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As mulheres ganhadoras do Nobel de Química (1901 - 2020) The female winners of the Nobel Prize in Chemistry (1901 - 220) |
Camila Silveira*; Clarice D. B. Amaral; Glaucia Pantano; Tatiana R. G. Simões
Departamento de Química, Universidade Federal do Paraná, 81531-990 Curitiba - PR, Brasil Recebido em: 21/09/2021 *e-mail: camilasilveira@ufpr.br This paper contemplates the scientific contributions of the seven winners, from the creation of the Nobel Prize to the year 2020. The laureates are Marie Curie, Irène Joliot-Curie, Dorothy Crowfoot Hodgkin, Ada Yonath, Frances Hamilton Arnold, Emmanuelle Marie Charpentier, and Jennifer Anne Doudna. In 112th editions of the Nobel Prize in Chemistry, there were 186 awards, where only seven winners were women, an amount less than 4% of the total, which makes clear the low female representation. Marie was the pioneer, being the first woman to win, alone, a Nobel Prize in Chemistry. She was the only woman to win two Nobel Prizes, and the only person awarded in two distinct scientific areas: Chemistry and Physics. Only Marie and Dorothy received the award alone, Irène, Ada and Frances shared the award with men, and Emmanuelle and Jennifer became the first pair of women to share a Nobel Prize in Chemistry. There is an evident under-representation of women in the Nobel Prize in Chemistry, but this should not be a reason not to remember and celebrate the trajectory of these brilliant scientists, who must be present in training courses in scientific areas, as well as in Basic Education schools. O PRÊMIO NOBEL E A REPRESENTAÇÃO FEMININA O Prêmio Nobel foi criado em 1901, portanto, em 2021 completam-se 120 anos desde a primeira cerimônia de premiação. Tal prêmio leva o nome em homenagem ao químico sueco Alfred Bernhard Nobel (1833 - 1896) que dedicou grande parte dos seus estudos ao desenvolvimento de explosivos. É considerado o inventor da dinamite, além de outros detonantes. Alfred Nobel deixou registrado em testamento a sua vontade de doar a maior parte de sua fortuna para agraciar, anualmente, pessoas com grandes feitos benéficos à humanidade. A relação de Alfred com a escritora - e ativista pela paz - Bertha von Suttner foram fundamentais na decisão dele em destinar a sua fortuna para este fim. Assim, quatro anos após o falecimento de Alfred, a Fundação Nobel foi criada (1900). Ele faleceu em 10 de dezembro de 1896 e essa data marca o dia das comemorações com laureadas e laureados a cada ano.1 Os prêmios são conferidos nas áreas de Química, Física, Fisiologia ou Medicina, Literatura, Paz, desde 1901, e em Ciências Econômicas, desde 1968.2 Entre 1901 e 2020, os prêmios foram concedidos 603 vezes totalizando 934 laureados e 28 organizações. Na Física são 114 prêmios e 216 pessoas premiadas; na Química, 112 e 186; na Fisiologia e Medicina, 111 e 222, respectivamente. Na Paz, são 101 prêmios para 107 pessoas e mais 28 organizações. O de Ciências Econômicas conta com 52 prêmios para 86 pessoas.3 Em relação à representação feminina, o Prêmio, em todas as suas áreas, conta com poucas mulheres laureadas. Considerando os dados até o ano de 2020, foram 58 premiações outorgadas a mulheres, sendo que Marie Curie foi laureada na Física e na Química, sendo, portanto, 57 distintas ganhadoras. Na Física são quatro ganhadoras ao todo; na Fisiologia ou Medicina, 12. Na Literatura, elas são 16. Na Paz, o que possui o maior número de galardoadas, somam 17. Nas Ciências Econômicas, o que possui o menor número absoluto de ganhadoras, elas são apenas duas. Na Química, foco deste artigo, são sete.2 No gráfico da Figura 1 estão os números de prêmios distribuídos ao longo de todo o período (1901 a 2020), o número total de pessoas laureadas e o número de mulheres laureadas, para cada área da premiação.
Figura 1. Números de prêmios distribuídos ao longo de todo o período de 1901 a 2020
Das 934 pessoas premiadas, as mulheres equivalem a 6,2% do total. Nas Ciências Econômicas, as laureadas representam 2,3% do total de pessoas premiadas. Na Paz, considerando apenas os prêmios atribuídos para pessoas, elas correspondem a 15,9%. Em Literatura, 13,7%; Medicina e Fisiologia, 5,4%; Química, 3,8%; e Física, 1,9%. Os números apontam grandes discrepâncias entre os prêmios para homens e mulheres. A visibilidade feminina na Ciência é fundamental para a ampliação do repertório da população sobre o papel desempenhado pelas cientistas ao longo da história, além de ser um processo que valoriza e reconhece a diversidade como fundamentais para o desenvolvimento da humanidade. O Prêmio Nobel é um recorte interessante de análise sobre as contribuições das laureadas, bem como para a problematização das questões de gênero nesse segmento. Neste manuscrito apresentamos as laureadas em Química para abordar a representatividade feminina no Nobel, evidenciando as suas contribuições científicas.
O NOBEL DE QUÍMICA E AS MULHERES LAUREADAS O Prêmio Nobel de Química foi entregue 112 vezes e soma 185 pessoas agraciadas, sendo que Frederick Sanger recebeu a láurea por duas vezes (186 premiações). A primeira pessoa a ganhar tal honraria foi Jacobus Henricus van 't Hoff (1901) "em reconhecimento aos extraordinários serviços prestados pela descoberta das leis da dinâmica química e da pressão osmótica em soluções".4 Por conta da Primeira Guerra Mundial, no ano de 1916, o prêmio não foi entregue pela primeira vez, o que veio a se repetir no ano de 1917. Em 1918, a premiação retornou, agraciando Fritz Haber "pela síntese da amônia a partir de seus elementos".5 Em 1919 volta a ser um ano sem premiação. Retornando em 1920, com a láurea para Walther Nernst "em reconhecimento a seu trabalho em termoquímica".6 Os períodos seguintes agraciaram Frederick Soddy (1921) "por suas contribuições para o conhecimento da química de substâncias radioativas e suas investigações sobre a origem e natureza dos isótopos",7 Francis William Aston (1922) "por sua descoberta, por meio de seu espectrógrafo de massa, de isótopos, em um grande número de elementos não radioativos, e por sua enunciação da regra do número inteiro"8 e Fritz Pregl (1923) "por sua invenção do método de microanálise de substâncias orgânicas".9 O ano de 1924 fica novamente sem premiação e isso se repete nos anos de 1933, 1940, 1941 e 1942.10 Depois disso, a premiação anual seguiu ininterrupta, até os dias atuais (2020).11 Desde a primeira premiação (1901) até a última, ocorrida em outubro de 2020, ao todo, sete mulheres foram laureadas na Química, o que evidencia a baixíssima representatividade (menos de 4% do total). São elas, em ordem cronológica: i) Marie Curie (1911); ii) Irène Joliot-Curie (1935); iii) Dorothy Crowfoot Hodgkin (1964); iv) Ada Yonath (2009); v) Frances Arnold (2018); vi) Emmanuelle Charpentier (2020); e vii) Jennifer Doudna (2020).11 Marie Curie foi a pioneira e deixou um marco simbólico, sendo a primeira mulher a ganhar um Nobel de Química, e sozinha. Depois dela, apenas Dorothy Hodgkin conseguiria tal feito, passados 53 anos e tendo apenas mais uma mulher agraciada no meio desse período. Em 2020, foi a vez de outro registro marcante, Emmanuelle Charpentier e Jennifer Doudna tornaram-se a primeira dupla de mulheres a dividir um Nobel de Química. Irène Joliot-Curie, Ada Yonath e Frances Arnold dividiram os seus prêmios com homens. Na Figura 2 todas as ganhadoras do Nobel de Química - até o ano de 2020 - estão ilustradas, indicando seus nomes, ano da premiação, contribuição científica para tal distinção e o período que as localiza na história recente da humanidade.
Figura 2. Laureadas e suas contribuições científicas para a premiação com o Nobel de Química
Nota-se que no período correspondente ao século XX, apenas três cientistas foram laureadas com o Nobel de Química. Há muitas lacunas que marcam o apagamento simbólico da participação feminina no desenvolvimento mundial da Química quando tomamos o Nobel como referencial de análise. Entre Ada e Dorothy temos 45 anos de ausência das mulheres nesta categoria da premiação. Já no século atual, são quatro agraciadas em um período de vinte anos. Marie foi agraciada sozinha; Irène dividiu a láurea com o marido Frédéric Joliot-Curie; Dorothy ganhou sozinha; Ada compartilhou o prêmio com Venkatraman Ramakrishnan e Thomas A. Steitz; Frances partilhou com Gregory Winter e George Smith; e por fim, Emmanuelle e Jennifer conquistaram juntas o Nobel de Química.11 Diante desse cenário alarmante que conta com apenas sete mulheres ganhadoras em 120 anos de existência do Prêmio, consideramos relevante que este debate permeie os espaços acadêmicos e científicos para fomentar políticas que possam minimizar os impactos da desigualdade de gênero. Ademais, há que se destacar a ausência de mulheres negras dentre essas, outra grave questão que exige o posicionamento da comunidade química mundial no ato das indicações dos nomes ao Comitê do Nobel. É salutar evidenciar os feitos científicos dessas ganhadoras para que sejam reconhecidas como referências pelo grande público que, em geral, conhece pouca ou nenhuma cientista. Ganhar um Nobel é uma grande conquista para qualquer cientista, mas, para as mulheres, é um marco ainda mais simbólico visto as situações de sub-representação feminina que marcam os espaços de prestígio na academia. A seguir, apresentamos as contribuições científicas das laureadas em Química, em ordem cronológica da premiação, destacando seus nomes, data da conquista e o país em que atuavam profissionalmente quando receberam a honraria. Além disso, elencamos breves aspectos de suas biografias que auxiliam na elucidação do (re)conhecimento sobre elas. Marie Curie - 1911 (França) A polonesa Marie Curie, ilustrada na Figura 3, foi a 11ª pessoa a ganhar o Nobel de Química. O prêmio foi concedido "em reconhecimento de seus serviços para o avanço da química, pela descoberta dos elementos rádio e polônio, pelo isolamento do rádio e pelo estudo da natureza e dos compostos deste notável elemento".12
Figura 3. Ilustração de Marie Curie
Marie Curie, indubitavelmente, foi uma das cientistas mais importantes da história da Ciência. Essa mulher fascinante, foi pesquisadora, esposa, mãe e venceu inúmeros preconceitos para trilhar a brilhante carreira. Ela foi a única mulher a ganhar dois Prêmios Nobel, e a única pessoa galardoada em duas áreas científicas distintas: Química e Física. Ademais, foi a única cuja filha, Irène Joliot-Curie, também foi laureada com o Nobel de Química.13 No ano de 2018, a revista BBC World History elegeu Marie Curie como a mulher mais influente da História.14 Maria Salomea Sklodowska, apelidada de Manya na infância, e que mais tarde ficou mundialmente conhecida como Marie Curie, nasceu em Varsóvia no dia 7 de novembro de 1867, em uma época em que a Polônia era parte do Império Russo. Marie só conseguiu ingressar na Faculdade quando se mudou para Paris, onde na Universidade de Sorbonne ela cursou Física e Matemática, época em que conheceu Pierre Curie.15-17 No doutorado, Marie começou a estudar a radiação emitida pelos compostos de urânio, e foi ela que propôs o termo radioatividade, que foi usado para descrever o fenômeno de radiação causada pela decomposição atômica. Os trabalhos iniciais de Marie foram baseados no método elétrico de medida da radiação, o qual possuía a vantagem de ser rápido, quantitativo e eliminar os efeitos espúrios. A partir das propriedades da radiação do urânio de ionizar o ar, Marie também relatou que o tório emitia o mesmo tipo de radiação.18-21 Após muitos experimentos, em 1898, Marie e Pierre (seu marido), elaboraram a hipótese de que a radiação era uma propriedade atômica específica para determinados elementos. Anos mais tarde, Irène Curie e Jean Fréderic Joliot-Curie, elaboraram o conceito de radioatividade artificial.22,23 O reconhecimento científico de mulheres cientistas, na atualidade, ainda é difícil, muitas vezes o ambiente machista nos departamentos de Química é uma barreira para o avanço das mulheres na carreira acadêmica.24 E, naquela época era ainda mais, pois a Ciência era um território majoritariamente masculino. Marie lutou incansavelmente para ser reconhecida pelas suas importantes descobertas para a humanidade. A importância da pesquisa de Marie era inquestionável, a banca examinadora da tese de Curie considerou que o trabalho dela era a maior contribuição, que uma tese de Doutorado, havia dado para a Ciência. Entretanto, apesar de todo mérito de Marie Curie na descoberta da radioatividade, na primeira indicação no Prêmio Nobel de 1903, ela não constava na láurea, isso era resultado do preconceito de gênero existente na Ciência. Ela já havia sido indicada pelo membro do Comitê do Nobel, Charles Bouchard, em 1901 e 1902. Só após Pierre escrever uma carta para a comissão do Nobel em Estocolmo, detalhando que as pesquisas eram da esposa, e com apoio de um físico sueco do comitê de indicação, consideraram o nome de Marie Curie para o Nobel daquele ano. Apesar da contribuição de Marie ter sido no campo da Química, o comitê da referida área já tinha um nome para aquele ano, Svante Arrhenius, assim esse comitê concordou em atribuir a premiação à Física.16 A Láurea foi dividida em duas partes, metade foi atribuída para Antoine Henri Becquerel e metade foi para o casal Curie, e ainda assim, infelizmente, no discurso de entrega do prêmio, a discriminação de gênero ficou evidente, já que Marie Curie foi tratada como uma assistente de Henri e Pierre.25 Em 1906 Pierre morreu, após ser atropelado por uma carroça e, Marie mesmo sofrendo muito com a perda do marido, continuou as pesquisas, e no mesmo ano ela se tornou a primeira professora mulher da Universidade de Sorbonne, onde lecionava Física Geral. Marie trabalhava arduamente, pois ela desejava isolar quimicamente o elemento rádio, o qual não era encontrado isolado na natureza, como os elementos urânio e polônio.15,16 Em 1910, após muita dedicação e o refino de várias toneladas de pechblenda, ela conseguiu purificar uma pequena quantidade do metal rádio e calcular as propriedades desse elemento. Foram muitos anos de exposição às substâncias radioativas e de condições precárias para o desenvolvimento das pesquisas, entretanto, Marie permaneceu firme na sua dedicação à Ciência.26 Toda a pesquisa para a descoberta dos elementos rádio e polônio, bem como, o isolamento do rádio a partir do mineral pechblenda, que contribuiu para consolidar a hipótese de que a radioatividade era uma propriedade atômica, em 1911 concedeu à Marie Curie o Prêmio Nobel de Química. Ainda, vale ressaltar que a hipótese criada pelo casal Curie a respeito da radioatividade foi de grande relevância em uma vasta gama de outras pesquisas, como, por exemplo, de Rutherford e Soddy.27 Marie enfrentou um preconceito enorme para receber o prêmio, pois na época havia se tornado público seu romance com Paul Langevin, e mesmo sendo viúva e livre, foi brutalmente julgada e humilhada com matérias, muitas vezes descabidas, nos jornais de uma sociedade machista! Ela estava arrasada com o escândalo, e recebeu uma carta em nome do Comitê do Nobel que tinha como objetivo desencorajá-la a receber o Prêmio, mas ela fez questão de recebê-lo das mãos do rei Gustavo, em Estocolmo.15,16 O interesse de Marie pela aplicação das substâncias radioativas na Medicina, na época da Primeira Guerra Mundial, culminou no uso dos raios X em um sistema de radiografia móvel que ajudou a salvar inúmeras pessoas feridas por arma de fogo e com fraturas. A partir da ajuda financeira da Cruz Vermelha Francesa e da União das Mulheres da França, Marie criou os sistemas radiológicos móveis, os carrinhos eram conhecidos como "Petites Curies".16 Apesar de todo o esforço dela durante o período da Guerra, Marie não teve o reconhecimento do governo francês pelo seu importante trabalho nas zonas de confronto. Além de possibilitar o uso de rádio na terapia de doentes com câncer, Marie foi responsável pelo aprisionamento do gás que provinha desse elemento químico e envio para inúmeros hospitais de todo o Planeta que o usavam para tratar pessoas com tumores cancerígenos. Todo o conhecimento científico produzido por Marie Curie foi de grande relevância para a Humanidade, influenciando diferentes áreas das Ciências, tais como, Física, Química, Medicina e até mesmo a Economia, quando o rádio era o elemento mais caro do mundo. Após anos de exposição à radiação emitida pelo rádio, os perigos desse elemento químico começaram a surgir, jovens que trabalhavam com o elemento rádio na produção de relógios fluorescentes tiveram câncer e perderam suas vidas. As pessoas que trabalhavam no laboratório de Marie adoeceram e morreram de leucemia e anemia, e por fim Marie Curie em 4 de julho de 1934, morreu de leucemia provocada pelos inúmeros anos de exposição às substâncias radioativas.13,21 Irène Joliot-Curie - 1935 (França) A francesa Irène Joliot-Curie, ilustrada na Figura 4, foi a 34ª pessoa a ganhar o Nobel de Química. O prêmio foi pela "sua síntese de novos elementos radioativos".
Figura 4. Ilustração de Irène Joliot-Curie
Irène Joliot-Curie foi química e física, nasceu em Paris, em 1897, era filha de Marie Curie e Pierre Curie e assim como os pais, interessava-se pelo campo da radioatividade e seus desdobramentos. Desde criança, Irène demonstrava afinidade pelas ciências exatas como Química, Física e Matemática. Irène casou-se com Frédéric Joliot, em 1926 e tiveram dois filhos, Helene e Pierre. O casal Joliot-Curie recebeu, em 1935, o Prêmio Nobel de Química. Irène e Frédéric eram politicamente ativos, engajaram-se em movimentos contrários ao fascismo e nazismo da época. Irène sempre dedicou tempo aos filhos e à medida que eles cresciam, ela desenvolveu um interesse pelo socialismo e pela política, incluindo o movimento sufragista, tornando-se professora eleita na Sorbonne em 1937. Ela tinha um grande interesse no avanço social e intelectual das mulheres, era membra do Comitê Nacional da União das Mulheres Francesas e do Conselho Mundial para a Paz. A brilhante cientista morreu em Paris, em 1956, em decorrência de uma leucemia causada pelos muitos anos de exposição à radioatividade. O prêmio Nobel recebido por Irène configura-se como o único caso na história em que mãe e filha, em épocas diferentes, são laureadas.28-31 Marie e Irène vieram ao Brasil em meados de 1926. A Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, que representava as intelectuais da época, organizou uma comissão para acompanhar Marie e Irène Curie durante a viagem ao Brasil. Dessa comissão faziam parte, ilustres nomes como o da bióloga Bertha Lutz, a primeira botânica do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, Maria Bandeira e a médica Carlota Pereira de Queiroz.32 Com base no trabalho de Marie Curie e na convergência de duas linhas de pesquisas simultâneas sobre nêutrons e pósitrons, o casal Joliot-Curie, bombardeou elementos químicos com uma fonte de partículas alfa emitidas do polônio, descoberto pelos pais de Irène. Quando eles bombardearam uma folha de alumínio com partículas alfa, em 1934, o alumínio bombardeado emitiu pósitrons e continuou a fazê-lo mesmo depois que o bombardeio de partículas alfa cessou. Os cientistas encontraram um efeito idêntico ao irradiar boro e magnésio (meia-vida de 2 minutos, 30 segundos), mas não ao irradiar uma série de outros elementos leves como hidrogênio, lítio, carbono, berílio, níquel e prata, o que mostrou que o novo fenômeno não poderia ser atribuído a qualquer contaminação da fonte de partícula alfa. Isso ocorreu porque os átomos de alumínio foram convertidos em um isótopo radioativo de fósforo. Isso significa que, pela primeira vez na história, um elemento radioativo foi criado artificialmente. A hipótese dos Curie-Joliot é que o fenômeno acontecia em duas etapas. Por exemplo, para o alumínio, na primeira etapa ocorria a captura da partícula alfa e a expulsão instantânea do nêutron, com a formação de um átomo radioativo que é um isótopo instável de fósforo de massa atômica 30, enquanto o átomo de fósforo estável tem massa atômica 31. Em seguida, esse átomo instável decai pela emissão de pósitron, decompondo-se exponencialmente com meia vida de três minutos e 15 segundos.33,34 Irène Curie e Frederic foram cientistas brilhantes e foram os primeiros a transmutar átomos estáveis em átomos radioativos. Sem dúvida poderiam ter sido laureados com três prêmios Nobel, também pela descoberta do nêutron e do pósitron, mas por má interpretação dos resultados e por terem chegado "atrasados" na corrida científica, não receberam o reconhecimento merecido.35 Na nomeação dos laureados do Prêmio Nobel de Química de 1935, Rutherford destaca que a produção artificial de elementos radioativos já havia sido tentada por cientistas como ele e a própria Marie Curie, e que o diferencial do casal Curie-Joliot foi que fizeram algumas escolhas muito acertadas. Rutherford destaca a fonte de raios alfa potente combinada ao uso do contador de raios beta sensível, além da escolha do alumínio como elemento alvo.30,34 Isótopos radioativos, radioisótopos ou ainda radionuclídeos produzidos artificialmente, revelados à Academia de Ciências em 1934, eram úteis para acompanhar mudanças químicas, processos fisiológicos, bem como aplicações em diversas outras áreas. Destaca-se a importância destes para a medicina, especialmente na área de diagnóstico, como em procedimentos de cintilografia, tomografia por emissão de pósitrons e tomografia computadorizada por emissão de fóton único.36 Na medicina, os radioisótopos também são usados no tratamento de câncer. Pesquisas com radiofármacos que se ligam a receptores alvo, têm se mostrado promissoras para o tratamento de tumores de difícil acesso e alta complexidade.37 Mas além da medicina ainda há aplicações na área de Química, Geologia, Engenharia de alimentos e muito provavelmente, aplicações que a espécie humana ainda não vislumbrou.22 Dorothy Crowfoot Hodgkin - 1964 (Inglaterra) A egípcia Dorothy Crowfoot Hodgkin, ilustrada na Figura 5, foi a 70ª pessoa a ganhar o Nobel de Química. O prêmio "por suas determinações por técnicas de raios-X das estruturas de importantes substâncias bioquímicas".
Figura 5. Ilustração de Dorothy Crowfoot Hodgkin
Dorothy Crowfoot foi uma cientista excepcional e uma pessoa notável. Durante sua vida recebeu várias honrarias tanto pelas descobertas científicas quanto pelo seu trabalho pela paz entre diferentes nações.38,39 Suas conquistas científicas incluíram não apenas a determinação estrutural de estruturas complexas e a evolução científica que proveio disso, mas também o desenvolvimento de métodos que fizeram com que a determinação estrutural fosse possível.40 Ela é conhecida como fundadora da cristalografia de proteínas, ciência fundamental para o desenvolvimento de novos fármacos e terapias. 41,42 Dorothy, a primeira de quatro filhas do casal John Winter Crowfoot e Grace Mary Hood Crowfoot, nasceu em 12 de maio de 1910 no Cairo, Egito. Porém, com o início da Primeira Guerra Mundial e a instabilidade da vida no Cairo, ela e suas irmãs foram enviadas para a Inglaterra junto a uma cuidadora. Seus pais ficaram no Egito e mais tarde John foi nomeado Diretor de Educação em Cartum no Sudão e Grace Mary iniciou um longo trabalho como ilustradora botânica das espécies Sudanesas.43 Após a guerra, a mãe de Dorothy foi para junto das filhas e, por um ano, as ensinou em casa juntamente com outros dois primos. Parece ter sido uma época extremamente feliz com as crianças aprendendo história natural, história, geografia e poesia de maneiras muito práticas. Eles fizeram seus próprios livros e os ilustraram, fizeram mapas tridimensionais sólidos com rios e lagos, coletaram flores e plantas e observaram borboletas e pássaros.44 Aos 10 anos, Dorothy passou a frequentar uma escola mista em Beccles. Ela ficou fascinada com os primeiros experimentos do seu livro sobre química: crescimento de cristais. Seu interesse por esta ciência também foi alimentado ao ter aulas de química com uma "professora maravilhosa", segundo ela, chamada Criss Deeley. Percebendo o interesse e habilidade de Dorothy, seus pais organizaram um pequeno laboratório no sótão da casa onde viviam.43,44 Quando jovem, Dorothy teve a oportunidade de fazer várias viagens, o que lhe proporcionou, ricas experiências de aprendizado além do ensino formal na escola. Em uma dessas viagens, em 1923, ela ganhou um kit de análises químicas portátil do Dr. Joseph, químico do Governo do Egito, geólogo e amigo de seu pai. Aos quinze anos, Dorothy participou com sua mãe da 6ª Assembleia de Líderes de Nações em Genebra, fato que mais tarde contribuiria com as suas preocupações em manter a paz entre as nações conflitantes. Grace Mary (mãe) se empenhou na educação das filhas, proporcionando-lhes viagens, participações em assembleias, livros e as últimas edições das palestras para crianças da Royal Institution. A edição de 1925 contava com o trabalho de Sir William Bragg, sobre a determinação da estrutura atômica de materiais por meio do uso de raios X, o que introduziu Dorothy à técnica de difração de raios X e às estruturas cristalinas. Seu pai planejou que ela fosse para Oxford, para estudar Ciências. Embora Dorothy tenha tido um ótimo desempenho na escola, ela ainda precisava de mais qualificações para chegar a Oxford: latim, uma segunda ciência e matemática mais aprofundada. Ela os adquiriu com a ajuda de sua mãe e de vários amigos e, após duas reprovações, conseguiu ser aprovada no exame e foi para Somerville em 1928 para estudar química.43 Dorothy ingressou na Universidade de Oxford para estudar no Sommerville College, um dos poucos Colleges desta Universidade que aceitava mulheres. Nesta época o curso de química era essencialmente experimental, o que frustrou os anseios de Dorothy por base teórica.41 Em seu primeiro ano, ela assistiu algumas aulas sobre cristalografia ministradas pelo Dr. Barker, mas ele temeu que Dorothy estivesse começando muito cedo e a convenceu a atrasar os estudos nesta disciplina por um ano enquanto consolidava sua química.44 Esse fato, porém, não impediu que Dorothy estudasse o tema na biblioteca, por meio da leitura de trabalhos de pesquisadores britânicos que se dedicavam à cristalografia e à difração de raios X, liderados por Bragg.43 Após os exames do final do 3º ano, Dorothy estava apta para realizar seu projeto de pesquisa original (chamado de projeto de 4º ano), necessário para a obtenção do Bachelor in Arts.41 Ela então tomou conhecimento que o Departamento de Mineralogia havia comprado um tubo de raios X com câmera e nomeado Herbert Powell (Tiny Powell) para operar o equipamento e pediu a supervisão do recém nomeado, passando a ser sua primeira orientanda. Junto a Tiny Powell, iniciou sua carreira em cristalografia, usando a técnica de difração de raios X para estudar os haletos dialquil de tálio.40,43,45 Esse trabalho lhe rendeu sua primeira comunicação científica com Tiny Powell, na edição 130 da revista Nature, intitulado "Layer-chain structures of thallium di-alkyl halides".46 Em 1931 ela recebeu um diploma de primeira classe, e passa a ser a terceira mulher que conseguiu essa distinção em química em Oxford.42 Em 1932, Dorothy iniciou seu doutorado com John Desmond Bernal, na Universidade Cambridge, em um laboratório conhecido por receber muito bem os alunos e encorajar as mulheres a trabalhar nele.43 O seu trabalho consistia em estudar cristais de esteróis por meio da técnica de difração de raios X para fins médicos. Uma das descobertas mais importantes de Bernal e Dorothy nesta época foi que para se obter imagens (padrões de difração) mais nítidas era preciso deixar os cristais imersos em sua solução-mãe. A dupla publicou dois artigos47,48 provando a partir de experimentos que a perda de intensidade de difração de raios X se dá por mudanças na rede cristalina e não pela perda da atividade biológica do composto, não afetando, portanto, seu possível uso médico. Ao final do seu primeiro ano em Cambridge, Dorothy recebeu a oferta de Somerville Oxford para ser tutora de ciências naturais, função que exerceu pelo resto de sua vida. Por isso, em 1934 ela transferiu-se para Oxford e equipou seu laboratório com tubos de raios X e câmeras de última geração.42 Dorothy defendeu sua tese de doutorado em 1936 e publicou um artigo49 expondo um exame detalhado da química e cristalografia de cerca de cinquenta compostos de esteróis. No ano seguinte, ela recebeu o convite de Sir William Bragg para ir ao Royal Institution de Londres, onde conheceu Thomas Lionel Hodgkin, com quem casou-se em 1937, aos 36 anos.50 Após o casamento, Dorothy continuou morando no alojamento de Oxford e Thomas vivia do outro lado do país, em Londres. No ano seguinte, Dorothy deu à luz a Luke, seu primeiro filho, e passou a ser a primeira professora de Somerville Oxford a gozar de um tipo de licença maternidade, pois nessa época continuar a trabalhar após o casamento não era uma prática comum.41 Em 1942, por meio do trabalho de doutorado de Carlisle, orientado por Dorothy, foi possível obter uma imagem tridimensional que mostrava as posições de cada átomo principal da molécula do iodeto de cloresterilo. Essa foi a primeira determinação estrutural completa de uma molécula bioquimicamente significativa, e a publicação gerada foi de grande impacto na comunidade científica, pois sugeriu que o método de difração de raios X poderia ser usado para elucidação de estruturas orgânicas complexas, como a penicilina, que na época estava no auge de seu uso.43 A história da penicilina começou em 1928, quando o médico e professor Alexander Fleming observou que a presença de um fungo que pertencia ao gênero Penicillium era capaz de inibir o crescimento de muitas das bactérias comuns que infectavam o ser humano. A penicilina, substância produzida por este fungo, foi isolada apenas em 1942 por Howard Florey, Ernst Chain e Norman Abraham, da Universidade de Oxford e foi estudada de forma sistêmica como antibiótico principalmente para tratamento de soldados feridos nos campos de batalhas da Segunda Guerra Mundial.43 Porém, a constituição química da penicilina ainda era desconhecida, o que impossibilitava o desenvolvimento de rotas químicas para sua produção em larga escala. Nessa época, Dorothy iniciou seu trabalho com os cristais dos produtos de degradação e posteriormente - em 1944 - com os sais de sódio, potássio e rubídio da benzilpenicilina, em busca da sua estrutura cristalina.38 Por meio da comparação destes sais isomorfos, a estrutura química essencial da molécula foi estabelecida em meados de 1945. A estrutura contendo o anel β-lactama, muito incomum, fixado a um anel de tiazolidina de cinco membros era excepcional e este resultado foi um triunfo para os primeiros dias da cristalografia de produtos naturais.38 Outro triunfo de Dorothy, foi a determinação estrutural da Vitamina B12. Isolada na forma cristalina em 1948, este composto já havia se mostrado eficaz no tratamento da anemia perniciosa, que durante muito tempo foi considerada incurável e geralmente fatal.38,40,51 Nesse mesmo ano, quando Dorothy obteve os primeiros cristais vermelho-escuros deste composto e as primeiras imagens de raios X foram obtidas, nem mesmo sua massa molecular era conhecida. A estrutura, contendo 93 átomos principais (não-hidrogenóides), foi resolvida em 1956 e representou a maior estrutura resolvida na época. Como no trabalho com a penicilina, a solução da estrutura foi alcançada pela comparação dos resultados com várias formas de cristal e derivados diferentes. A essa altura, a tecnologia do computador havia avançado, mas ainda demorava três semanas para calcular o mapa tridimensional final. Para ter sucesso, Dorothy teve que abandonar a suposição óbvia de que os grupos ao redor do cobalto eram anéis pirrólicos, como nas porfirinas, e descobriu a estrutura em anel bastante nova que ela chamou de corrin.40 O trabalho forneceu pistas sobre a função biológica da vitamina B12, bem como novos métodos para soluções de estruturas cristalinas e isso colocou o seu nome na disputa pelo máximo em reconhecimento pela comunidade científica mundial, o prêmio Nobel.38,43 Apesar de apta a disputar o Nobel desde 1956, Dorothy foi anunciada como única vencedora do Prêmio Nobel de Química apenas em 29 de outubro de 1964.39 A estrutura da insulina também foi resolvida por ela. Em 1935, no início de sua carreira, Dorothy preparou seus primeiros cristais de insulina e ao descobrir seu rico padrão de difração de raios X, estava determinada a resolver sua estrutura.40 Ela mostrou que a célula unitária continha três unidades equivalentes de cerca de 12.000 M, tamanho muito maior do que poderia ser enfrentado naquela época.38 A determinação da estrutura foi difícil, mas ela perseverou com suas tentativas em paralelo com todos os seus outros trabalhos e após 34 anos, em 1969, a estrutura da insulina foi solucionada. Dorothy ficou encantada quando, em 1988, uma insulina humana geneticamente modificada foi prometida como tratamento melhorado para o diabetes. Ela não poderia ter sido projetada sem a estrutura na qual ela trabalhou pela maior parte de sua vida ativa.40 Cada uma das estruturas resolvidas por esta cientista estendeu a determinação estrutural por difração de raios X a moléculas de maior complexidade do que qualquer outra analisada anteriormente. Ela estabeleceu a difração de raios X como um dos mais rápidos métodos de determinação da constituição química de produtos naturais além da ressonância magnética nuclear.40 A vida desta cientista brilhante foi uma fonte constante de inspiração para aqueles que a cercavam, em particular, por meio de seu trabalho em Somerville, ela deixou um legado de mulheres cientistas ilustres em todo o mundo. Durante seu importante trabalho de pesquisa, ela cuidou de três filhos e ainda tinha uma carga substancial de disciplinas. Somado a isso, Dorothy foi uma lutadora incansável pela paz, especialmente em uma época em que a destruição nuclear durante a Guerra Fria parecia uma possibilidade real. Seu trabalho como presidente da Pugwash - movimento que foi criado por Bertrand Russell e Albert Einstein em 1955 para promover conciliação Leste/Oeste e buscar soluções cooperativas para o desarmamento e redução da tensão internacional - em 1975 foi amplamente reconhecido. Além do seu trabalho em organizações formais, usou seus contatos pessoais em prol da paz, do Terceiro Mundo e de todos os menos afortunados.38 Ada Yonath - 2009 (Israel) A israelense Ada Yonath, ilustrada na Figura 6, foi a 157ª pessoa a ganhar o Nobel de Química. O prêmio "por seus estudos sobre a estrutura e função dos ribossomos".
Figura 6. Ilustração de Ada Yonath
Ada nasceu em 1939, em Jerusalém, em uma família judia e pobre que dividia um apartamento alugado com outras duas famílias. Seu pai tinha sérios problemas de saúde e faleceu quando ela tinha apenas 11 anos de idade. A partir de então, ela passou a trabalhar em diversas atividades como babá, faxineira e professora particular de crianças menores. Apesar do esforço, o que ela e sua mãe recebiam não era o suficiente para sustentar a família e, por isso, sua mãe decidiu mudar-se para junto de suas irmãs que viviam em Tel Aviv. Apesar das dificuldades, Ada teve o apoio da mãe para continuar os estudos e concluir o ensino médio. Cumpriu também o serviço militar obrigatório no escritório secreto das forças médicas onde, segundo ela, teve o privilégio de ter contato com questões clínicas e médicas. Em seguida, ela matriculou-se na Universidade Hebraica de Jerusalém, onde concluiu sua graduação e mestrado em química, bioquímica e biofísica. No seu trabalho de doutorado, realizado no Instituto Weizmann, trabalhou na resolução da estrutura do colágeno, seguindo o seu trabalho com proteínas fibrosas (musculares) no seu primeiro ano de pós-doutorado, no Mellon Institute em Pittsburgh, Pensilvânia. Em seguida, foi para o Instituto de Tecnologia de Massachusetts, onde estudou a estrutura de uma proteína globular e após concluir o pós-doutorado, no final de 1970, retornou ao Instituto Weizmann. Lá, Ada montou o primeiro laboratório de cristalografia biológica em Israel, que por quase uma década foi o único laboratório para tais estudos e descreveu quais eram os seus objetivos naquela época:52,53
O ribossomo é uma organela celular que permite a tradução do código genético em proteínas, ou seja, é uma unidade fundamental para vida, mas, para que se tenha a compreensão de como ele funciona é necessário compreender sua estrutura tridimensional a um nível molecular. Um dos grandes desafios para que isso fosse alcançado era a obtenção de cristais adequados. No caso do ribossomo, isso inclui um desafio ainda maior já que sua estrutura é extremamente entrelaçada, flexível e instável.54 Ada iniciou seus estudos em colaboração com o H. G. Wittmann, do Instituto Max Planck de Genética Molecular em Berlim, e, no início da década de 1980, conseguiram criar os primeiros microcristais de ribossomo. A técnica desenvolvida para isso teve inspiração nos ursos que, pouco antes da hibernação, empacotam seus ribossomos de maneira ordenada em suas células e estes permanecem intactos e potencialmente funcionais por meses. A cientista, então, procurou ribossomos de organismos que vivem em condições extremas, como bactérias resistentes que vivem nos ambientes extremos do Mar Morto, fontes termais e reatores nucleares. Apesar de já ter indicações preliminares de difração, Ada conta que, ao descrever seus planos, muitos cientistas ilustres responderam com sarcasmo e descrença.52,54,55
No decorrer de sua pesquisa, Ada desenvolveu várias técnicas que hoje são amplamente utilizadas em laboratórios de Biologia Estrutural, como a crio-biocristalografia, que envolve a exposição do cristal a temperaturas extremamente baixas (-185 °C) para minimizar a desintegração da estrutura cristalina sob o bombardeio de raios X. Em meados de 1990, o grupo de Ada já havia provado a viabilidade de se utilizar a técnica de difração de raios X em monocristais de ribossomo e isso fez com que vários outros grupos de importantes instituições iniciassem um esforço paralelo nesta pesquisa. Todo esse esforço conjunto, unido à melhoria dos cristais, aprimoramento do detector do difratômetro e das formas de determinação das fases de difração, fez com que em 2000 e 2001 Ada e colaboradores publicassem as primeiras estruturas tridimensionais completas de ambas as subunidades do ribossomo bacteriano. Essa foi a maior conquista de Ada e seu grupo, e, a partir dela, foi possível não apenas estudar a ação dos ribossomos, mas também entender como os antibióticos bloqueiam essas ações nos ribossomos bacterianos. Isso foi possível pois seu grupo cristalizou ribossomos bacterianos, que serviram como modelos de patógenos, complexados com cada um de mais de duas dezenas de compostos antibióticos. Dessa forma, descobriram que o medicamento se liga a sítios específicos da estrutura, localizados nos centros funcionais ou próximos a eles, podendo bloqueá-los e impedir que os ribossomos produzam proteínas. Como resultado desse estudo, o grupo de Ada conseguiu revelar os meios de ação de quase todos os antibióticos cujo alvo é o ribossomo, além da sua seletividade e possíveis mecanismos de aquisição de resistência por bactérias patogênicas.39,56 Em 2009, a Academia Real das Ciências da Suécia concedeu o Prêmio Nobel de Química a Ada Yonath juntamente com os americanos Venkatraman Ramakrishnan e Thomas Steitz, pela elucidação da estrutura de ribossomos por meio da técnica de difração de raios X de monocristais. Os três, laureados em química, resolveram estruturas tridimensionais que mostram como diferentes antibióticos se ligam aos ribossomos, sendo Yonath a pioneira do campo.55 Embora Yonath acumule prêmios - mais de 30 deles - ela é muito modesta e despretensiosa. Entre seus prêmios anteriores mais importantes estavam o Prêmio Israel (2002), o Prêmio Fundação Wolf (2007) e o Prêmio Mundial Albert Einstein para a Ciência (2008). Ada continua trabalhando no desenvolvimento uma nova geração de antibióticos e no entendimento das origens da vida.39,57 Frances Hamilton Arnold - 2018 (Estados Unidos) A estadunidense Frances Hamilton Arnold, ilustrada na Figura 7, foi a 179ª pessoa a ganhar o Nobel de Química. O prêmio "pela evolução dirigida de enzimas".
Figura 7. Ilustração de Frances Hamilton Arnold
Frances Hamilton Arnold nasceu em 25 de julho de 1956, em Pittsburgh na Pensilvânia, Estados Unidos, é formada em Bacharelado em Engenharia Mecânica e Aeroespacial pela Universidade de Princeton, e no ano de 1985 concluiu o Doutorado em Engenharia Química pela Universidade da Califórnia em Berkeley. Frances tem uma trajetória científica brilhante, em 2011, recebeu o Prêmio Charles Stark Draper, a maior honraria que uma pessoa da engenharia pode receber nos Estados Unidos. Ela foi a primeira e é a única mulher a receber esse prêmio, que tem sido entregue, desde 1989, pela Academia Nacional de Engenharia dos Estados Unidos. Em 2013, Frances recebeu, do presidente Barack Obama na Casa Branca, a Medalha Nacional de Tecnologia e Inovação Estadunidense. Em 2016, recebeu o Prêmio de Tecnologia do Milênio, novamente sendo a primeira e a única mulher a receber essa honra e em 2017 participou dos protestos na "Marcha pela Ciência" (March for Science) e já dizia que a maior ameaça para as Ciências é a ignorância humana.58 Frances é a segunda filha de William Howard Arnold e Josephine Inman Routheau, pouco mais de um ano após seu nascimento, vieram seus irmãos Edward, depois David e finalmente Thomas. Sem internet ou televisão, aproveitava o tempo com livros, bicicletas, amigas e amigos. Frances leu todas as edições da revista "Readers' Digest" (publicada no Brasil com o título de "Seleções") e as revistas do "Analog: Science Fiction and Fact" ("Analógico: Ficção Científica e Fato", em tradução livre) que o pai dela adorava.59 Na adolescência decidiu viver por conta própria, precisou trabalhar em diversos empregos para pagar suas contas e aluguel do apartamento, que, segundo ela, era terrível e infestado de insetos. Frances sonhava com um futuro que iria libertá-la das limitações de ser uma jovem mulher no início dos anos 1970.59 Em 1974, Frances ingressou na Universidade de Princeton, época em que as primeiras mulheres estavam se formando, pois, somente em 1969, a Universidade de Princeton começou a aceitá-las. Apenas 15% da sua classe eram mulheres, e a porcentagem diminuía na Engenharia Mecânica e Aeroespacial, área escolhida por Frances. A pós-graduação, assim como a graduação, foi um momento de muito aprendizado, Frances se dedicou a estudar química orgânica, bioquímica, imunologia, enzimologia, matemática avançada e todo o currículo de graduação e pós-graduação em Engenharia Química.59 Atualmente, Frances é pesquisadora e professora Linus Pauling de Engenharia Química, Bioengenharia e Bioquímica no Instituto de Tecnologia da Califórnia (CALTECH). Na temática modificação de enzimas, existem três táticas disponíveis para promover tal alteração, sendo elas design racional, design semirracional e evolução dirigida, que é a usada nas pesquisas realizadas por Frances. O uso dessa técnica não requer prévia caracterização da estrutura terciária e está fundamentada na realização de mutações aleatórias na sequência primária de aminoácidos da enzima.60-62 A técnica de evolução dirigida é realizada in vitro, por meio de ciclos de mutagênese, recombinação e seleção ou triagem da enzima. A referida técnica contempla basicamente quatro etapas: (i) a inclusão de mutações aleatórias no gene que codifica a enzima de interesse, (ii) a inserção dos genes em bactérias, que irão utilizar esses genes como modelos para produzir as enzimas com as mutações, (iii) após testes, a seleção das melhores enzimas catalisadoras e por fim (iv) a inserção de novas mutações aleatórias nas enzimas selecionadas e então o ciclo se inicia do mesmo modo na etapa I.60 A evolução dirigida de enzimas contempla várias técnicas, dentre elas as mais usuais são a mutagênese por saturação, embaralhamento de ácido desoxirribonucleico (DNA, em inglês: deoxyribonucleic acid) e as de reação da cadeia da polimerase propensa a erros.62 As pesquisas de Frances Arnold são de grande relevância para os seres humanos e o meio ambiente, ela usou o princípio da adaptação das espécies, seleção e alteração genética, para produzir proteínas que podem solucionar um amplo espectro de problemas químicos. A técnica de evolução dirigida de enzimas é um método usado para desenvolver e melhorar enzimas em laboratório e usa o princípio da evolução de Darwin. Essa técnica começou a ser estudada em 1993, pela Frances Arnold, e por meio dela desenvolveu proteínas que são capazes de catalisar várias reações químicas.58 Após anos de estudo o método foi aprimorado e, nos dias atuais, é possível desenvolver novas proteínas que catalisam reações químicas e que podem ser utilizadas para diversas finalidades, tais como, produção de combustíveis renováveis e de medicamentos. Graças às enzimas desenvolvidas a partir da referida técnica, diversos produtos químicos tóxicos puderam ser substituídos em vários processos industriais.59-62 A melhoria ou alteração da atividade de biomoléculas que podem ser produzidas para diversas finalidades pode ser conseguida a partir do método cíclico que imita a evolução natural. É um método realizado in vivo ou in vitro, usado na engenharia de proteínas, onde por meio de mutação, seleção e amplificação dos genes é possível obter proteínas com propriedades específicas. A engenharia de proteínas está baseada na modificação de proteínas, de forma geral, por meio da substituição de resíduos de aminoácidos por outros, objetivando melhorar as propriedades da proteína.62,63 As enzimas, que são catalisadores biológicos com função de acelerar as reações químicas nas células, foram as proteínas utilizadas pela Frances durante os seus estudos. Atualmente a técnica permite o desenvolvimento de um grande número de novas enzimas que podem possuir uma vasta gama de aplicações, destacando-se na Medicina. Quando Frances começou a realizar as pesquisas, ela não imaginava que a evolução dirigida de enzimas poderia revolucionar a forma como as enzimas podem ser moduladas, e revolucionar a área médica, como tem ocorrido nos últimos tempos. A Presidenta da Sociedade Real de Química, que engloba vários profissionais da área, afirma que a evolução dirigida de enzimas e anticorpos está transformando a Medicina. Em 2018, ela foi a 5ª mulher cientista laureada com o Prêmio Nobel de Química devido ao pioneirismo no uso da técnica de evolução dirigida para a engenharia de enzimas. Frances Arnold dividiu o prêmio com os cientistas George P. Smith, que em 1985 desenvolveu a técnica phage display, e Gregory P. Winter, que aplicou essa técnica à evolução de anticorpos. Vale destacar que a Frances recebeu metade do valor do prêmio e a outra metade foi dividida entre os outros dois ganhadores.61,64 Emmanuelle Charpentier - 2020 (Alemanha) e Jennifer Doudna - 2020 (Estados Unidos) A francesa Emmanuelle Marie Charpentier, ilustrada na Figura 8a, foi a 185ª pessoa a ganhar o Nobel de Química e a estadunidense Jennifer Anne Doudna, ilustrada na Figura 8b, foi a 186ª laureada com o Nobel de Química. O prêmio de ambas foi "pelo desenvolvimento de um método de edição de genoma".
Figura 8. a) Ilustração de Emmanuelle Marie Charpentier, b) Ilustração de Jennifer Anne Doudna
A francesa Emmanuelle Marie Charpentier é pesquisadora e diretora do Instituto Max Planck, Berlin, na Alemanha, e professora honorária na Universidade de Humboldt. Nasceu em 1968, em Juvisy-sur-Orge na França, próximo à Paris. Fez a graduação em Bioquímica na Universidade Pierre e Marie Curie (que viria a ser parte da Universidade de Sorbonne) e o Doutorado no Instituto Pasteur.65 Emmanuelle sempre foi boa aluna, uma criança muito curiosa e com múltiplos interesses, que permeavam desde às Ciências Exatas até as Ciências Humanas, mas com forte afinidade pela Biologia. Tamanho era o interesse pela ciência que aos 12 anos disse que trabalharia no Instituto Pasteur, algo que viria a se concretizar no doutorado, para alegria e orgulho de seus pais, que sempre a estimularam. Ainda na infância, viu a irmã mais velha entrar na Universidade, o que fez com que desde muito jovem ela compreendesse que as mulheres poderiam ocupar a academia.66,67 Emmanuelle reconhece a importância da representatividade feminina na ciência e em prêmios da magnitude do Nobel.68 A trajetória profissional da Dra Charpentier é profundamente marcada pela interdisciplinaridade, mobilidade e intercâmbio internacional, em parcerias sólidas nos Estados Unidos, Suécia e Áustria. Uma dessas parcerias foi com a também laureada em 2020, Jennifer Anne Doudna. Charpentier e Doudna começaram a trabalhar juntas em 2011 e de um sistema CRISPR-Cas9, adaptado para funcionar em um tubo de ensaio na bancada do laboratório, chegou-se a um sistema com possíveis aplicações na medicina, agricultura e ciências básicas, dentre outras, além obviamente, de um prêmio Nobel em Química.69 Jennifer Anne Doudna, da Universidade da Califórnia, nasceu em 1964, em Washington, nos Estados Unidos, mas cresceu na pequena cidade de Hilo, no Havaí, cercada por uma natureza exuberante e instigante para uma futura cientista, o que provavelmente originou a sua paixão pela natureza, pela química dos sistemas biológicos e os mistérios das ciências da vida. Seus pais eram acadêmicos, e embora não fossem cientistas, sempre trouxerem a ciência para a vida de Jennifer ao frequentarem feiras de ciências, museus, realizarem experimentos, e claro, o acesso aos livros. Aliás, depois de ler Dupla Hélice, The Double Helix, o relato de James Watson sobre a descoberta da estrutura do DNA, Doudna foi tomada pelo encantamento pela ciência e a vontade de se aprofundar nos mistérios das ciências da vida. Em 1985, graduou-se em Química pela Pomona College e fez o Doutorado na Escola de Medicina de Harvard. Doudna destaca a importância de ter tido um modelo feminino forte na sua formação científica, sua orientadora na graduação, a Sharon Panasenko.70,71 A tecnologia do Conjunto de Repetições Palindrômicas Curtas Regularmente Interespaçadas (CRISPR em inglês Clustered Regularly Interspaced Short Palindromic Repeats) surgiu de uma pesquisa básica sobre o mecanismo de ataque das bactérias às infecções virais, uma vez que os vírus representam uma ameaça a esse tipo de microrganismo. Algumas bactérias possuem um sistema imune, chamado CRISPR, adaptado aos vírus, que lhes permite detectar o DNA do vírus e destruí-lo. Por sua vez, existe uma proteína chamada Cas9, que faz parte desse sistema imune CRISPR que é capaz de procurar, clivar e então degradar o DNA do vírus.72-75 Quando os vírus infectam uma célula, eles injetam nela seu DNA, o sistema CRISPR permite que o DNA seja retirado do vírus e inserido em pequenos fragmentos dentro do cromossomo. E esses fragmentos integrados do DNA viral são inseridos em um compartimento chamado CRISPR. É um mecanismo que permite que as células mantenham um registro das infecções às quais estiveram expostas, pois esses fragmentos de DNA são passados a outras gerações de células, que ficam protegidas. Uma vez inseridos esses fragmentos do DNA no cromossomo da bactéria, a célula então faz uma cópia do RNA do vírus. Portanto, esses pequenos fragmentos de RNA do lócus do CRISPR se associam à proteína Cas9 e formam um complexo que funciona como uma proteção da célula. Ele vasculha todo o DNA da célula para encontrar locais que correspondam às sequências de ácido ribonucleico (RNA, em inglês ribonucleic acid) atuando como guias. E, quando tais locais são encontrados, esse complexo associado ao DNA permite que o Cas9 corte as duas fitas do DNA viral, resultando em uma ruptura muito precisa. Portanto, podemos pensar no complexo CRISPR-Cas9, como uma tesoura molecular que pode fazer uma ruptura precisa na fita dupla da hélice do DNA.72-75 Essa ferramenta molecular é programável, o que possibilita reconhecer sequências específicas do DNA e fazer uma ruptura em um local particular dessa molécula. O fato de as células terem a habilidade de detectar o DNA danificado e consertá-lo, indica que o sistema CRISPR poderia ser usado na engenharia genética. Por exemplo, quando a célula vegetal ou animal detecta a ruptura na fita dupla do DNA, ela consegue reparar essa ruptura seja colando as extremidades do DNA danificado, com uma pequena mudança na sequência daquela posição, seja integrando um novo pedaço de DNA no local da clivagem. As possibilidades se ampliam quando se efetua uma ruptura da fita dupla dentro do DNA, nos lugares certos, e então estimula-se as células a repararem essas falhas, seja pela ruptura ou pela incorporação de nova informação genética. O grande desafio é introduzir uma nova sequência de DNA no local do corte, algo que requer muita tecnologia e criatividade científica.72-76 A edição do genoma pela tecnologia CRISPR pode apressar o desenvolvimento de modelos animais de doenças humanas, e, assim, acelerar a identificação de terapias adequadas. A edição do genoma mediada pela tecnologia CRISPR está sendo usada para estabelecer modelos in vitro e in vivo de doenças humanas. Algumas aplicações envolvem a terapia celular, pois as abordagens baseadas em CRISPR-Cas9 podem corrigir alelos de doenças nas células como a edição da sequência do gene do regulador da condutância transmembrana da Fibrose Cística, corrigir mutações que causam a anemia falciforme, distrofia muscular ou a doença de Huntington. Aplicações antimicrobianas e antivirais; os antibióticos de sequência genética específica podem modular seletivamente as populações bacterianas e eliminar patógenos, uma vantagem é que se pode projetar para identificar com precisão, genótipos clínicos ou isolados epidemiológicos. Na área de antivirais, baseado em CRISPR, terapias estão sendo desenvolvidas para vírus humanos, incluindo o vírus da imunodeficiência humana (HIV, em inglês Human Immunodeficiency Virus), herpes, papilomavírus e hepatite B. Aplicações agrícolas também têm sido vislumbradas, com a melhoria de características da atividade pecuária na criação de bovinos, suínos e aves em geral, e na engenharia de órgãos e tecidos animais. No cultivo vegetal projeta-se aumentar a produtividade, melhorar a tolerância à seca e aumentar o crescimento das plantas em condições de nutrientes limitados, assim como para produzir colheitas com propriedades nutricionais melhoradas. Aplicações em biotecnologia alimentar e industrial; as aplicações dos sistemas CRISPR em bactérias incluem a genotipagem, vacinação de culturas industriais contra vírus, controle de entrada e disseminação de genes de resistência a antibióticos por bactérias, e engenharia de culturas probióticas. Aplicações de controle biológico: por exemplo, as unidades genéticas podem ser usadas em Anopheles gambiae, o mosquito vetor da malária, para conduzir um vírus recessivo genótipo de esterilidade feminina. Tal abordagem tem o potencial de suprimir a disseminação da malária em humanos.77 Além das aplicações citadas, pesquisas sobre o tratamento de câncer empregando a CRISPR-Cas9 já são uma realidade e mostraram-se promissoras quando combinadas a terapias com células T, na qual sentinelas do sistema imunológico são exploradas para destruir tumores. O tratamento foi aplicado a pacientes com sarcoma e mieloma múltiplo revelando-se uma esperança aos acometidos por essa doença.78 Muitas são as aplicações e possibilidades para a edição de genes e acompanhadas das possibilidades existem inúmeras questões éticas, científicas e políticas envolvendo a edição em embriões. Um caso que chamou a atenção da comunidade científica ocorreu na China, onde um pesquisador chinês cruzou a barreira ética e empregou a técnica CRISPR em embriões humanos, o que resultou no nascimento de duas gêmeas.76 Sobre as questões éticas, alguns aspectos são apontados pela própria Jennifer Doudna, a pesquisa usando CRISPR-Cas9 em embriões humanos desafia a compreensão atual dos mecanismos de reparo de DNA e as vias de desenvolvimento que ocorrem nessas células, além disso, existem muitas questões a serem respondidas pela sociedade, pelos cientistas e profissionais da área e a terceira questão levantada é como avançar no uso do sistema CRISPR-Cas9 em embriões humanos, garantindo a responsabilidade e a ética.79
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES Em síntese, tivemos a primeira ganhadora quando completados 10 anos do Nobel de Química. Entre a primeira e a segunda laureada foram 24 anos; entre a segunda e a terceira, 29; da terceira para a quarta foram percorridos 45 anos e tivemos uma mudança de século; da quarta para a quinta foram 9 anos; e da quinta para as sexta e sétima ganhadoras transcorreram-se apenas dois anos. O cenário pode parecer promissor em termos de reparação histórica, mas sabemos que muito há que ser feito para que as mulheres que atuam na produção do conhecimento químico tenham o seu devido reconhecimento acadêmico, considerando todas as facetas que sustentam a desigualdade de gênero na Ciência. Sobre os países em que essas mulheres se encontravam no exercício de sua profissão, tem-se forte predomínio daqueles localizados no continente europeu (França, Inglaterra e Alemanha), seguidos do americano por duas vezes (Estados Unidos) e asiático (Israel). Essa composição indica as assimetrias presentes em termos de desenvolvimento econômico e de aporte ao progresso científico nas diferentes nações. Coloca-nos indagações sobre a ausência de representantes de outros países e continentes. Os feitos dessas sete cientistas são notáveis para o desenvolvimento da Ciência Química Mundial, desde a descoberta dos elementos químicos Rádio e Polônio, passando pela síntese de elementos radioativos artificiais, estruturas da insulina, vitamina B12, penicilina, estrutura e funcionamento dos ribossomos, a evolução dirigida de enzimas, até a edição genômica. O trabalho delas contribuiu para o progresso de muitas áreas científicas, bem como para a qualidade de vida da população, a partir de conhecimentos que orientaram (e orientam) técnicas para a produção de novos materiais e medicamentos, por exemplo. E destaca-se a colaboração para a Ciência Básica, além da Aplicada, fundamental para o entendimento de mecanismos e fenômenos da natureza. Para além disso, ao abordamos episódios das trajetórias destas cientistas, pudemos notar as marcas do sexismo, da misoginia, do racismo, da xenofobia, e outros marcadores sociais, de forma interseccional, responsáveis por processos históricos de exclusão vertical e horizontal80,81 das mulheres nas Ciências em diferentes locais do mundo, incluindo o Brasil.82
CONCLUSÕES Neste artigo, reconhecemos que apesar da sub-representação feminina no Nobel de Química, a trajetória dessas sete cientistas deve ser celebrada e se fazer presente nos cursos de formação das áreas científicas, no âmbito da Graduação e da Pós-Graduação, bem como nos processos educativos das escolas da Educação Básica. Também devem permear os espaços midiáticos para ampliarmos o alcance dessas referências atingindo os mais diversos públicos, pois até mesmo a mais icônica dessas laureadas, Marie Curie, encontra-se pouco presente no imaginário coletivo, mesmo sendo considerada como umas das mulheres e cientistas mais influentes do mundo. A ampliação da participação feminina nos locais de grande prestígio acadêmico exige o compromisso e esforço das nações em fomentar ações educativas, nas diferentes modalidades - formais, não formais, informais - para que a Ciência seja espaço de valorização e acolhida da diversidade. Para os países que almejam o desenvolvimento sustentável, não há como progredir sem inserir as mulheres nas pautas e no gerenciamento das tomadas de decisão. O legado de Marie Curie, Irène Joliot-Curie, Dorothy Crowfoot Hodgkin, Ada Yonath, Frances Arnold, Emmanuelle Charpentier e Jennifer Doudna deve ser disseminado entre as diferentes gerações de cientistas, chegando também ao público em geral, para que reconheçamos e valorizemos os contributos deixados para o desenvolvimento da humanidade, assim como preconiza a láurea do Prêmio Nobel. Que elas sejam lembradas e celebradas, e suas trajetórias de sucesso inspirem meninas e mulheres, assim como também sejam um caminho para que a diversidade se faça constante na Ciência Química Mundial. Em 06 de outubro de 2021 foi anunciado o resultado do Prêmio Nobel de Química e dois homens foram laureados. De todas as categorias anunciadas do Prêmio Nobel de 2021, apenas uma mulher foi agraciada com a honraria, na área da Paz. A representatividade feminina continuou pequena em mais uma edição da premiação.
AGRADECIMENTOS As autoras agradecem ao M. J. Machado (Licenciando em Física/UFPR) pelas ilustrações e à toda equipe do Projeto de Extensão "Meninas e Mulheres nas Ciências" da UFPR. Ao CNPq, CAPES, Fundação Araucária, Pró-Reitoria de Extensão e Cultura, Departamento de Química, Departamento de Física, Setor de Ciências Exatas da UFPR, pelo apoio, fomento e pelas bolsas concedidas.
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