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A ética química e seu ensino a estudantes de química Chemical ethics and its teaching to chemistry students |
Evandro F. RozentalskiI,*; Paulo A. PortoII
I. Instituto de Física e Química, Universidade Federal de Itajubá, 37500-903 Itajubá - MG, Brasil Recebido em 12/02/2021 *e-mail: e.rozentalski@unifei.edu.br This paper aims at broadening the understanding of scientific ethics by addressing chemical ethics, which deals with the benefits, risks and uncertainties associated with or arising from chemical activities. Chemical ethics is a theme of the Philosophy of Chemistry and its discussion has been recommended in Chemical Education. The purpose of its teaching is to recognize and analyze ethical problems, as well as to evaluate the possible paths that can be followed to make better decisions. In this paper, the implementation of a didactic intervention based on a historical case and on a hypothetical case in an undergraduate course is described. The aim of the intervention was to promote the development of ethical reasoning, instead of prescribing a specific ethical path, solution, or behavior. The historical case allowed students to understand the risks and uncertainties associated with the use of chemical substances. The hypothetical case made it possible to make ethical decisions by dealing with a problem situation, in which the characters' possible decisions and their consequences were analyzed. Results show that the different approaches enable complementary understandings, which favor the development of students' ethical reasoning. INTRODUÇÃO A proliferação de casos de má conduta científica nos últimos anos, em particular o plágio, a falsificação e a fabricação de resultados, resultou em uma série de iniciativas com vistas a combater tais práticas: manuais (vide o Código de boas práticas científicas criado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo em 2011); congressos (como o Brazilian Meeting on Research Integrity, Science and Publication Ethics, realizado no Brasil desde 2010); revistas (a Revista FAPESP criou uma seção regular intitulada Boas Práticas), seminários, entre outras ações.1,2 Essas iniciativas, embora pertinentes e necessárias, possuem alcance limitado, por abordarem a ética na Ciência em termos restritos. A discussão pautada apenas no combate ao plágio, falsificação e fabricação de resultados não promove o reconhecimento e a reflexão sobre os valores que fundamentam as buscas intelectuais dos cientistas, nem sobre os problemas éticos subjacentes a sua atividade, que se iniciam na produção e se estendem até a aplicação do conhecimento científico e tecnológico. Tampouco discutem as consequências que as diferentes decisões éticas não relacionadas às condutas inadequadas citadas acima têm para o pesquisador em formação, para outros cientistas e para a sociedade. Por consequência, a ausência de discussões explícitas sobre esses assuntos pode levar a decisões éticas pobres ou, pior do que isso, à adoção de comportamentos de má conduta científica.2-4 Se, por um lado, a ética científica tem sido contemplada em alguma medida, ainda que de maneira restrita, por outro, a discussão de problemas éticos próprios de cada disciplina ainda se encontra incipiente, em especial na área de Química.5,6 Ao longo do século XX, os debates acerca dos problemas éticos da Química foram negligenciados ou subestimados por químicos e filósofos. Isso contrasta com a constatação de que uma série de consequências negativas decorreram da atividade química (uso de armas químicas, poluição, danos ambientais, etc.), as quais resultaram na imagem ruim da Química junto ao grande público.7 Em vista disso, o presente trabalho tem por objetivo avaliar a implementação de uma proposta didática centrada em promover discussões sobre a ética química em um curso de formação de professores de Química. O estímulo em levar discussões sobre a ética química para a sala de aula surgiu pela inexistência de iniciativas semelhantes no contexto brasileiro e, também, como forma de avaliar as potencialidades, limites e dificuldades de se promover tais discussões no Ensino de Química. Somou-se a isso a necessidade de formar professores de Química críticos e reflexivos sobre questões éticas relacionadas à Química. A partir desses motivos, a questão de pesquisa que se pretende responder é: Como promover discussões sobre a ética química na formação de futuros professores de Química? Como parte da busca por respostas, na próxima seção serão abordadas as compreensões sobre ética geral, ética científica e ética química que fundamentam esta investigação.
DA ÉTICA GERAL À ÉTICA QUÍMICA Comumente, no discurso cotidiano, a palavra ética é empregada como sinônimo de moral, e sua intenção é destacar os padrões de conduta ou normas sociais seguidas pelas pessoas que vivem em uma sociedade.3 Nesse âmbito, ser ético ou ter moral pode ter o intuito de indicar pessoas que possuem comportamentos e tomam decisões em prol do bem comum e, por consequência, são exemplos de condutas a serem seguidas por outras pessoas, a fim de melhorar a convivência entre elas. Ainda que, no discurso coloquial, moral e ética possam ser empregadas como sinônimos, no âmbito da Filosofia se procura distingui-las. A moralidade envolve um padrão universal mínimo a respeito do que é certo e errado.8 Por exemplo, evitar causar danos ou fazer mal a alguém, não mentir e contar a verdade, etc. A ética, por sua vez, busca ir além desse padrão mínimo, no sentido de prescrever o que é bom moralmente. Por conta disso, a ética é um padrão de escolhas e decisões consciente e deliberado, que um ser humano empreende em sua relação com outras pessoas.9 Distingue-se da moral por sua natureza reflexiva, ao buscar compreender e promover a consciência dos fundamentos, valores e consequências das decisões para com o outro.8 Por exemplo, podemos seguir regras morais como "não minta" ou "conte a verdade", sem que isso seja acompanhado dos motivos para agir de tal modo. No dominío da ética, o que fundamenta essa postura é problematizado, bem como as possibilidades de ação e suas consequências. Não há, porém, um modelo único para resolver problemas éticos. Existem diferentes teorias éticas na Filosofia com o objetivo de fornecer explicações e guias para o comportamento. A teoria deontológica estabelece princípios e regras de conduta que devem ser seguidos independentemente das consequências. Nessa teoria, a melhor ação ou decisão baseia-se no dever, sem considerar os fins envolvidos. Por sua vez, a teoria teleológica (ou consequencialista) considera as consequências das ações e decisões, e não o motivo de seus autores. Nessa teoria, a melhor ação será aquela que proporcionar as melhores consequências para as pessoas afetadas por ela.3 Em uma situação real, apenas uma dessas teorias não abrangeria todas as sutilezas e complexidades de uma decisão ética, mas o que se pretende aqui é apenas ilustrar, em termos amplos, possíveis modos de avaliar decisões éticas. A partir disso, questões éticas surgem também na Ciência e na sua relação com a sociedade. Isso se deve ao fato de que toda profissão envolve um contrato social que rege tanto as interações entre os profissionais quanto as interações destes com a sociedade, podendo ser um contrato tácito ou formalmente firmado. Essas interações são regidas por um código formal de ética, isso é, um conjunto de regras específicas de condutas permitidas ou recomendadas para orientar o trabalho, e que se aplicam a todos os membros da profissão.4,8 Os códigos de ética de uma profissão aparecem, geralmente, em documentos oficiais da comunidade (como os conselhos profissionais), constituindo uma característica central e específica de cada profissão. Os códigos de ética das diferentes profissões não são inconsistentes com a moral e ética gerais; ao contrário, se orientam a partir delas, porém vão além. Pressupõe-se, ou espera-se, que todos os cientistas tenham bem desenvolvida uma ética geral.4 Por outro lado, a ética científica só é desenvolvida na formação e no exercício da Ciência. Os futuros cientistas aprendem, ao longo de sua formação e a partir do exemplo de cientistas mais experientes, regras éticas específicas que governam a prática científica. Aos poucos, os iniciados nas ciências aprendem que: i) resultados científicos devem ser relatados precisamente, não suprimindo dados que vão contra suas hipóteses ou expectativas; ii) a interpretação dos resultados não deve ser influenciada por fatores não-científicos, como, por exemplo, interesses econômicos; iii) o crédito deve ser dado quando for devido, reconhecendo trabalhos e autores que contribuíram para a pesquisa. Essas regras que governam a prática científica são encaradas apenas em termos técnicos pelos cientistas; no entanto, elas envolvem tanto aspectos epistemológicos quanto éticos. Em todas as situações mencionadas, os cientistas se tornam responsáveis por suas ações.4 Tomando-se como exemplo as supracitadas más condutas científicas, plágio (tomar para si ideias de outros como se fossem suas), falsificação (alteração de dados observacionais e experimentais) e fabricação de resultados (apresentar resultados sem amparo em observações ou experimentos), o cientista rompe com o comportamento que dele se espera ao não comunicar a verdade aos seus colegas.10 O rompimento é deliberado e justifica-se por um benefício individual, mesmo que envolva consequências negativas ao social (demais cientistas e sociedade). Indo além da ética entre cientistas, destaca-se que a atividade científica é um empreendimento operacional, isto é, ela opera sobre a Natureza, interferindo em sua evolução (ou curso natural) em diferentes graus.9 A História da Ciência tem mostrado que perturbações na Natureza, ainda que pequenas, podem ter grandes consequências, muitas vezes indesejadas e maléficas. Portanto, a atividade científica deve incorporar a análise dos riscos envolvidos. Não obstante, não é possível eliminar todos os riscos. O cientista pode, e deve, escolher entre as possibilidades disponíveis tendo em vista a análise dos riscos envolvidos, assumindo, então, a responsabilidade da escolha. Por se tratar de uma conduta crítica e consciente, a ética não admite uma escolha sem justificativa, o que demanda razões para a tomada de decisões. Esse panorama amplo sobre a ética na Ciência revela que diferentes aspectos impactam o modo como o conhecimento científico é produzido e aplicado, sendo que estas duas instâncias se encontram intimamente relacionadas. Em diferentes momentos e contextos, os cientistas devem avaliar os possíveis caminhos a serem seguidos, buscando escolher, em cada situação, as opções que trarão menos consequências negativas (ou mesmo nenhuma) para os diferentes agentes envolvidos, como o próprio cientista, a comunidade científica, a sociedade, etc. Essas considerações gerais sobre a Ética na Ciência não devem ignorar a existência de problemas éticos próprios das diferentes disciplinas científicas. Por exemplo, a Física está envolvida nos debates em relação ao uso da energia nuclear; a Biologia tem enfrentado discussões a respeito do uso de organismos geneticamente modificados e da clonagem de humanos.11,12 A Química, por sua vez, também apresenta problemas éticos próprios. Para caracterizá-los, é necessário, em primeiro lugar, uma compreensão epistemológica prévia sobre essa ciência, ou seja, o que ela é, o que estuda, como funciona, quais seus objetivos, valores, etc. Em especial, é a partir de respostas à questão "Qual é a principal atividade dos químicos?" que a seguinte questão pode ser respondida: "Como essa singularidade se reflete sobre as preocupações éticas da Química?".11 A disciplina de Filosofia da Química tem fornecido respostas a tais questões.13 Dentre os diferentes aspectos analisados no sentido de identificar particularidades da Química, a síntese química tem sido defendida como uma das principais atividades dos químicos, ainda que não a única.7,11,14-16 A partir de uma análise cientométrica da produção em Química dos últimos duzentos anos, realizada em diferentes fontes e bancos de dados, Schummer concluiu que a produção de substâncias, orgânicas e inorgânicas, cresceu quase exponencialmente ao longo desse período.16 Poucas centenas de substâncias eram conhecidas no início do século XIX, número que aumentou para cerca de 19 milhões ao final do século XX.16 Em 2017, já havia 127 milhões de substâncias químicas registradas, sendo que, a cada dia, cerca de 15 mil novas substâncias são catalogadas.17 Esses números permitem inferir que uma das principais atividades dos químicos na atualidade, e ao longo da história, é a síntese (produção) de substâncias químicas, em especial, novas substâncias químicas, isto é, substâncias que não existem ou não foram identificadas na Natureza. Isso significa que os químicos criam muitos dos objetos que estudarão. No imaginário popular, e mesmo entre cientistas, a Ciência visa conhecer os "segredos" da Natureza. Contudo, a síntese química não acomoda essa compreensão, pois, ainda que a nova substância seja produzida a partir de substâncias existentes na Natureza, a nova substância em si não é um segredo da Natureza, pois nunca esteve presente nela.8 Não obstante, essa atividade não resulta apenas em um conhecimento ou ideia (por exemplo, uma compreensão a respeito da simetria da substância em nível molecular, ou uma metodologia para obtê-la), mas vai além, pois envolve também a materialização imediata de algo, a nova substância.11 Em vista disso, a síntese e a introdução na Natureza de novas substâncias químicas implicam na mudança do mundo material, ou, no mínimo, na possibilidade de mudança, por meio do conhecimento de como obtê-las. Essa consequência da síntese química engendra problemas éticos próprios para os químicos, pois tais mudanças afetam diretamente as condições materiais da vida, seja proporcionando benefícios ou danos aos seres humanos.7,11 Portanto, pode-se conceber uma ética química, isso é, os problemas éticos associados com ou decorrentes da atividade química. Esse é um dos temas abordados pela Filosofia da Química e, tendo em vista sua importância, sua discussão no Ensino de Química tem sido amplamente defendida por autores que estudam a interface Ensino de Química & Filosofia da Química.18-22 A próxima seção aborda a introdução da ética química no Ensino de Química.
O ENSINO DA ÉTICA QUÍMICA Abordar explicitamente questões de natureza ética justifica-se pela sociedade de risco em que vivemos, caracterizada pelo aumento da complexidade e pelas consequências imprevisíveis da produção e inserção na Natureza de inovações técnico-científicas. Entende-se que não se deve conceber a sociedade e a Natureza como uma dicotomia, mas como inextricavelmente relacionadas em um sistema complexo. Quando, neste artigo, se faz referências, por exemplo, a "consequências para a sociedade e para a Natureza/o ambiente", pretende-se apenas ressaltar que a Ciência/Química pode impactar não apenas seres humanos, mas toda a diversidade de ecossistemas do planeta. Desse modo, os químicos precisam estar cientes de sua corresponsabilidade por todos os possíveis danos causados por suas criações. Eles devem compreender que a produção do conhecimento científico não pode ser separada de suas aplicações, e que esses dois aspectos estão relacionados às responsabilidades éticas dos cientistas. Além disso, cientistas devem reconhecer que o conhecimento científico especializado por si só não fornece base suficiente para julgamentos éticos, sendo necessário mobilizar outros conhecimentos, como a História da Ciência e a Filosofia da Ciência.14,18,19 Assim, o que se pretende com o ensino dessa temática é capacitar os estudantes para reconhecer e analisar problemas éticos, bem como avaliar os possíveis caminhos que podem ser seguidos, a fim de tomar melhores decisões. Deve-se cultivar um hábito contínuo de reflexão ética sobre a atividade científica e química, bem como sobre seus produtos. Isso requer a discussão de riscos e incertezas, bem como competências para avaliar, balancear e estimar benefícios e riscos relacionados à Ciência/Química.18 Com isso, espera-se que os estudantes se tornem aptos a avaliar, justificar e tomar decisões sobre questões científicas e químicas. Em última instância, espera-se desenvolver cidadãos críticos e reflexivos, cujas ações são deliberadas e apropriadas. O ensino da ética química pode ser promovido a partir de um contexto.3,12,23 Os contextos podem ser casos históricos, construídos a partir da Ciência/Química; e casos hipotéticos, isso é, relatos breves inspirados na realidade, com vistas a propor a discussão de um problema ético. Cada um dos tipos de contexto apresenta suas particularidades. Nos casos históricos, o contexto científico e sociocultural dos agentes descritos é diferente daquele do estudante, e se encontra distante temporalmente; os agentes tomaram decisões éticas sob certas circunstâncias, e essas decisões resultaram em consequências (imediatas, de médio ou de longo prazo) para os envolvidos, outros cientistas, sociedade e Natureza - sendo que, hoje, essas consequências são conhecidas. A partir de um ponto de vista analítico, os casos históricos permitem ilustrar ao estudante quando e como questões éticas ocorreram na atividade química, possibilitando, eventualmente, reforçar ou rechaçar certas condutas. Os casos históricos caracterizam-se pela profundidade e extensão, beneficiando-se das pesquisas realizadas por historiadores da ciência, a partir das quais os educadores proporão questões para reflexão e discussão. As considerações a seguir sobre os casos hipotéticos e a forma de abordá-los têm aspectos em comum com a metodologia de ensino por estudos de caso.24,25 Seu emprego é justificado, principalmente, por favorecer a compreensão de conceitos científicos por meio de sua contextualização. Outros objetivos são mencionados para sua adoção, tais como: desenvolver o pensamento crítico; desenvolver a habilidade em resolver problemas; estimular a capacidade de tomar decisões; desenvolver a habilidade de gerenciar o próprio aprendizado; desenvolver a habilidade de trabalho em grupo; e integrar conhecimentos.24 Os caso hipotéticos se distinguem dos casos históricos por serem relatos breves, pontuais e abertos, nos quais se apresenta uma situação hipotética inspirada em problemas da vida real, em que uma pessoa (ou pessoas) enfrenta(m) um dilema ou situação que necessita de uma decisão.3 Eles são curtos (uma página no máximo) e podem ser lidos e discutidos em uma aula ou em uma sequência de aulas, conforme o interesse do professor e dos estudantes. O caso hipotético delimita com precisão o problema ético e estabelece um alvo claro de discussão. Entretanto, podem impossibilitar uma análise ampla, por circunscreverem a situação a poucos elementos (agentes, informações, etc.), não sendo a melhor estratégia para ensinar um conjunto amplo de fatos, princípios e conceitos. Dessa maneira, não apresentam a mesma riqueza de detalhes que os casos históricos e, consequentemente, se não forem adequadamente descritos, podem soar artificiais aos estudantes, resultando em soluções simplistas do tipo certo ou errado. Além disso, outra preocupação se refere aos estudantes exprimirem suas decisões sem considerar as informações disponíveis no caso, não procedendo de maneira crítica e reflexiva a partir do que é conhecido e mesmo do que pode ser deduzido. Ainda que hipotéticos, os casos devem ser concebidos a partir de situações familiares aos estudantes, ou com as quais eles irão se deparar em breve, e devem ser redigidos de modo a favorecer que os estudantes se coloquem no lugar dos agentes. Ao expor um problema ético de maneira rápida aos estudantes, os casos hipotéticos exigem menor tempo de estudo, preparação e apresentação se comparados aos casos históricos. Outra característica é que podem ser formulados de acordo com o propósito formativo, sendo muito mais flexíveis em sua construção do que os casos históricos, isto é, informações podem ser acrescentadas, modificadas ou omitidas dependendo dos objetivos e do público-alvo. Por fim, os casos hipotéticos devem ser acompanhados de algumas questões para orientar a discussão. Essas questões devem estimular o raciocínio ético através de uma reflexão sobre o processo, isto é, devem proporcionar considerações sobre as razões, motivos, informações disponíveis e fundamentos envolvidos em uma decisão ética. Ainda que se vislumbre uma tomada de decisão no problema ético apresentado, o processo (caminho que levou à decisão) é tão ou mais importante que o produto (a decisão propriamente dita). Há que se considerar, ainda, o modo de se conduzir as questões éticas, tanto científicas quanto químicas, em sala de aula. Deve-se levar em conta que as pessoas encaram os problemas éticos de modos distintos, influenciados por seus valores, experiências pessoais, acadêmicas e profissionais particulares. É uma das características dos problemas éticos permitir uma multiplicidade de soluções ou decisões. Tendo isso em vista, promover discussões de problemas éticos com um grupo de estudantes pode ser uma estratégia fecunda, pelo fato de que diferentes raciocínios éticos podem ser apresentados pelos participantes. Para que isso se torne crítico e reflexivo, o professor deve permitir que as discussões sejam abertas, de modo a não criar obstáculos ou vedar as questões que possam surgir e possibilitar a elaboração dos argumentos. Os estudantes, por sua vez, precisam estar cientes de que a tomada de decisões éticas deve ser acompanhada pela argumentação que sustente as razões consideradas em cada decisão.3,23 O objetivo da proposta apresentada neste trabalho é propiciar o desenvolvimento do raciocínio ético crítico e reflexivo, mais do que prescrever um caminho, solução ou comportamento ético específico, ou seja, o que se propõe é um ensino de ética pautado mais no processo do que no produto. Isso não significa, no entanto, que quaisquer decisões éticas sejam adequadas de acordo com a ética química. O que se pretende, em última instância, é que as escolhas dos estudantes e profissionais da química sejam ponderadas e conscientes, avaliando-se os benefícios, danos e malefícios. Por exemplo, a decisão não deve ser tomada em termos unicamente de ganhos individuais, desconsiderando os prejuízos ao coletivo. A decisão tomada deve evitar ou minimizar os resultados ruins não só para o indivíduo, mas, principalmente, considerando a sociedade e a Natureza.
PERCURSO METODOLÓGICO Para avaliar as potencialidades, dificuldades e limitações de uma proposta voltada a promover discussões sobre a ética química, realizou-se uma intervenção didática em uma disciplina semestral de História e Filosofia da Ciência, integrante do curso de Licenciatura em Química, período matutino, de uma Instituição de Ensino Superior (IES) pública localizada no Estado de São Paulo, no ano de 2017. O curso tem duração de 4 anos e visa formar professores de Química para atuarem na Educação Básica. A disciplina História e Filosofia da Ciência (HFC) é obrigatória, não possui pré-requisito e é oferecida na grade curricular aos estudantes do 3º semestre. Os objetivos gerais da disciplina são: apresentar diferentes maneiras possíveis de se abordar a História da Ciência na Educação Básica; e apresentar uma introdução à Filosofia da Ciência que se contraponha a descrições ingênuas da atividade científica. A carga horária total da disciplina equivale a 57 h, distribuídas em aulas com 3 h de duração. Dois encontros, na parte final do semestre, foram dedicados à referida intervenção didática sobre a ética química. Optou-se por promover as discussões após os tópicos de Filosofia da Ciência. A principal referência da disciplina para esse tópico eram os primeiros capítulos do livro O que é ciência afinal?, em especial os que tratam da caracterização e críticas ao indutivismo ingênuo.26 Assim, a intervenção ocorreu após esse tópico por se considerar que as discussões até aquele momento se caracterizavam por serem generalistas, na medida em que não empreendiam reflexões sobre aspectos particulares da Química. Portanto, a ética química figuraria como um tópico da Filosofia da Química, ampliando os aspectos abordados pela Filosofia da Ciência. Um dos autores deste artigo conduziu as atividades em torno da ética química, sendo aqui designado como pesquisador (abreviado como pesq.). O docente responsável pela disciplina (denominado de regente) esteve presente e participou ativamente da intervenção, complementando e apresentando perspectivas diferentes para reflexão coletiva. A intervenção contou com 25 participantes (15 mulheres e 10 homens), com idades variando de 19 até 33 anos, sendo 22 anos a média de idade. Um dos participantes era aluno de Licenciatura em Ciências Biológicas. Três alunas já eram graduadas em outras áreas: Farmácia, Educação Física e Eletrônica; e uma aluna iniciou, mas não concluiu, o curso de Pedagogia. Os demais estudantes estavam cursando sua primeira graduação. A maioria dos estudantes declarou ter tido algum contato anterior com temas referentes à ética, tais como os seguintes: ética e moral; ética na pesquisa e comitês de ética na pesquisa, em especial, nas pesquisas com seres humanos envolvendo testes de medicamentos; ética na contratação de funcionários e no trabalho em empresas; e as normas éticas estabelecidas pelo Conselho Regional de Química (CRQ).27 As aulas sobre ética química foram divididas em três momentos, cujos objetivos são descritos a seguir: Aula I) convidar os estudantes a participarem da pesquisa e apresentar o termo de consentimento livre e esclarecido; promover uma discussão inicial sobre ética, ética profissional, ética científica e ética química; Aula II) discutir os aspectos éticos do caso histórico sobre a produção do tetraetilchumbo e dos clorofluorocarbonetos (CFCs); e Aula III) apresentar e discutir o caso hipotético denominado "Próximo ao limite". A estrutura de cada um dos momentos será discutida em mais detalhes na próxima seção. Destaca-se que a apresentação e discussão dos resultados serão restritos às aulas II e III, referentes aos debates em torno do caso histórico e do caso hipotético. A produção de dados ocorreu pelo registro audiovisual das aulas, a partir do qual se produziu um mapa de episódios para cada aula.28,29 O mapa fornece um panorama geral da aula e a representa tal como se organizou e desenvolveu, contextualizando as ações e os discursos produzidos. Seus elementos constituintes são os episódios, um conjunto de ações realizadas pelos participantes de uma interação com o intuito de produzir significados em uma atividade. Desse modo, o mapa visa segmentar uma aula em uma série temporal de episódios, com início e fim definidos pela atividade realizada. Para isso, assiste-se às aulas e identificam-se os episódios que, em seguida, são organizados de acordo com as categorias que compõem o modelo de mapa de episódios proposto por Silva.29 Após a construção dos mapas, os episódios de interesse foram selecionados de acordo com as questões de pesquisa e seguindo os referenciais teórico-metodológicos, permitindo a produção de um mapa de sequências discursivas.28,29 Uma sequência discursiva possui um tema característico, refinando o tema amplo do episódio em vários temas específicos. Os mapas indicam, ainda, a estrutura de interação realizada ao longo da sequência discursiva, descrevendo as trocas de turnos de fala entre o pesquisador-docente e os participantes da pesquisa. A elaboração dos mapas de sequências discursivas foi feita conforme as categorias de Silva, que orientaram a transcrição das falas de acordo com os interesses desta pesquisa.29 Os nomes de todos os participantes da pesquisa foram substituídos por pseudônimos, com o intuito de garantir o anonimato.
RESULTADOS E DISCUSSÃO Abordagem do caso histórico O caso histórico delineou a produção de duas substâncias químicas, o tetraetilchumbo e os clorofluorocarbonetos (CFCs), tendo como fonte o artigo de Viana e Porto, que foi lido previamente pelos estudantes.30 Essas substâncias foram produzidas sob circunstâncias e com propósitos diferentes na primeira metade do século XX, mas tiveram em comum a participação do engenheiro mecânico estadunidense Thomas Midgley, Jr. Para promover a discussão, questões foram introduzidas nos momentos apropriados da narrativa pelo pesquisador. As questões orientavam os estudantes para os seguintes problemas éticos: o conflito de interesses caracterizado no fato de um parecer favorável ao uso do tetraetilchumbo como aditivo para a gasolina ter sido emitido por um médico contratado pela própria indústria que produzia a substância; os riscos de se introduzir novas substâncias no ambiente, tendo em vista que os CFCs foram considerados ótimos fluidos para a indústria de refrigeração e como propelentes de aerossóis, não se vislumbrando durante décadas que esses compostos representavam riscos para a camada de ozônio; e como proceder em relação à produção e disseminação de substâncias químicas na sociedade e ambiente. O primeiro momento de discussão com os estudantes é apresentado na sequência discursiva mostrada no Quadro 1.
No que diz respeito às compreensões manifestadas pelos estudantes em relação ao parecer que permitiu a liberação do uso do tetraetilchumbo, não houve dúvidas sobre a influência de outros interesses no caso e, ainda, que a emissão do parecer se configurou como um ato premeditado por parte do médico. Os estudantes argumentaram que um parecer desfavorável à empresa poderia inviabilizar o financiamento do médico e da universidade. A posição dos estudantes sugere uma análise simples e direta em relação ao problema ético, em que o viés no parecer do médico é encarado como evidente, e que teria havido uma ação de má-fé desse profissional. Esse ponto de vista pode ser resultante do distanciamento histórico dos eventos relatados, e do conhecimento que temos atualmente sobre eles. O pensamento anacrônico conduz os estudantes a avaliarem o problema ético em termos simples e diretos. Essa postura em relação ao passado foi problematizada com os estudantes da forma mostrada no Quadro 2.
Em linhas gerais, alguns estudantes apontam que é possível analisar o caso histórico desconsiderando tudo o que conhecemos hoje sobre o tetraetilchumbo, em especial, todas as consequências negativas de seu uso. No entanto, a confiança dos estudantes em relação aos interesses não científicos e, em particular, à má-fé no parecer do médico, parece sugerir o contrário. A posição categórica e, talvez, quase determinista, segundo a qual o médico só poderia ter agido daquela maneira, é indício da influência do ponto de vista atual. Ainda que a posição dos estudantes seja legítima e amparada nas informações históricas disponíveis, qualquer posição defendida pelos estudantes em relação a um dado problema ético deve ser acompanhada de contraexemplos e possibilidades diferentes em relação à comunicada por eles. O intuito é o desenvolvimento do raciocínio ético, que envolve a análise de crenças e condutas em situações específicas para compreender a linguagem, conceitos e métodos empregados na resolução de problemas éticos.3 Essa perspectiva não busca ser normativa em relação às condutas que devem ser adotadas pelos estudantes e, portanto, não estabelece padrões éticos a priori aplicáveis a quaisquer contextos, tal como delineado pela teoria teleológica descrita na introdução. Nesse sentido, uma possível estratégia é abalar a suposta obviedade na interpretação do parecer do médico. Na ocasião descrita no Quadro 2, a provocação feita pelo regente fundamentou-se em uma analogia inspirada por uma situação familiar aos estudantes. Em ambos os casos, temos um médico a serviço de alguém, vivendo, contudo, em épocas diferentes. O que vive na contemporaneidade passa despercebido em relação a seus possíveis interesses ao divulgar um dado produto. Por outro lado, o que viveu no passado só poderia ter agido de má-fé. Não se nega que as informações históricas disponíveis em relação ao último contam contra ele, enquanto pouco sabemos do primeiro - sabemos apenas que ele divulga um produto. Apesar disso, a analogia é válida na medida em que põe em xeque a análise simples e direta sobre o médico, comunicada preliminarmente pelos estudantes. Não se pretende, com essa estratégia, minimizar a necessidade da interpretação diacrônica do passado - que é de difícil realização, sobretudo por estudantes não habituados com tal perspectiva. Logo, faz-se necessário o constante esclarecimento sobre os conhecimentos da época considerada, mas o recurso a situações do presente também pode ser pertinente, como exemplificado pela sequência acima referida. A provocação em torno da suposta obviedade de uma situação deve ser acompanhada pela análise de diferentes possibilidades, além daquelas inicialmente pensadas pelos estudantes. Na intervenção, buscou-se identificar como o médico poderia chegar ao parecer em questão agindo de boa-fé. Em ambas as ocasiões, duas compreensões foram compartilhadas pelos estudantes: os resultados obtidos seriam consequência dos métodos e instrumentos de análise utilizados; e alguém com influência direta na pesquisa poderia ter alterado ou omitido elementos da análise para levar o médico a confiar nos resultados obtidos. O exercício de refletir sobre outras possibilidades não implica na necessidade de concordar com elas. O que se pretende é ampliar o entendimento, considerar e analisar cenários diferentes. Em outro momento, indagou-se aos estudantes se houve imprudência por parte dos pesquisadores envolvidos na produção dos CFCs, visto que décadas depois observou-se que eram nocivos à camada de ozônio. Os estudantes apontaram que não houve imprudência por parte dos pesquisadores, pois eles realizaram todos os testes disponíveis e imaginados na época para avaliar os efeitos dos CFCs. Opiniões nesse sentido foram manifestadas em diferentes momentos pelos estudantes, e podem ser exemplificadas pela citação a seguir:
O caso dos CFCs ilustra aos estudantes o risco envolvido na produção das substâncias químicas. Diferentemente do tetraetilchumbo, cuja toxicidade era conhecida, os CFCs foram considerados na época como fluidos refrigerantes ideais, não tóxicos e não inflamáveis. Embora as propriedades dos CFCs tenham sido estudadas, a síntese química de uma nova substância resulta no paradoxo epistemológico do aumento do não-conhecimento.15 Esse paradoxo se refere ao desconhecimento de todas as demais propriedades não determinadas experimentalmente para a substância, em especial sua reatividade frente a todas as demais substâncias existentes na Natureza. No caso dos CFCs, não se cogitou que pudessem reagir com o ozônio estratosférico, não por uma possível má-fé, mas por desconhecimento. As consequências do uso do tetraetilchumbo e dos CFCs parecem ter convencido os estudantes a respeito dos riscos e incertezas inerentes às novas substâncias químicas. Isso pode ser observado pela preocupação manifestada pelos estudantes, e pela defesa da realização de testes contínuos como um meio para evitar ou minimizar possíveis danos desconhecidos decorrentes do uso de novas substâncias. A sequência discursiva mostrada no Quadro 3 exemplifica isso.
Independente de qual estratégia seja adotada para a liberação de novas substâncias, um estudante justificou, referindo-se às consequências das ações humanas sobre o ambiente, que "a gente vai alterar, a gente tem a capacidade para alterar, ainda mais que a gente sempre tá em desenvolvimento, então a gente vai acabar alterando, certo ou errado a gente vai acabar alterando" (LÚCIO). O reconhecimento da mudança do mundo material, causada pela atividade humana - não só científica - expressa por esse estudante, está de acordo com uma das principais compreensões que as aulas de ética química visam compartilhar. Diante disso, casos históricos que relatem os riscos e incertezas associados às substâncias químicas são importantes para sensibilizar os estudantes e provocar uma mudança de postura diante da produção e introdução de inovações por parte dos químicos. Nesse sentido, tais discussões não resultam apenas numa compreensão epistemológica mais elaborada sobre a Química - isso é, no nível das ideias, do pensar, etc. - mas, também, em bases para mudar a forma de agir no exercício da atividade química. Abordagem do caso hipotético Essa aula consistiu na discussão do caso hipotético "Próximo ao limite", elaborado pelos próprios autores (ver Material Suplementar). O caso hipotético apresenta duas partes: a descrição de uma situação relativa à atividade química; e questões para refletir sobre o caso. Na primeira parte, descreve-se uma situação na qual a química Mariana, trabalhando em um laboratório de análises ambientais, enfrenta um problema ético. A química suspeita que a qualidade da água da represa responsável por abastecer a população local está em risco, devido a efluentes da indústria química contratante dos serviços de seu laboratório. Seu superior argumentou que os testes realizados por ela ainda estão abaixo do limite estabelecido por órgãos de fiscalização ambiental e, também, que a realização de mais análises custaria tempo e dinheiro. Mariana terá que decidir o que fazer diante da situação. As questões que acompanham o caso hipotético visam: estimular os estudantes a pensarem em todas as possíveis decisões e ações que Mariana pode tomar, inclusive aquelas com que os estudantes não concordam; analisar as possíveis consequências para todas as ações imaginadas; e, por fim, tomar uma decisão. Os estudantes foram divididos em duplas ou trios, leram o caso hipotético, discutiram entre si cada uma das questões e escreveram suas respostas. Em seguida, cada grupo apresentou suas considerações para toda a sala. Ao longo da aula, o papel do pesquisador-docente foi aprofundar, complementar e apresentar outros pontos de vista em relação aos mencionados pelos estudantes. Inicialmente, as possíveis ações ou decisões foram comunicadas livremente pelos estudantes, incluindo tanto as decisões com que eles concordam quanto as com que não concordam, sem preocupação com a viabilidade de cada opção ou suas consequências. As seguintes ações ou decisões foram comunicadas: 1) não fazer nada; 2) contatar o órgão de fiscalização ambiental; 3) realizar as análises na empresa por conta própria, sem anuência do supervisor; 4) pedir demissão; 5) conversar com o chefe do supervisor; 6) procurar uma empresa concorrente para realizar as análises; 7) contatar a indústria química que seria a responsável pela contaminação da água; 8) conversar novamente com o supervisor; 9) falsificar os resultados; 10) comparar os resultados obtidos com os realizados por outros laboratórios; e 11) divulgar os dados para a mídia. O segundo momento da atividade teve como objetivo a avaliação das consequências de cada uma das opções comunicadas pelos estudantes. Por exemplo, quais as consequências para Mariana, a empresa e a sociedade no caso de ela não fazer nada em relação à situação descrita. Para isso, os participantes se basearam nas informações fornecidas pelo caso hipotético e, também, em seus próprios conhecimentos e experiências. A sequência discursiva mostrada no Quadro 4 retrata a avaliação das consequências da opção 2, contatar o órgão de fiscalização ambiental:
Aqui, o aspecto mais importante não reside em cada consequência específica, mas no conjunto de consequências vislumbradas para todas as possíveis decisões e seus agentes. Isso permite refletir sobre as consequências de uma decisão ética para si, para os outros e para o ambiente, considerando uma diversidade de cenários e possibilidades. Além disso, evidencia a complexidade em torno da tomada de uma decisão ética, ao explicitar a tensão entre ganhos e perdas pessoais versus ganhos e perdas sociais e ambientais - o que fica claro ao observar que, na maior parte das consequências descritas pelos estudantes, a tomada de decisão em prol do ambiente e da sociedade pode custar o emprego de Mariana. Em aula, trabalhou-se inicialmente com a possibilidade da água da represa realmente apresentar riscos para a população, ainda que haja dúvidas quanto a isso de acordo com as informações fornecidas pelo caso hipotético. A partir disso buscou-se delinear as consequências para as diferentes opções. Porém, pode também ser pertinente apresentar cenários diferentes para os estudantes ponderarem as possíveis consequências. Por exemplo, os estudantes foram solicitados a avaliar as consequências no caso da água não apresentar riscos à saúde e ao ambiente após a investigação do órgão ambiental. Em tal situação, os estudantes reconheceram consequências diferentes para as três partes envolvidas, mencionando-se, por exemplo, que Mariana, além de perder o emprego, poderia ser processada por ter feito a denúncia. Ponderar a possibilidade da água não estar contaminada permite aos estudantes vislumbrarem o risco de suas ações resultarem em consequências sérias a si próprios, caso não estejam com a razão. Considerar tais cenários permite aos estudantes reconhecerem todas as dificuldades envolvidas em uma decisão ética. É importante, ainda, esclarecer que decisões éticas são tomadas, comumente, sob circunstâncias não ideais, em que o conhecimento científico-técnico pode entrar em conflito com demandas de outra natureza. Por exemplo, tomando-se como referência o próprio caso hipotético, tais demandas podem ser a insuficiência de recursos financeiros ou o tempo escasso para realizar as investigações, de maneira que as exigências de cunho científico podem não ser alcançadas ou cumpridas. Cada aspecto precisa ser ponderado para embasar a decisão. Além disso, em situações reais, é provável que haja pouco tempo para ponderar, ou que haja pressões de diferentes instâncias para apressar uma decisão - o que, mais uma vez, destaca a dificuldade na tomada de decisões em problemas éticos. Apesar da inegável distância entre o caso hipotético e problemas éticos reais, a plausibilidade da situação descrita foi reconhecida pelos estudantes. Uma das alunas comentou, ao final da discussão, que ela própria viveu uma situação semelhante em seu estágio supervisionado do curso técnico em Química, o que reforça a importância da discussão de problemas éticos na formação de químicos e professores de química:
O caso hipotético mostrou-se frutífero para a discussão de problemas éticos, pois fomentou a reflexão sobre a pluralidade de ações ou decisões passíveis de serem tomadas na situação descrita, bem como a análise de cada uma das consequências. No decorrer da atividade, observou-se tensões entre as diferentes opções comunicadas pelos estudantes, as quais acirraram os ânimos da classe. Apesar da dificuldade de se conduzir a discussão em tais ocasiões, elas engajavam ainda mais os estudantes no problema ético, levando-os a explicar em maiores detalhes seus pontos de vista. Isso indica que a promoção do pensamento divergente em discussões dessa natureza incentiva a participação dos estudantes. Por fim, os grupos de estudantes tomaram as seguintes decisões: 1) contatar o órgão de fiscalização ambiental, mesmo que isso custasse o emprego de Mariana, para que a sociedade e o ambiente fossem protegidos; 2) refazer as análises, com o objetivo da empresa reavaliar seus métodos de análise; e 3) contatar o chefe do supervisor para argumentar em prol de mais análises. Nenhuma das decisões comunicadas em sala de aula pelos estudantes foi considerada como "a" melhor decisão ou avaliada como a "decisão certa", e todas foram levadas em consideração. O pesquisador procurou apresentar diferentes perspectivas e analisar os limites das ideias comunicadas pelos estudantes. Ainda assim, destaca-se que todas as decisões tomadas pelos estudantes prezaram pelo bem-estar da sociedade e do ambiente.
CONCLUSÕES A promoção da ética química na formação de professores de Química ainda encontra-se incipiente. As publicações das últimas décadas baseiam-se, majoritariamente, em análises histórico-filósoficas no âmbito da Filosofia da Química e, em menor grau, em propostas para o Ensino de Química, sem envolver a sua aplicação efetiva em sala de aula.3,7,11,31-34 Por outro lado, reflexões sobre a ética científica no Ensino de Ciências podem ser encontradas em maior grau na literatura, incluindo-se intervenções didáticas em sala de aula.4,9,23,35-37 As diferentes abordagens em torno da ética citadas anteriormente, sejam elas gerais à Ciência ou específicas à Química, têm em comum o reconhecimento de que problemas éticos ocorrem constantemente na atividade científica ou dela decorrem e, portanto, deve-se aprender a abordá-los.8,35,36Assim, com vista a estabelecer uma conexão entre tais abordagens, recomenda-se que o ensino de ética científica contemple a discussão de problemas compartilhados pela ciência em geral e, também, incorpore problemas específicos das diferentes disciplinas. Um trânsito entre abordagem geral (ética científica) e específica (ética química) deve ocorrer para o desenvolvimento de um raciocínio ético amplo e profundo, a fim de garantir decisões bem fundamentadas. Ainda que a ênfase desta proposta tenha repousado sobre a ética química, questões mais amplas, como o conflito de interesse discutido no caso histórico, também foram desenvolvidas com os estudantes. Isso ilustra a riqueza, diversidade e complexidade em torno de discussões éticas na Ciência e na Química. A ética química pode ser articulada e promovida pelo emprego de diferentes abordagens, com especial destaque para as de natureza contextual como a abordagem histórica e a abordagem hipotética3,12,23,31,36 A abordagem histórica possibilita que os estudantes reconheçam os riscos e incertezas inerentes à produção e disseminação de novas substâncias químicas, tendo como evidências situações já conhecidas, o que pode resultar em uma postura de cautela em relação às inovações produzidas pelos químicos. Por outro lado, o distanciamento histórico pode levar os estudantes a abordarem o problema ético de acordo com o que se conhece atualmente sobre o assunto, simplificando a análise. É necessária a leitura prévia do caso histórico, o planejamento da aula com destaque para os eventos cruciais para se compreender o problema ético, e a interação entre o docente e os estudantes ao longo da aula para acrescentar ou corrigir informações históricas, bem como esclarecer as interpretações dos estudantes. Além do caso histórico utilizado por esta investigação, nota-se na literatura uma diversidade de outros casos aptos a promoverem a discussão da ética química no Ensino de Química.6,31,32,38 Cada caso histórico apresenta suas particularidades, sendo importante que as questões destinadas a estimular a discussão problematizem os riscos e incertezas da atividade química, e, também, permitam avaliar, balancear e estimar os benefícios e malefícios relacionados a ela.18,39 A abordagem hipotética, por sua vez, permite que os estudantes se coloquem no lugar dos protagonistas, avaliem o que está em jogo e tomem decisões diante do problema ético.3 Eles têm sido recomendados na literatura por permitirem o engajamento dos estudantes, a aplicação de conhecimentos em contextos autênticos e, assim, possibilitam o desenvolvimento de habilidades para resolver problemas éticos.3,36 Casos hipotéticos são flexíveis, na medida em que seu planejamento permite cobrir uma ampla gama de diferentes problemas éticos. Na intervenção relatada, a fecundidade das discussões foi proporcional ao número de participantes, principalmente pela multiplicidade de posições em sala de aula. A natureza aberta é uma característica das discussões em torno de problemas éticos, em que não há uma única solução possível para eles.3,36 Por conta disso, observou-se que a tensão entre as posições estimula os estudantes a se manifestarem e a detalharem seus pontos de vista. É papel do docente avaliar as ideias comunicadas pelos estudantes, apontando eventuais fraquezas, pontos fortes e limites, bem como estimular e apresentar perspectivas e cenários mais complexos em relação aos comunicados pelos estudantes. Isso é importante para que os estudantes possam criticar e analisar os pontos de vista em jogo, formulem seus próprios argumentos e tomem decisões bem fundamentadas em problemas éticos.3,23,36 Entretanto, a delimitação de um contexto específico inevitavelmente circunscreve as considerações ao âmbito escolhido. Além disso, uma visão panorâmica dos efeitos globais das novas substâncias químicas dificilmente pode ser contemplada por essa abordagem. Para a condução de tais discussões, independente da abordagem em questão, o docente deve instaurar ambientes de ensino-aprendizagem que priorizem o diálogo. Para isso, as ideias dos estudantes, independentemente de sua forma e conteúdo, devem ser consideradas legítimas. É papel do docente colocar em debate os méritos e deficiências dessas ideias, integrá-las à discussão mais ampla e priorizar o pensamento divergente, para o qual posições contrárias devem ser incentivadas. Isso é importante para que os estudantes reconheçam e avaliem posições com as quais eles não concordam, possibilitando o aprendizado de que podem existir múltiplas posições legítimas em um problema ético.36 O protagonismo deve residir nos estudantes, para que desenvolvam seu raciocínio ético. Não se pretende que os estudante trilhem o mesmo caminho do docente, mas que concebam suas compreensões de maneira crítica e reflexiva, justificando seus pontos de vista, reconhecendo as forças e fraquezas dos argumentos comunicados.12,36
MATERIAL SUPLEMENTAR O caso hipotético "Próximo ao limite" utilizado na intervenção didática encontra-se disponível em http://quimicanova.sbq.org.br, na forma de arquivo PDF, com acesso livre.
AGRADECIMENTOS À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pela bolsa de doutorado concedida (processo 1392789) e ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pelo financiamento à pesquisa (processos 426519/2016, 307652/2017-3 e 312351/2020-8).
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