e Espectroscopia ordenada de difusão (DOSY)

A espectroscopia de ressonância magnética nuclear de 1H, 13C e Espectroscopia ordenada de difusão (DOSY) foram realizados utilizando espectrômetro Bruker 400-MHz equipado com sonda PABBI z-GRD de 5 mm e gradiente de campo. Todos os decaimentos livres de indução (FIDs) foram adquiridos a 25 ºC com janela espectral de 6410 Hz 32768 pontos. Os deslocamentos químicos foram referenciados pelo sinal do ácido trimetilsililpropanóico em 0,00 ppm. As amostras de SHA foram liofilizadas e 17,500 mg de SHA em 0,50 mililitros de D2O foram utilizadas para as análises de RMN de 1H, 13C e Dosy.

As espectroscopias ordenadas de difusão (DOSY) foram realizados usando tempo de relaxação de 2 s, tempo de difusão variando de 0,10-0,20 s, duração do pulso de gradiente de 0,6 ms, tempo entre os pulsos de gradiente de 1,8 ms e Te de 5 ms. As amplitudes dos pulsos de gradiente variaram de 0,68 a 9,42 G cm-1. Os espectros foram adquiridos com 16 acumulações e 128 scans.25

As análises de RMN 13C com polarização cruzada (PC) e rotação do ângulo mágico (MAS) com amplitude variável (VA) foram feitos em um espectrômetro Varian (modelo Unity Inova 400). As amostras de SHA foram acondicionadas em um rotor cilíndrico de zircônia, com 5 mm de diâmetro (Doty Supersonic), girando a 6 kHz em um probe Doty Supersonic para provas sólidas. Os espectros de RMN 13C VACP/MAS foram obtidos nas seguintes condições experimentais: frequência de ressonância de 100.05 MHz para 13C, banda espectral para polarização cruzada de 20 kHz, pulso de preparação do próton de 3,8 µs, tempo de contato de 1 ms, tempo de aquisição de 12,8 ms e tempo de espera para relaxação de 500 ms. Os valores de deslocamento químico foram referenciados ao hexametil benzeno (HMB), o qual possui linha bem definida em 17,2 ppm.

Determinação da capacidade de complexação das SHA por íons Hg (II)

Para determinação da capacidade complexante das SHA por íons Hg(II), 250 mL de uma solução 100 mg L-1 de SHA foram submetidas a um sistema de ultra filtração tangencial equipado com uma membrana de celulose de 1 kDa (Millipore).26 Esse sistema faz a especiação do Hg avaliado, separando o Hg(II) livre daquele complexado as substâncias húmicas. Após condicionamento da membrana por 5 min, filtrou-se a primeira alíquota denominada T0 (cerca de 2 mL), correspondente ao tempo zero (sem adição da solução de mercúrio). As alíquotas subsequentes foram obtidas adicionando 0,02; 0,02; 0,02; 0,02; 0,02; 0,1; 0,2; 0,6; 1 e 2 mL de uma solução Hg (II) 500 mg L-1 sendo filtradas após 30 min de contato entre cada adição.

Os íons mercúrio foram determinados por espectrometria de fluorescência atômica com geração de hidreto com limite de detecção (LD) = 0,0069 ug L-1 e limite de quantificação (LQ) = 0,0230 ug L-1.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Características físico-químicas das águas superficiais do complexo lagunar Mundaú-Manguaba

A determinação dos parâmetros pH, dureza, cloretos e teor de carbono orgânico total (Tabela 1) permitiu evidenciar diferenças entre as características físico-químicas das Lagunas que formam o complexo Lagunar Mundaú-Manguaba.

 

 

A determinação do pH em águas naturais é importante por influenciar na composição de espécies químicas, disponibilidade de nutrientes e toxicidade de elementos potencialmente tóxicos.27 De acordo com a resolução do CONAMA/357,28 o intervalo de pH satisfatório para águas salobras classes I e II estão compreendidos entre 6,50 - 8,50. Assim, os valores de pH determinados nas amostras de águas das duas lagunas (Tabela 1) estão de acordo com o previsto pela legislação e corroboram os valores encontrados por Lima,29 que obtiveram uma variação de 7,50 - 8,60 no ano de 2010. Com a comparação dos resultados deste trabalho com a literatura pode se inferir variação sazonal não significativa no parâmetro pH nas Lagunas estudadas, uma vez que os resultados desse trabalho foram obtidos 6 anos após os estudos realizados por Lima et al. e na mesma estação do ano.29

A determinação da dureza total nas amostras estudadas permitiu evidenciar elevadas concentrações de íons Ca2+ e/ou Mg2+ em ambas as Lagunas. Relacionando a classificação das águas naturais entre mole e muito dura, baseado na determinação da dureza expressa em mg L-1 de carbonato de cálcio CaCO3 (< 50 mg L-1 CaCO3; dureza moderada: entre 50 e 150 mg L-1 de CaCO3; dura: entre 150 e 300 mg L-1 de CaCO3 e muito dura com concentração de CaCO3 > 300 mg L-1), ambas as Lagunas são classificadas como muito duras (CaCO3 > 300 mg L-1).28,29

A elevada dureza das lagunas possivelmente está relacionada às quantidades consideráveis de fragmentos de conchas de moluscos em que o principal constituinte é o CaCO3.29 Vale destacar que a Laguna Mundaú apresentou uma dureza total 5,5 vezes maior que a Laguna Manguaba, sendo que isso possivelmente está relacionado com a elevada atividade antrópica e de comercialização dos moluscos mais intensa na laguna Mundaú.

A concentração de íons cloreto apresentou-se aproximadamente 2 vezes superior para a laguna Mundaú, quando comparada com a Laguna Manguaba (Tabela 1). Essa diferença pode estar associada a influência das correntes marítimas, uma vez que a Laguna Mundaú recebe essa influência em um menor espaço de tempo (duas semanas), quando comparado com a laguna Manguaba, provocando uma maior concentração desses íons em suas águas.30 Além da contribuição natural, elevados teores de íons cloreto em águas podem ser indicativo de contribuição antrópica. Botero et al.31 evidenciam a importância da determinação de íons cloreto em águas naturais, sendo comumente utilizado como indicativo de lançamento de esgoto bruto e elevadas concentrações desse ânion são consequências da presença de urina humana lançada diretamente no ambiente aquático. Inclusive, estatísticas mostram que o ser humano em média expele aproximadamente 4 g de cloreto por dia, representando de 90 a 95% dos excretos humanos.32 Assim é comum efluentes domésticos apresentem concentrações de cloreto superiores a 15 mg L-1.33

Além dos íons cloreto, o elevado teor de carbono orgânico total (COT) também pode ser indicativo de contribuições antrópicas, consequentemente um indicador útil do grau de poluição do corpo hídrico.33 Em águas poluídas, o COT é principalmente devido à presença de substâncias tais como fertilizantes, agroquímicos, surfactantes, solventes provenientes de seu uso direto ou de plantas de tratamento de esgoto ineficientes, sendo então componente de diversos efluentes.33,34 A importância ambiental da presença de COT em águas é funcionar como fonte de energia para bactérias e algas, sendo que o teor formado pelos excretos de algas cianofíceas pode, em concentrações elevadas, tornar-se tóxico, além dos problemas estéticos.33

Em águas não poluídas, o COT é devido principalmente a substâncias húmicas aquáticas e à matéria parcialmente degradada (geralmente resistente à degradação microbiana) sendo lignina, ácidos fúlvicos e taninos, os compostos mais abundantes. Embora não sejam bem definidos quimicamente, esses compostos podem ser considerados como polifenóis complexos. Esses materiais naturais mostram uma capacidade de complexação para metais potencialmente tóxicos que podem afetar fortemente a solubilidade dos carbonatos, de modo que as concentrações de metais podem se elevar até níveis tóxicos.34

O COT também foi analisado nas amostras de águas das lagunas e o COT da laguna Mundaú foi de 15,0 mg L-1 e da laguna Manguaba foi de 1,40 mg L-1. Para a laguna Mundaú o valor do COT pode ser comparado com valores encontrados em outros mananciais que reconhecidamente possuem elevada concentração de COT, apresentando um valor bem superior a amostras filtradas de efluentes de lagoas de estabilização tratando efluentes domésticos.14,35,36 Os maiores teores de COT para a Laguna Mundaú pode ser atribuído à elevada ocupação demográfica e a maior atividade antrópica do entorno dessa Laguna. De acordo com a Agência Nacional de Águas, a laguna Mundaú apresenta 27 km2 percorrendo 30 municípios, destacando-se Maceió, Rio Largo, Satuba, Santa Luzia do Norte e Coqueiro Seco. A laguna Manguaba apresenta 42 km2 e percorre 23 municípios sendo os principais: Marechal Deodoro e Pilar. Sendo assim, é possível inferir que a laguna Mundaú, a qual é mais afetada pela urbanização (principalmente pela cidade de Maceió, com população de aproximadamente 900.000 habitantes), possui maior atividade antrópica quando comparada com a laguna Manguaba, a qual apresenta em seu entorno influencia de cidades de menor porte, como Marechal Deodoro e Pilar, com aproximadamente 45.000 e 32.000 habitantes respectivamente.

Os resultados apresentados neste trabalho, devido à dinâmica das águas da laguna e por ser estuarina, reflete as características dessas águas no momento da coleta. Entretanto, são fundamentais para o entendimento do que está ocorrendo na laguna, pela possível ação antrópica. Ressaltamos a necessidade de políticas públicas que analisem de forma sistemática esses dados e que forneçam um biomonitoramento ambiental desses ambientes tão importantes para o estado de Alagoas.

Caracterização de SHA

A caracterização das SHA estudadas é de fundamental importância para compreensão do seu comportamento ambiental. As mais variadas técnicas são utilizadas para caracterização estrutural do material húmico, uma vez que sua formação depende de vários fatores como: condições climáticas, tipo de solo, tipo de vegetação possuindo assim estrutura complexa e indefinida.31,35

Nesse trabalho foram avaliadas as razões E4/E6; E2/E4; IF470/IF360; RMN 1H; RMN 13C e DOSY (Tabela 2) que permitem fornecer um indicativo do grau de humificação das substâncias húmicas aquáticas estudadas.

 

 

O grau de humificação das SHA está relacionado com o estado de decomposição da matéria orgânica, o qual ocorre principalmente pela ação de enzimas especificas e, de acordo com Rocha et al.,37 esse grau está associado à estabilidade e complexidade das moléculas das SHA.

A razão E4/E6 apresenta uma relação inversa com o grau de condensação de anéis aromáticos e com o grau de humificação das SHA.38,39 Neste contexto, considerando os valores obtidos da razão E4/E6 (Tabela 2), as SHA da Laguna Mundaú apresentaram menor grau de humificação dos que as da laguna Manguaba.

A I470/I360 é diretamente proporcional ao grau de humificação das SHA,24 e os resultados obtidos (Tabela 2) indicam novamente maior grau de humificação para as amostras de SHA da laguna Manguaba.

A razão E2/E4 é diretamente proporcional à contribuição de plantas terrestres com elevados teores de estruturas lignínicas na formação das SHA.40,41 Os maiores resultados dessa razão para as SHA extraídas da laguna Manguaba (Tabela 2) inferem um maior aporte de plantas terrestres para essa laguna, corroborando os resultados obtidos para a razão E4/E6 e I470/I360, uma vez que estruturas de lignina estão presentes em maior quantidade em matéria orgânica mais humificada.

Além das técnicas espectroscópicas, as técnicas de RMN 13C e 1H (Tabela 2) são comumente utilizadas para estimar os teores relativos de hidrogênios aromáticos e alifáticos nas SHA e indicativo do teor de grupos funcionais presentes em sua estrutura. Para ambas as amostras de SHA, observa-se uma maior contribuição de hidrogênios de estruturas alifáticas, indicando assim, maior concentração de ácidos fúlvicos do que ácidos húmicos na composição geral destas SHA.

Os resultados das integrações dos sinais dos espectros de RMN 1H e 13C (Tabela 2) indicam que as SHA da laguna Manguaba apresentam mais estruturas aromáticas em relação às amostras das SHA da laguna Mundaú, conferindo maior grau de humificação para essas amostras e corroborando os resultados das razões E4/E6; E2/E4 e I470/I360.

A técnica DOSY-RMN é frequentemente utilizada na caracterização de SH, fornecendo os valores de coeficientes de difusão (D), os quais são inversamente proporcionais ao nível de agregação médio dos diferentes grupos funcionais.25 O coeficiente de difusão de (8,49 - 5,99) m2 s-1 10-10 está associado aos grupos aromáticos, de (5,49 - 4,99) m2 s-1 10-10 cadeia lateral de amina, de (4,06 - 3,01) m2 s-1 10-10 aos açucares e de (2,91 - 0,31) m2 s-1 10-10 aos grupos alifáticos.25 De acordo com os resultados mostrados na Tabela 2, fica evidente que as SHA da laguna Manguaba apresentam níveis de agregação maiores, pois os valores para os coeficientes de difusão dessa amostra são maiores em comparação às amostras da laguna Mundaú.

De acordo com Peuravouri et al.,42 a intensidade de fluorescência é inversamente proporcional ao tamanho dos agregados orgânicos. Os resultados da Tabela 2 mostram maiores coeficientes de difusão das moléculas alifáticas e aromáticas para as SHA da laguna Mundaú, resultando em menores níveis de agregação, corroborando os resultados de espectroscopia de fluorescência na região ultravioleta visível, no qual as SHA da laguna Mundaú mostraram maior intensidade de fluorescência.

Com relação aos resultados obtidos da caracterização estrutural das SHA (Tabela 2) é possível inferir que a laguna Manguaba apresenta maior grau de humificação e aromaticidade. Oliveira e Kjerfve3 afirmam que a laguna Mundaú é mais influenciada pelas correntes da maré e por isso o tempo de renovação das águas é menor (cerca de 2 semanas) em comparação à laguna Manguaba (cerca de 2 meses). Com o tempo de renovação das águas em um período mais longo, espera-se que a matéria orgânica dissolvida nesse ambiente seja mais decomposta, pois um ciclo de águas mais lento favorece a ação dos microrganismos, os quais agirão de forma mais efetiva. Além disso, o maior aporte de efluentes domésticos na laguna Mundaú, evidenciado pela caracterização físico-química das águas, confere a formação de uma matéria orgânica mais recente e menos refratária do que as extraídas na laguna Manguaba.

Capacidade de complexação das SHA por íons mercúrio

A capacidade de complexação (CC) das SHA reflete a máxima afinidade entre esses ligantes naturais com espécies metálicas. As CC determinadas para as SHA da laguna Mundaú foi de 0,525 mmol Hg g-1 SHA enquanto que da laguna Manguaba foi de 0,349 mmol Hg g-1 SHA. Esses resultados evidenciam a elevada afinidade da matéria orgânica presente na laguna Manguaba com íons Hg(II). Estudos semelhantes realizados com SHA do Rio Negro, AM, relatam valores de CC para íons Hg(II) em torno de 0,90 mmol Hg g-1 SHA.18

A interação da MON com contaminantes é dependente das características dessa matéria orgânica e principalmente da afinidade com os contaminantes.18,43,44 Diversos autores têm demonstrado afinidades diferentes das SH extraídas de solos e águas por diferentes contaminantes, sendo essa afinidade dependente, principalmente, dos grupos funcionais presentes na estrutura da MON. Para compreender quais características estruturais das SHA mais influenciam a capacidade complexante, técnicas estatísticas exploratórias têm sido utilizadas, correlacionando variáveis e auxiliando na interpretação dos resultados.18,23,44

Análise de componentes principais (ACP) tem como objetivo reduzir o número de dimensões do conjunto de dados sem a perda das informações relevantes, facilitando assim, a interpretação dos dados. O ACP propicia a identificação da existência de padrões de similaridade existentes em um conjunto de dados.45,46

A distribuição dos dados na ACP (Figura 2) é explicada por 90,2% da variância total dos dados, que é a soma dos dois componentes principais (CP1 70,4% e CP2 19,8%), em que se observa a formacão de dois grupos. Os resultados da Figura 2 mostram similaridade entre a capacidade complexante e os grupos oxigenados presente na estrutura da SHA. Assim, pode-se inferir que as SHA extraídas da lagoa Mundaú apresentaram maior capacidade de complexação por íons Hg(II) devido a maior presença de grupos oxigenados em sua estrutura.

 


Figura 2. Análise de componentes principais das características estruturais (H alifáticos, H açucares, H cadeia lateral, H aromáticos, H alifáticos, C alifáticos, C alifáticos oxigenados, C amidas e ésteres, C aldeidos e cetonas, D 8-5 ppm, D 5-4ppm, D 4-3ppm, D 3-0ppm e CC Hg) das substâncias húmicas aquáticas extraídas do complexo estuarino lagunar Mundaú-Manguaba, Alagoas

 

Na literatura, alguns autores têm relacionado o maior grau de humificação com a maior capacidade de complexar espécies metálicas.47 Oliveira e colaboradores18 evidenciaram forte correlação entre grupos carboxílicos e a capacidade de complexação das SH por íons mercúrio de amostras de solos da amazônia. O nivel de agregação, determinados por Dosy, não influênciou diretamente a CC das SHA por íons Hg, corroborando os dados de Oliveira et al.,18 em que a maior influência para a complexacão por íons metálicos se dá em função dos grupos funcionais presentes em sua estrutura e não pelo nível de agregação das SH avaliadas.

 

CONCLUSÕES

O complexo estuarino lagunar Mundaú-Manguaba é considerado um importante ecossistema para o estado de Alagoas, mas vem sofrendo degradação principalmente por atividades antrópicas e as caracterizações de suas águas evidenciou maior influência dessas atividades para a laguna Mundaú.

Por apresentarem um papel importante na especiação, destino, transporte e biodisponibilidade do contaminantes em ambientes aquáticos, as substâncias húmicas aquáticas foram caracterizadas, o que permitiu traçar o perfil das substâncias húmicas aquáticas neste complexo lagunar, as quais evidenciaram que a laguna Mundaú apresentou menor influência de matéria orgânica terrestre e menor grau de humificação.

As substâncias húmicas aquáticas da laguna Manguaba apresentam maior nível de agregação, o que pode ser relacionado com seu maior grau de humificação, e com o tempo de renovação das águas nos complexos lagunares.

Em relação aos resultados das interações com íons Hg(II), as substâncias húmicas da laguna Mundaú apresentaram maior capacidade de complexação e inferiu-se que essa maior afinidade está associada aos grupos oxigenados das estruturas, sendo corroborado pela Análise por Componentes Principais, a qual mostrou correlação direta entre os grupos funcionais oxigenados presentes nas SHA avaliadas e as capacidades de complexação por íons Hg(II).

A caracterização de amostras em estudo merece atenção pela elevada relevância no entendimento dos processos e fenômenos observados e pelas correlações que podem ser estabelecidas com os resultados obtidos nas diversas análises. Nesse contexto, substâncias húmicas que possuem elevados teores de grupos oxigenados nas suas estruturas podem auxiliar significativamente na retenção de íons mercúrio no meio, minimizando sua disponibilidade e impactos ambientais. Compreender as características das águas e da matéria orgânica presente no complexo estuarino lagunar Mundaú-Manguaba é fundamental para estabelecer estratégias, buscando a preservação desse ecossistema e remediação da contaminação ambiental.

 

AGRADECIMENTOS

À Prof Anita J. Marsaioli (IQ/UNICAMP) pela aquisição dos espectros de RMN de 13C. FAPEAL

 

REFERENCIAS

1. MMA - Ministério do Meio Ambiente; Plano de Ação e Gestão Integrado do Complexo Estuarino Lagunar Mundaú Manguaba (CLMM), 2005.

2. Salles, V.; Guia do Meio Ambiente - Litoral de Alagoas, 2a ed., IMA: Maceió, 1995.

3. Oliveira, A. M.; Kjerfve, B.; Estuarine, Coastal Shelf Sci. 1993, 37, 575.

4. Silva, D. F.; Sousa, F. A. S.; Eng. Ambiental. 2008, 3, 157.

5. Santos, O. S.; Santos, J. C. C.; Silva, A. P. B.; Oliveira, L. C.; Carmo, J. B.; Botero, W. G.; Int. J. Environ. Sci. Technol. 2017, 3, 1.

6. Jacundino, J. S.; Santos, O. S.; Santos, J. C. C.; Botero, W. G.; Goveia, D.; Carmo, J. B.; Oliveira, L. C.; J. Environ. Chem. Eng. 2015, 3, 708.

7. Santos, O. S.; Santos, J. C. C.; Silva, A. P. B.; Oliveira, L. C.; Carmo, J. B.; Botero, W. G.; Int. J. Environ. Sci. Technol. 2018, 15, 1991.

8. Ravichandran, M.; Chemosphere 2004, 55, 319.

9. Slowey, A. J.; Geochim. Cosmochim. Acta. 2010, 74, 4693.

10. Zhang, S.; Luo, H.; Zhang, Y.; Li, X.; Liu, J.; Xu, Q.; Wang, Z.; Microchem. J. 2016, 126, 25.

11. Zhuang, W.; Gao, X.; Marine Pollut. Bull. 2015, 99, 320.

12. Lino, A. S.; Kasper, D.; Guida, Y. S; Thomaz, J. R.; Malm, O.; J. Trace Elem. Med. Biol. 2018, 48, 196.

13. Kasper, D.; Forsberg, B. R.; Kehrig, H.; Amaral, J. H. F.; Bastos, W. R.; Malm, O. Em Igapó (Black-water flooded forests) of the Amazon Basin; Myster, R., eds.; Springer: Cham, 2018, cap. 3.

14. Oliveira, L. C.; Serudo, R. L.; Botero, W. G.; Mendonça, A. G. R; Santos, A.; Rocha, J. C.; Carvalho Neto, F. S.; Quim. Nova 2007, 30, 274.

15. Oliveira, L. C.; Sargentini Jr, É.; Rosa, A. H.; Rocha, J. C.; Simões, M. L.; Martin-Neto, L.; Silva, W. T. L.; Serudo, R. L.; J. Braz. Chem. Soc. 2007, 18, 860.

16. Gu, B.; Bian, Y.; Miller, C. L.; Dong, W.; Jiang, X.; Liang, L.; Proc. Nat. Acad. Sci. U. S. A. 2011, 108, 1479.

17. Oliveira, L. C.; Botero, W. G.; Rocha, J. C.; Santos, A.; Silva, H. C.; Cordovil, M. C. O.; Quim. Nova 2011, 34, 1303.

18. Oliveira, L. C.; Botero, W. G.; Santos, F. A.; Sargentini Jr., É.; Rocha, J. C.; Santos, A.; J. Braz. Chem. Soc. 2012, 23, 1711.

19. Jiskra, M.; Wiederhold, J. G.; kyllberg, U.; Kronberg, R.; Kretzschmar, R.; Environ. Sci.: Processes Impacts 2017, 19, 1235.

20. Oliveira, J. L.; Boroski, M.; Azevedo, J. C. R.; Nozaki, J.; Acta Hydrochim. Hydrobiol. 2006, 34, 608.

21. Eaton, A. D.; Standard Methods for the Examination of Water & Wastewater, 21st ed., Centennial Edition, 2005.

22. http://humic-substances.org/isolation-of-ihss-samples/, acessada em Fevereiro 2020.

23. Rocha, J. C.; Rosa, A. H.; Substâncias húmicas aquáticas: interações com espécies metálicas, Editora UNESP: São Paulo, 2003.

24. Kalbitz, K.; Geyer, W.; Geyer, S.; Biogeochemistry 1999, 47, 219.

25. Simpson, A. J.; Kingery, W. L.; Spraul, M.; Humpfer, E.; Dvortsak, P.; Kerssebaum, R.; Environ. Sci. Technol. 2001, 35, 22.

26. Burba, P.; Van Den Bergh, J.; Klockow, D.; Fresenius J. Anal. Chem. 2001, 371, 660.

27. Moura, E. M.; Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Pará, Brasil, 2007.

28. http://www.mma.gov.br/port/conama/res/res05/res35705.pdf, acessada Fevereiro 2020.

29. Lima, E. D. S.; Tese de Doutorado, Universidade Federal de Alagoas, Brasil, 2012.

30. ANA: Agência Nacional as Águas; Plano de ações e gestão integrada do complexo estuarino lagunar Mundaú-Manguaba, CELMM: resumo executivo, 124 p., 2006.

31. Botero, W. G.; Souza, S. O.; Santos, O. S.; Oliveira, L. C.; Amarante, C. B.; Quim. Nova 2014, 37, 943.

32. Who, S; The impact of cemeteries on the environment and public health: an indroductory briefing, Word Health Organization: Copenhagen,1998.

33. https://cetesb.sp.gov.br, acessada Fevereiro 2020.

34. Visco, G.; Nobili, V.; Campanella, L.; Microchem. J. 2005, 79, 185.

35. Goveia, D.; Rocha, J. C.; Oliveira, L. C.; Morais, L. C.; Campos, V.; Fraceto, L. F.; Rosa, A. H.; Quim. Nova 2011, 34, 753.

36. Duarte, A. S.; Airoldi, R. P. S.; Folegatti, M. V.; Botrel, T. A.; Soares, T. M.; Rev. Bras. Eng. Agríc. Ambient. 2008, 12, 10.

37. Rocha, J. C.; Sargentini, E. Jr.; Zara, L. F.; Rosa, A. H.; Santos, A.; Burba, P.; Talanta 2000, 53, 551.

38. Stevenson, F. J.; Humus chemistry, 2nd ed., Wiley & Sons: New York, 1994.

39. Macdonald, S.; Bishop, A. G.; Prenzler, P. D.; Robards, K.; Anal. Chim. Acta 2004, 527, 105.

40. Backes, M. A.; Kampt, A. N.; Pesq. Agropec. Bras. 1999, 26, 753.

41. Budziak, C. R.; Mangrich, A. S.; Quim. Nova 2004, 27, 339.

42. Peuravuori, J.; Koivikko, R.; Phlaja, K.; Water Res. 2002, 36, 4552.

43. Rosa, L. M. T.; Botero, W. G.; Santos, J. C. C.; Cacuro, T. A.; Waldman, W. R.; Carmo, J. B.; Oliveira, L. C.; J. Environ. Manage. 2018, 215, 91.

44. Botero, W. G.; Oliveira, L. C.; Rocha. J. C.; Rosa, A. H.; Santos, A.; J. Hazard. Mater. 2010, 177, 30.

45. Rosa, A. H.; Simoes, M. L.; Oliveira, L. C.; Rocha, J. C.; Martin-Neto, L.; Milori, D. M. B. P.; Geoderma 2005, 127, 1.

46. Santos, A. C.; Romão, L. P. C.; Oliveira, V. L. O.; Santos, M. C.; Garcia, C. B.; Pescara, I. C.; Zara, L. F.; J. Braz. Chem. Soc. 2011, 22, 98.

47. Serudo, R. L.; Oliveira, L. C.; Rocha, J. C.; Paterlini, W. C.; Rosa, A. H.; Silva, H. C.; Botero, W. G.; Geoderma 2007, 138, 229.

On-line version ISSN 1678-7064 Printed version ISSN 0100-4042
Qu�mica Nova
Publica��es da Sociedade Brasileira de Qu�mica
Caixa Postal: 26037 05513-970 S�o Paulo - SP
Tel/Fax: +55.11.3032.2299/+55.11.3814.3602
Free access

GN1