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15:42, qui nov 21

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Educação


Desvendando um caso: Quando estudantes se tornam personagens de uma história na disciplina de química orgânica experimental
Unraveling a case: When students become characters of a fictional narrative in the discipline of experimental organic chemistry

Amanda Silva de Miranda; Roberta Guimarães Corrêa; Ana Luiza de Quadros*

Departamento de Química, Instituto de Ciências Exatas, Universidade Federal de Minas Gerais, 31270-901, Belo Horizonte - MG, Brasil

Recebido em: 31/08/2021
Aceito em: 14/02/2022
Publicado em: 05/04/2022

Endereço para correspondência

*e-mail: aquadros@qui.ufmg.br

RESUMO

Being part of the Pharmacy course curriculum, Organic Chemistry emphasizes the fundamentals of Organic Synthesis, reaction mechanisms, as well as the methods for separation, purification and identification of organic compounds. However, students do not always realize the direct association between this knowledge and their future working field. In an effort to make such association more explicit, we proposed a case of possible intoxication, inviting students of Experimental Organic Chemistry to play the role of laboratory workers and seek evidence to resolve the case within a one-week period. By analyzing the proposed resolution, we verified that the students sought information about the substances involved, employed techniques studied in the discipline, and indicated possible poisoning culprits. Despite some limitations, the students involvement with the case and the search for information enlightened the direct relationship between the techniques addressed in the discipline and their future activity.

Palavras-chave: intoxication; clinical laboratory techniques; Organic Chemistry; Pharmacy; storytelling.

INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas tem se observado a tendência à consolidação de um novo padrão de relacionamento entre o mundo acadêmico e a esfera industrial, principalmente em função do caráter estratégico dos avanços em determinados campos do conhecimento técnico-científico.1 Essa tendência engloba, como não poderia deixar de ser, a relação entre a universidade e a indústria farmacêutica. Dessa forma, o desenvolvimento de áreas mais próximas da aplicação, chamadas de áreas de "fronteira",2 sempre expandiu também a Ciência básica.

No Ensino Superior, uma tendência similar tem crescido mesmo em disciplinas consideradas "menos aplicadas", como é o caso das disciplinas do campo das Ciências da Natureza ofertadas para cursos que possuem uma ligação mais direta com a indústria. Propostas de ensino envolvendo a relação entre o conhecimento específico das Ciências da Natureza e o campo futuro de trabalho dos graduandos de inúmeros cursos têm sido cada vez mais compartilhadas. A Química traz consigo uma gama de conhecimentos relacionados à constituição, às transformações e às propriedades dos materiais, e na medida em que esse estudo é mais detalhado, aumenta a complexidade e, com isso, há uma tendência de se afastar do contexto. Maton,3,4 ao desenvolver a Teoria dos Códigos de Legitimação (LCT), trata da densidade semântica e da gravidade semântica. A Densidade Semântica caracteriza-se pelo grau de condensação dos significados dentro das práticas socioculturais. Assim, quanto mais conceitos estiverem presentes em um momento do discurso em sala de aula, maior é a densidade semântica. A Gravidade Semântica está relacionada ao quanto um significado está dependente do contexto. Portanto, essa gravidade será mais forte quando, no discurso em sala de aula, os participantes estiverem tratando de particularidades concretas de um caso específico, presentes no contexto. Ao passar para generalizações e abstrações essa gravidade enfraquece. Baseados nos estudos envolvendo a Teoria dos Códigos de Legitimação,3 afirmamos que o grau de detalhamento da Química estudada no Ensino Superior leva, em grande parte das disciplinas, a um enfraquecimento da gravidade semântica, por diminuir a relação com o contexto.

Ao tratar da trajetória de carreira de professores do Ensino Superior, pesquisadores5 têm afirmado que nessa arena extremamente especializada o professor se torna "bom" em alguma área e confiante em trabalhar com aquele conhecimento. No entanto, a era da informação exige um recuo, para poder "ver" o contexto mais amplo. E nesse recuo, o professor é chamado a expandir tanto a visão quanto as colaborações. Com isso, ao ensinar Química Orgânica para futuros farmacêuticos, entendemos que não é suficiente apenas apresentar o conhecimento especializado, mas mostrar a relação desse conhecimento com o campo de trabalho futuro dos estudantes, fortalecendo, assim, a gravidade semântica.

No caso da indústria farmacêutica, a obtenção de fármacos, ou seja, os princípios ativos de medicamentos, ocorre frequentemente por meio de síntese orgânica, envolvendo transformações de compostos mais simples e isolamento, purificação e identificação de intermediários sintéticos durante todo o processo. A Química Orgânica, ao fazer parte da grade curricular do curso de Farmácia, enfatiza os fundamentos da síntese orgânica, os mecanismos de reações, os métodos de separação e purificação de compostos orgânicos (ex. cromatografia, destilação e extração) e os de determinação estrutural desses compostos (ex. espectroscopia no infravermelho e no ultravioleta, espectrometria de massas e espectroscopia por ressonância magnética nuclear de hidrogênio e carbono). Assim, essa disciplina proporciona conhecimento básico que visa auxiliar os estudantes a entenderem os processos envolvidos na produção de fármacos, e se constitui, ainda, em um conhecimento fundamental para outras disciplinas abordadas ao longo do curso como, por exemplo, as disciplinas Química Farmacêutica e Medicinal e a Farmacognosia, que, entre outros assuntos, tratam de propriedades físico-químicas de fármacos, métodos de desenvolvimento de fármacos e da obtenção e identificação de produtos naturais.6

Este trabalho foi desenvolvido com o objetivo de analisar o envolvimento e as estratégias utilizadas por graduandos em Farmácia que frequentavam a disciplina Química Orgânica Experimental na resolução de um caso" fictício construído pela professora, com a intenção de que eles percebessem mais enfaticamente a importância de técnicas trabalhadas na disciplina.

Em que nos baseamos para o uso de um "caso" ou história fictícia?

Nossa experiência com "ensinar Química" tem mostrado que a Química tem uma reputação indevida entre o público leigo e, muitas vezes, entre os estudantes. Essa reputação ruim é percebida quando produtos químicos são considerados perigosos, disciplinas de Química são consideradas de pouca importância para a formação e a Ciência Química é vista como inacessível ou acessível apenas para alguns. Para desmistificar essa Ciência, algumas propostas de ensino ou de divulgação científica têm surgido, tanto para serem usadas em sala de aula quanto junto à sociedade em geral.

Jerome Bruner (1915-2016), psicólogo estadunidense, desenvolveu importantes estudos no campo da psicologia cognitiva. Entre eles, destacam-se os estudos que envolvem dois modos de linguagem:7,8 o modo paradigmático e o modo narrativo. O modo paradigmático é característico da comunidade científica - artigos, livros, comunicações científicas etc. - e geralmente predomina nos materiais didáticos usados em sala de aula, principalmente os livros. Trata-se de uma linguagem mais estruturada cuja função é a categorização e as operações pelas quais as categorias são estabelecidas, representadas e idealizadas entre si, a fim de construir um sistema que destaca a generalidade das coisas, levanta relações causais que podem ser consideradas verdades universais e que podem ser verificadas. No entanto, os estudantes não se utilizam dessa linguagem formal nas interações diárias que realizam.

O modo narrativo, muito utilizado na vida cotidiana, é aquele que lida com as intenções humanas e suas vicissitudes. A narração terá uma sequência intencional de fatos, será verossímil (não necessariamente real) e encontrará um estado que atenue ou torne compreensível um afastamento do padrão cultural canônico.9 Para Jerome Bruner,9 os modos narrativo e paradigmático podem conviver em harmonia e se complementar. Segundo Rodrigues e Quadros,10 "se, por um lado, o modo paradigmático busca formar teorias que se ajustem a fatos observados, por outro, nós costumamos conceber um mundo no qual caibam as histórias que contamos a seu respeito".

Em 1995, Roald Hoffmann, laureado com o Nobel de Química de 1981, lançou o livro The Same and Not the Same,11 que foi traduzido para o português com o nome "O Mesmo e o não Mesmo".12 Nesse livro a linguagem narrativa é usada para "contar histórias" que envolvem a Química. Esse pesquisador argumenta convincentemente que a Química é interessante, tanto para seus praticantes quanto para os consumidores de seus produtos. Ao longo de vários capítulos, Hoffmann12 vai contando histórias da Ciência Química que mostram as tensões inerentes à produção científica e suas dualidades ou ambivalências. De forma a demonstrar o que quer dizer com "o mesmo e o não mesmo" ele usa, por exemplo, algumas moléculas constituídas por uma mistura de isótopos, situação em que se fazem presentes dualidades tais como síntese/análise, risco/benefício, natural/artificial, artístico/científico, real/ideal, entre inúmeras outras. Em uma resenha dessa obra13 há a afirmação de que se trata de um livro espirituoso, profundo e brilhante, podendo ser considerado como um banquete para os olhos e para a mente, uma vez que captura a emoção da Química e apresenta seu autor como um artista comprometido com ela e que aprecia plenamente sua arte.

A linguagem narrativa usada por Hoffmann,12 conjugada com uma escolha meticulosa de "casos" a serem narrados tornou esse livro uma maneira agradável de conhecer a Química e de conhecer também as várias nuances envolvidas no trabalho dos cientistas. Ainda que façamos uma pequena ressalva à postura de Hoffmann em relação ao Nobel de Química dado a Fritz Haber, entendemos que o autor traz uma Química real, agradável, acessível, cuja leitura flui de forma agradável. São textos que podem ser usados em sala de aula e que auxiliam na construção de uma visão mais ampla da Química. Hoffmann14 afirma que contar histórias é um ato antigo e profundamente humano. Essas histórias, segundo ele, são tesouros compartilhados entre a Ciência e as Artes e destas com a humanidade.

Sibrina N. Collins é defensora da estratégia de "contar histórias" nas aulas de Química, principalmente no Ensino Superior. Uma das histórias sugeridas por essa pesquisadora15 é a de Alice Augusta Ball - a primeira mulher e primeira afro-americana a se tornar professora no College of Hawaii, hoje Universidade do Havaí - que desenvolveu o primeiro tratamento viável para a hanseníase ou mal de Hansen (chamada, na época, de lepra), uma enfermidade bacteriana com grande impacto social. No início do século XX o tratamento era à base de óleo de semente de chaulmoogra, na forma de injeção, que era espesso e praticamente insolúvel em água. Como resultado, a injeção era extremamente dolorosa. Ball realizou a saponificação de ésteres contidos no óleo e converteu os sais de ácidos carboxílicos obtidos em ésteres etílicos, o que resultou em um líquido mais solúvel e mais facilmente aplicável que o óleo original, facilitando o uso do medicamento contra a hanseníase.15,16 Com histórias desse tipo, nesse caso contada antes do estudo dos ésteres, Collins15 defende que os estudantes poderão compreender melhor sua importância e ter mais motivação para superar barreiras na vida.

Essa pesquisadora15 se vale de outros exemplos de histórias que podem ser usadas em aulas de Química para mostrar aos estudantes as inúmeras contribuições de pessoas que se dedicaram a pesquisar e a resolver problemas. Ela cita, entre eles, o filme "Pantera Negra" e conta como construiu uma aula na qual os estudantes foram desafiados a inserir o elemento ficcional vibranium na Tabela Periódica, justificando o local escolhido para fazer essa inserção. Collins15 defende que contar histórias convincentes para os estudantes é uma forma eficaz de envolvê-los nas aulas e que essas histórias tanto podem ser reais quanto fictícias.

Um outro exemplo de importância dada a uma história advém do campo do Direito.17 Ao analisar as histórias contadas a jurados em julgamentos judiciais, tanto pela promotoria quanto pela defesa, pesquisadores17 demonstram que as histórias são fundamentais nos contextos de tomada de decisão do júri e que os fatos brutos acabam sendo secundários em relação à estrutura da história, uma vez que os jurados tendem a ser envolvidos por boas narrativas. Segundo eles, em condições em que as estratégias de construção de histórias eram mais prováveis de serem usadas, a completude da história exerceu uma maior influência nas decisões. Com isso, eles não estão afirmando que os fatos não são importantes, mas que a "história narrada" também é importante, especialmente quando a realidade é complicada e ambígua.

Considerando que nas aulas de Química Orgânica do Ensino Superior há uma predominância de linguagem paradigmática, a professora inseriu uma narrativa escrita na forma de história fictícia envolvendo uma situação que os estudantes foram chamados a resolver. Pesquisadores18 estabelecem uma diferença entre narrativa e história. Eles chamam a história de fenômeno e a narrativa de método usado para investigar ou descrever a história. Neste trabalho optamos por considerar essa história, narrada de forma escrita, como um "caso", que foi usado com a intenção de aproximar as técnicas exploradas na disciplina de Química Orgânica Experimental com o campo de trabalho futuro dos graduandos. Não consideramos a experiência aqui relatada como "estudo de caso" em função de não atender a algumas características descritas por Herreid19 ou por Queiroz,20 uma vez que o "caso" foi a etapa final da aula. Por isso a chamamos de "caso", no sentido literal da palavra.21

A linguagem narrativa foi explorada em um curso para professores de Ciências e Biologia,22 quando esses professores receberam uma crônica inacabada, envolvendo uma mulher pobre que vivia em uma área que fora desapropriada para a construção de uma hidrelétrica. Esses professores foram convidados a finalizar essa crônica e, para isso, usaram a linguagem narrativa. Os pesquisadores ressaltam que a literatura assume um caráter cultural ao dialogar com os aspectos científicos do ensino de Ciências e, segundo eles, a atividade potencializou a discussão, a reflexão e a crítica.

A linguagem é um meio de exteriorizar o pensamento e esse, por sua vez, é o modo de organizar tanto a percepção que temos do mundo quanto a nossa ação.23 O pensamento e a linguagem são, portanto, fenômenos de difícil - senão impossível - separação. A narrativa, na perspectiva de Bruner,8 opera como um instrumento do pensamento ao construir a realidade. No caso deste trabalho, a linguagem narrativa foi usada para construir uma história fictícia cujo desenrolar dependeu da leitura feita por cada um dos graduandos participantes. Partimos da hipótese de que esses estudantes poderiam entender melhor a importância das técnicas estudadas durante as aulas, a medida que as utilizassem para buscar evidências que permitissem à eles argumentar adequadamente sobre o caso fictício.

 

METODOLOGIA

Ao desenvolver este trabalho procuramos inserir, em uma disciplina experimental, uma atividade que tivesse potencial para envolver mais o estudante e para que ele pudesse usar sua criatividade na resolução de um "caso" e, com isso, criar um ambiente propício para que ele percebesse a importância/utilidade das técnicas estudadas ao longo da disciplina e a relação delas com o seu campo de trabalho futuro. Acreditamos que a resolução de um caso fictício traz para a sala de aula uma forma não convencional de aprendizagem e auxilia no desenvolvimento de habilidades.

A estratégia de utilização de "casos" foi empregada em uma turma de 13 estudantes na disciplina "Química Orgânica Experimental F", que integra o currículo do curso de Farmácia da UFMG. A disciplina, com 60 horas, é ministrada a estudantes do período diurno que já cursaram a disciplina Química Orgânica I e que, idealmente, estejam no quarto período do curso e cursando a disciplina Química Orgânica II.

A disciplina "Química Orgânica Experimental" é dividida, quanto ao conteúdo ministrado, em dois blocos. O primeiro bloco contempla seis aulas práticas que envolvem técnicas básicas frequentemente utilizadas em laboratórios de Química Orgânica, a saber: cromatografia em camada delgada, cromatografia em coluna, extração sólido-líquido e líquido-líquido, destilação simples, destilação fracionada e destilação por arraste a vapor. No segundo bloco há um conjunto de aulas nas quais são realizadas reações orgânicas e isolamento de produtos que fazem parte de uma mesma rota sintética para a obtenção de corantes azoicos de interesse industrial.

Após cada aula do primeiro bloco foi proposto aos estudantes a resolução de um caso fictício no qual estariam envolvidos conceitos e técnicas abordadas nas aulas, em substituição ao relatório de aulas práticas que tradicionalmente é feito nas disciplinas de caráter prático. Esses "casos" foram entregues ao final da aula prática, via Moodle, e os estudantes tiveram o prazo de sete dias para resolvê-los. Foi recomendado aos estudantes que buscassem informações em outras fontes que não o material utilizado nas aulas e também que discutissem os "casos" com colegas e professores. Embora pudessem discutir o "caso" entre si, a resolução deveria ser entregue individualmente. Com a atividade o estudante poderia acumular até seis pontos (um por "caso" resolvido) de um total de cem pontos da disciplina. Para aferir essa pontuação, o desempenho na atividade foi avaliado considerando-se a plausibilidade das hipóteses apresentadas em sua resolução, ainda que a resposta apresentada para cada "caso" não correspondesse completamente à resposta esperada.

A estratégia de uso de "casos" teve a intenção de auxiliar os estudantes na compreensão das técnicas usadas durante as aulas e estimular o interesse em torno delas, uma vez que eles poderiam, facilmente, associar a técnica ao seu campo de trabalho futuro. Esses "casos" consistiram em breves histórias nas quais um dos personagens precisava executar uma tarefa para desvendar o que havia acontecido na história e, para isso, o uso de técnicas abordadas em aula seria fundamental. O leitor - o estudante da disciplina - era, ao final da história, convidado a participar do enredo, atuando como o laboratorista responsável pela investigação. A resolução dos "casos" ou histórias, que usaram uma linguagem narrativa, tende a provocar novos insights e conversas, permeados pelo conhecimento/uso de técnicas de laboratório.

Para cada um dos "casos" foi incluído um apêndice no qual constava uma lista de vidrarias, reagentes e equipamentos disponíveis em um laboratório fictício e, por vezes, alguns resultados experimentais obtidos por algum personagem, simulando uma situação na qual os recursos para a resolução do problema fossem apenas aqueles disponíveis na lista, embora nem todos precisassem ser utilizados, assemelhando-se a uma situação real.

Para este trabalho escolhemos o "caso 3", proposto após a aula que tratava da extração de cafeína do pó de guaraná. Nessa aula, os estudantes fizeram a extração da cafeína de uma amostra de guaraná em pó usando duas técnicas: a) extração sólido-líquido, feita pela adição de água quente à amostra (pó de guaraná); extração da cafeína, então presente na água, com CHCl3; e evaporação do solvente com o auxílio de um rotaevaporador, para a obtenção da cafeína como um sólido branco; b) cromatografia em camada delgada, usando o sólido obtido no processo anterior e comparando o resultado com um padrão de cafeína. Essas técnicas são frequentemente utilizadas em laboratório de Química Orgânica para a obtenção e purificação de compostos orgânicos, incluindo compostos de interesse farmacológico. O estudo dessas técnicas faz parte da formação acadêmica de químicos e farmacêuticos, sendo especialmente relevante para profissionais que atuam na indústria de Química Fina e em laboratórios de análise forense.

Para construir o "caso" a ser solucionado pelos estudantes foram usados elementos relacionados ao campo da Farmácia, com a intenção de estimular o interesse dos estudantes pela atividade e auxiliá-los a estabelecer relações entre o conteúdo desenvolvido nas aulas de Química Orgânica Experimental e a atividade futura. Assim, essa narrativa, apesar de ser inserida posteriormente ao estudo das técnicas de extração e de CCD, poderia agir como ponto de partida para orientar os estudantes na busca por informações úteis ou até mesmo imprescindíveis para a resolução do "caso", de modo a propiciar-lhes contato com temas abordados em outras disciplinas do curso, algumas ainda a serem cursadas em períodos posteriores. A possibilidade de intoxicação e/ou envenenamento presente na narrativa levaria o estudante às hipóteses de substâncias potencialmente tóxicas e aos processos de extração de substâncias contidas na fonte do possível envenenamento e de sua identificação.

O "caso 3" trazia a história de um magnata que se sentiu subitamente mal após beber um chá de "feijões de Calabar" com limão, na companhia de familiares. Esse magnata fazia uso contínuo de um medicamento à base de digoxina para controlar uma doença cardíaca. Um detetive foi chamado para investigar o caso, uma vez que parecia se tratar de envenenamento. O estudante do curso de Farmácia deveria indicar o caminho de investigação para esse detetive, elaborando hipóteses e apontando suspeitos entre os personagens: Josephine, a filha que adquiriu os feijões de Calabar; Mary, a copeira que preparou o chá; James, o mordomo que tinha acesso aos medicamentos utilizados pela vítima; Helen, a governanta, que administrava a digoxina ao magnata; Peter, o sobrinho, que era o enfermeiro-chefe de um hospital, além de outras duas pessoas que estiveram na casa. Dessa maneira, a resolução esperada envolvia tanto buscar informações sobre a planta utilizada na preparação do chá e sobre o medicamento usado pelo personagem, quanto explicar como extrair substâncias do chá e identificá-las por cromatografia em camada delgada utilizando padrões de alcaloides.

De posse dos textos entregues pelos estudantes, fizemos a leitura de cada um deles procurando identificar os pontos de interesse. Construímos uma tabela usando o excel, identificando, para cada um dos estudantes, quem eles estavam apontando como possíveis culpados no caso de envenenamento e de quais técnicas eles estavam se apropriando para realizar a investigação em laboratório. Após essa análise inicial, buscamos identificar como os estudantes descreveram o uso de determinada técnica, ou seja, como a utilizaram em um contexto diferente daquele em que ela foi usada em sala de aula. Esse último ponto analisado exigiu várias releituras no sentido de entender o caminho proposto pelo estudante e a possível contribuição para desvendar o enredo da história, bem como o entendimento desse estudante em relação às técnicas utilizadas.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Esse "caso" que destacamos foi o terceiro de uma série de seis "casos" apresentados durante a disciplina e sua resolução foi proposta por dez estudantes, dos 13 matriculados na disciplina. Mesmo sendo um 'caso' complexo e de ter sido atribuído apenas um ponto para a resolução, a adesão foi significativa, pois representou mais de 75%. Optamos por dividir essa parte do texto em quatro partes, sendo as duas primeiras um relato do envolvimento dos estudantes e as outras duas a análise mais específica da relação com as técnicas trabalhadas em aula, feita pelos estudantes.

Em que se fundamentaram os estudantes?

Com uma leitura rápida dos textos entregues foi possível notar que nove estudantes fizeram descrição das substâncias presentes no medicamento e no Feijão de Calabar, principalmente da fisostigmina e da digoxina, identificando as características dessas substâncias, a estrutura química e inserindo imagens dessas estruturas no texto entregue. Por se tratar de informações científicas, e pelo fato de colocarem referências de livros e artigos, acreditamos que eles realizaram busca na literatura da área para conhecer melhor essas substâncias, seja por meio de livros especializados, ou usando a internet.

A fisostigmina, um alcaloide presente na semente do Feijão de Calabar, recebeu esse nome em função do nome científico Physostigma venenosum dado à planta mãe.24 Trata-se de uma planta trepadeira que cresce em quantidade na região do delta do rio Calabar, na Nigéria. Esse alcaloide age no sistema nervoso, inibindo a enzima acetilcolinesterase. Durante um impulso nervoso os neurônios liberam a acetilcolina, que, no entanto, deve ser rapidamente retirada do espaço entre os neurônios, de forma a permitir que um novo impulso nervoso seja transmitido. A remoção eficaz da acetilcolina é feita, em grande parte, pela enzima acetilcolinesterase, que catalisa a reação de hidrólise desse neurotransmissor. Doses excessivas de substâncias capazes de inibir a acetilcolinesterase, como a fisostigmina, levam à exacerbação das ações do neurotransmissor acetilcolina, podendo resultar em convulsões, aumento do peristaltismo do ureter, bradicardia, queda de pressão sanguínea e dificuldades na respiração, entre outros efeitos, e até mesmo levar à morte.25

A digoxina é um fármaco utilizado no tratamento de problemas cardíacos, também proveniente de uma planta. Esse fármaco aumenta a força de contração cardíaca e melhora o ritmo do coração, sendo indicada para pessoas que sofrem de insuficiência cardíaca congestiva ou de arritmias. A digoxina, porém, apresenta um índice terapêutico estreito, ou seja, é pequena a diferença entre as concentrações plasmáticas requeridas para o efeito terapêutico desse fármaco e a concentração plasmática mínima para que ocorra intoxicação. Em outras palavras, a dose terapêutica é próxima da dose tóxica, o que aumenta a probabilidade de intoxicações, acidentais ou não.

Os estudantes buscaram informações sobre os feijões de Calabar, o que lhes levou à hipótese de envenenamento por fisostigmina, a qual foi corroborada pela suspeita de um dos personagens de que o magnata (Sir John) apresentava um quadro de síndrome colinérgica, outro termo que, por estar relacionado à área médica, provavelmente suscitou a curiosidade dos estudantes e os levou à busca por informações adicionais. O fato de, na história apresentada aos estudantes, a personagem Josephine, graduada em Química, ter orientado a copeira a macerar os feijões de Calabar com água morna e limão se mostrou como um argumento em favor da hipótese de envenenamento intencional, uma vez que a fisostigmina apresenta um grupo amina em sua estrutura e a acidificação do meio aumenta a proporção de moléculas em sua forma catiônica, mais hidrossolúvel. Essa acidificação facilitaria a extração da substância do material vegetal para o meio aquoso.

Os estudantes também fizeram busca sobre o fármaco digoxina. O fato de a substância ter estreito índice terapêutico também reforçou a hipótese de intoxicação por superdosagem. Outra hipótese que poderia ter sido considerada pelos estudantes, se eles tivessem fornecido mais atenção ao dado contido no apêndice do 'caso', relativo ao personagem que trabalhava como enfermeiro em um hospital, o que lhe daria acesso facilitado a substâncias como morfina e atropina, que poderiam ter sido adicionadas propositalmente à bebida para envenenar a vítima. Essas substâncias estão listadas no anexo como padrões, os quais poderiam ser utilizados para a identificação de substâncias contidas no chá, usando a técnica de cromatografia em camada delgada. O estudante poderia, também, suspeitar de envenenamento por estricnina, um composto presente em raticidas e também listado no anexo como substância-padrão. A presença desses padrões tinha o intuito de facilitar ao estudante a proposição de um teste com os recursos disponíveis. No entanto, essa última hipótese não foi considerada por nenhum deles.

Para testar qualquer uma das hipóteses mencionadas acima, o estudante deveria sugerir a realização de um processo de extração das substâncias do chá, utilizando para isso um solvente orgânico, como clorofórmio (solvente utilizado em aula para prática de extração de cafeína, já que a substância a ser extraída encontra-se no chá, um meio aquoso). A substância ou mistura de substâncias obtida deveria ser analisada por cromatografia em camada delgada com os padrões de substâncias suspeitas. A coincidência de fator de retenção de substâncias extraídas do chá com as substâncias-padrão seria um indício de identidade. Posteriormente, seria possível fazer um teste químico de identificação de função orgânica para se obter evidência adicional que corroborasse a identidade da substância extraída, sugerida pela cromatografia delgada. Embora os resultados desses experimentos não sejam incontestes, eles fornecem evidências favoráveis ou contrárias às hipóteses aventadas. A fisostigmina e a digoxina foram, portanto, as opções escolhidas pelos estudantes para a investigação.

O envolvimento dos estudantes com a história

Nesta parte da análise tínhamos a intenção de entender o potencial dessa experiência para envolver os estudantes, embora tivéssemos ciência de que isso se configura mais como um relato de experiência. Observamos que todos os estudantes consideram o súbito mal estar de sir John como uma tentativa de assassinato, sendo que nove dos dez participantes apresentaram um ou mais suspeitos. Apenas um dos participantes se limitou a descrever as técnicas a serem usadas para identificar um possível envenenamento, sem apontar quem poderia estar envolvido.

Cinco participantes apontaram Josephine, a filha mais velha de sir John, como culpada, levando em conta sua formação em Química, o seu conhecimento de Botânica e o fato de ter viajado pouco tempo antes para a África. Dois estudantes apontaram Josephine e Peter, sob a alegação de que mantinham um caso e que ambos tinham um relacionamento ruim com sir John, levando em conta, ainda, que teriam usado seus conhecimentos para cometer o crime. Um dos participantes afirmou serem Josephine, Peter e a copeira Mary os culpados. Nesse caso, Mary teria sido convencida por Peter a participar e ganharia parte do dinheiro da herança. Finalmente, um dos estudantes, após apontar vários indícios que levavam à Josephine como culpada, mudou a versão da história, ao dizer:

Porém. Maureen não gosta de Josephine, e ela, melhor que Josephine, saberia dos efeitos fisiopatológicos do Feijão de Calabar. Há também o fato de que foi ela quem arrumou amostras da semente utilizada. Enquanto todos se preocupavam com John, ela permaneceu tranquila e chamou o detetive. Se Josephine fosse incriminada (já que seria a principal suspeita), ela pagaria por seus desvios de conduta. Inclusive, os sinais para overdose de Digoxina são bem similares aos de eresina. Ela nem precisaria se envolver com botânica. Eu aposto nessa! (Estudante 3)

Como podemos perceber nesse fragmento, ele afirmou ser Maureen, a filha mais nova de sir John, a culpada pelo possível envenenamento. Nessa "acusação" ele afirma que Maureen planejou tudo para que a culpa recaísse sobre Josephine e, com isso, a filha mais jovem seria a única herdeira. Ao propor essa versão, ele teve um desempenho diferente dos demais, agindo como o famoso detetive Hercule Poirot, personagem criado por Agatha Christie,26 ou como o detetive Auguste Dupin, criado por Edgar Allan Poe.27 Ao falarmos desses dois detetives, não podemos deixar de acrescentar, ainda, o detetive Sherlock Holmes, que se tornou mais famoso que o seu próprio criador, o escritor Arthur Conan Doyle. Esses personagens literários auxiliaram a criar certo fascínio por solucionar mistérios, sempre envolvidos em histórias nas quais as soluções dos "mistérios" nunca eram triviais. O Estudante 3 apontou um desenrolar que também não pode ser considerado como trivial.

Alguns personagens do "caso" entregue aos estudantes foram inspirados na produção literária do escritor belga George Simenon. O detetive Jules, por exemplo, faz referência a Jules Maigret, personagem presente em cerca de 75 romances28 e histórias curtas, com uma legião de admiradores em todo o mundo. Essa literatura policial produzida por Simenon fez com que Jules Maigret se tornasse mais um célebre detetive, ao lado dos já citados Auguste Dupin, Sherlock Holmes e Hercule Poirot. Outros personagens foram inspirados em farmacologistas, retirados de livros de Farmacologia29,30 amplamente utilizados no curso de Farmácia da UFMG.

Contrariando o que se espera do imaginário de detetive criado pelos personagens citados, um grupo considerável de participantes se limitou a descrever o que poderia ser visto na cena: a personagem Josephine, que trouxe o chá e o cultivou no quintal da família, que tinha formação em Química e conhecimentos de Botânica, como principal suspeita. Na análise de oito deles essas informações seriam suficientes para incriminá-la, se porventura os exames de laboratório mostrassem a presença de alguma substância "tóxica" no chá de sir John. O único participante que "acusou" Maureen - a filha mais nova - afirmando que a sua intenção seria exatamente de culpar Josephine, fez seu julgamento usando estratégias dos personagens criados para atuar como detetives. Ressaltamos, no entanto, que, como se trata de um "caso" a ser resolvido, não há uma solução "correta" e que, portanto, os estudantes apresentaram a sua própria narrativa.

As resoluções apresentadas mostraram que, em maior ou menor grau, os estudantes exercitaram a criatividade, associando a fantasia, própria de uma história fictícia, às técnicas presentes na disciplina que cursavam (analisadas a seguir), assim como aconteceu em pesquisa citada.22 A literatura policial, envolvendo detetives, assume aqui também um caráter cultural na medida em que dialoga com os aspectos científicos de uma disciplina ofertada na graduação.

As técnicas citadas

Mesmo sendo um caso de envenenamento, o fato de ser proposital ou acidental poderia ser motivo de discussão, o que não aconteceu. As etapas de investigação descritas visavam identificar se o chá consumido por sir John tinha o alcaloide fisostigmina - oriundo das sementes de Feijão de Calabar - ou vestígios de digoxina, princípio ativo do medicamento que ele tomava regularmente e que, em excesso, poderia intoxicá-lo, ou mesmo se havia vestígios de alcaloides de acesso restrito, como a morfina ou de alcaloides utilizados como veneno, a exemplo da estricnina. As etapas indicadas pelos estudantes para investigar o que poderia ter acontecido envolveram principalmente a técnica de extração, a cromatografia em camada delgada (CCD), e, eventualmente, ensaios químicos para identificação de funções orgânicas.

Considerando que, na história presente no "caso 3", o detetive Jules levou ao laboratório especializado em síntese e estudo de alcaloides, de sua amiga Jane, o material coletado na residência de Sir John - o resto do chá consumido por Sir John, as sementes de Feijão de Calabar e também dois comprimidos de digoxina -, o estudante deveria assumir o papel de auxiliar de laboratório e realizar a investigação necessária. No Quadro 1 sintetizamos as técnicas indicadas pelos estudantes para solução do "caso", presentes no texto entregue à professora.

 

 

Embora apontar possíveis culpados ou responsáveis fizesse parte da atividade, seu principal objetivo envolvia encontrar evidências que poderiam auxiliar na elucidação do "caso", ou seja, se ocorreu ou não o envenenamento e qual substância teria sido usada. Assim, dirigimos a atenção para os métodos propostos pelos estudantes para "provar" o envenenamento. Como podemos perceber no Quadro 1, nove dos dez estudantes abordaram em suas respostas a técnica de extração, tema da aula prática que antecedeu a proposição do "caso", e todos indicaram a técnica de cromatografia em camada delgada, também explorada nessa aula. Um número menor de respostas (quatro) contemplou também a utilização de testes químicos para a identificação de funções orgânicas. Porém, o entendimento dessas técnicas vai além de citá-las como caminho para investigar um possível envenenamento, o que nos leva a análise mais específica de como essas técnicas foram usadas.

O uso da técnica no contexto da investigação

Consideramos que o entendimento de uma determinada técnica poderia ser melhor percebido pelo uso que os estudantes fariam dessa técnica em um contexto diferente daquele em que ela foi trabalhada em sala de aula. Ao analisarmos os textos entregues, percebemos que quatro estudantes que mencionaram ou descreveram a técnica de extração propuseram extrair substâncias dos feijões de Calabar, e não do chá ingerido pela vítima. Para exemplificar, trazemos um fragmento do texto produzido pelo Estudante 6. Após descrever o Feijão de Calabar, a ação da enzima acetilcolinesterase no corpo e o efeito antagonista do alcaloide fisostigmina presente nas sementes de Feijão de Calabar, ele afirmou:

Para a confirmação da suspeita da presença dessa substância no chá dado a sir John será necessário fazer a extração desse alcaloide contido nas sementes. Para isso, será necessário macerar as sementes de Feijão de Calabar utilizando um almofariz e pistilo. Após esse procedimento, será necessário colocar a mistura em um béquer, adicionar água destilada e pequena quantidade de bicarbonato de sódio... (E6)

Todo o processo posterior descrito por esse estudante (extração, CCD e testes químicos) segue os padrões geralmente usados em laboratório. Porém, a investigação deveria ser feita a partir da substância que sir John ingeriu, ou seja, o chá feito a partir desses feijões.

É possível que os quatro estudantes que fizeram a extração a partir de feijões tenham recorrido a uma analogia com o experimento realizado em aula, que consistiu na extração de cafeína a partir de uma fonte natural, em detrimento de uma interpretação, de modo independente, do contexto apresentado pelo "caso" e de uma melhor compreensão dos fundamentos da técnica, que permitisse o reconhecimento de possibilidades de suas aplicações além daquela apresentada na aula. Consideramos, nessa análise, os estudos de Vigotski (2009). Segundo esse pesquisador, a transferência de um conhecimento ou de um conceito para outro contexto é uma tarefa mais complexa do que o uso de um conceito na situação concreta na qual ele foi elaborado. Essa transferência de sentido ou de significado exige pensamentos no plano abstrato. Para esses quatro estudantes, essa abstração não aconteceu, mostrando que a aprendizagem ainda é limitada. Eles não foram capazes de transferir o conhecimento obtido durante as aulas para o contexto da situação fictícia que deveriam resolver. Esse resultado se mostrou importante para a professora da disciplina, uma vez que mostrou essa limitação que, possivelmente, não seria percebida em um relatório mais técnico, que os estudantes costumavam fazer após as aulas experimentais.

Os seis outros estudantes perceberam que a possível intoxicação deveria ser investigada a partir do chá consumido e propuseram a extração das substâncias nele presentes, como pode ser percebido no texto produzido pelo Estudante 2.

No caso em questão temos cerca de 300 mL do chá cuja extração ocorreu em meio ácido, então vamos partir dessa amostra. Temos que transferir parte dessa alíquota para um funil de separação e, em seguida, acrescentar diclorometano com intuito de fazer a separação das fases orgânica e aquosa. Após, homogeneizar o sistema. (Estudante 2)

Após extraírem as substâncias presentes no chá, por meio do uso adequado das técnicas de extração trabalhadas nas aulas, esses estudantes propuseram a técnica de cromatografia em camada delgada, na qual as substâncias extraídas seriam comparadas com um padrão de fisostigmina pura. A digoxina, substância presente nos comprimidos ingeridos por sir John, também seria comparada com os produtos da extração, considerando que um excesso desse medicamento, administrado por meio de sua adição ao chá, poderia ter sido o causador do problema ocorrido com ele. Para esses seis estudantes, que usaram adequadamente as técnicas no contexto da investigação proposta na história, podemos argumentar que a aprendizagem está mais consolidada (Vigotski, 2009).

Para além do uso de técnicas adequadas, é importante destacar que, em alguns casos, as respostas dos estudantes evidenciaram erros conceituais, o que também se mostrou útil para auxiliar a docente a reconhecer assuntos e conceitos cujo entendimento não era satisfatório. Em um dos textos entregues, por exemplo, observamos na resposta do estudante (E4) a seguinte frase: "... basta comparar a solução padrão disponível (no laboratório de Jane) com a recebida na amostra, por meio de CCD, na qual pela "trajetória" da gotícula na camada de sílica seria comparada com o padrão puro de fisostigmina, para comprovação". Esse é um exemplo que demonstra uma compreensão limitada dos fenômenos envolvidos na cromatografia em camada delgada, uma vez que não é a gotícula contendo uma ou mais substâncias que migra ao longo da cromatoplaca, com diferentes velocidades, durante a eluição, mas, sim, as substâncias adsorvidas na fase estacionária.31

Em sala de aula foi realizada a extração de cafeína a partir do pó de guaraná e foi feita a confirmação da identidade da substância obtida por meio de cromatografia em camada delgada. Na atividade aqui relatada eles precisaram reconhecer a técnica de extração como técnica útil para obter substâncias contidas no chá e a cromatografia em camada delgada como método para identificá-las mediante comparação com padrões de substâncias suspeitas. Além disso, tiveram que decidir o que seria extraído, de qual substância/material extrair e como identificar o produto da extração. Observamos que um grupo significativo - seis de dez - conseguiu entender a técnica a ponto de utilizá-la devidamente em um contexto diferente. Os outros quatro estudantes mostraram conhecimento limitado, não conseguindo selecionar devidamente o material a ser usado para fazer a extração. Com isso, argumentamos que o "caso" entregue aos estudantes, além de ser um desafio que os envolveu, permitiu a eles o planejamento de uma atividade na qual essas técnicas foram inseridas e mostrou, com isso, algumas limitações. A atividade também se mostrou importante para a professora, pois além de mostrar essas limitações no entendimento da técnica, também mostrou limitações no uso das mesmas em um contexto diferente daquele apresentado na aula.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao propor essa experiência nos baseamos no fato de que a linguagem, além de exteriorizar o que estamos pensando, é um modo de organizar a percepção que temos do mundo e também a nossa ação sobre este mundo.23 A linguagem narrativa, usada na construção do "caso", foi fundamental para construir uma história fictícia cujo desenrolar foi configurado pelos graduandos participantes. Para resolver o "caso" proposto eles se utilizaram de técnicas usadas durante as aulas práticas, técnicas essas que propiciaram a eles as evidências necessárias para "apontar culpados".

Já havíamos argumentado que a Química Orgânica ensinada a futuros farmacêuticos precisa considerar mais do que o conhecimento especializado. Nessa experiência usando um "caso" a ser resolvido em substituição aos tradicionais "relatórios de aulas práticas", a relação das técnicas usadas durante as aulas com o campo de trabalho futuro dos estudantes nos pareceu ter ficado mais explícita. As técnicas exploradas na disciplina experimental visam proporcionar conhecimento básico para que os estudantes possam entender os processos envolvidos na obtenção, análise e identificação de substâncias orgânicas. No entanto, podemos perceber por meio dos dados, que é preciso ir além da técnica e desenvolver nos estudantes a habilidade de pensar na resolução de um problema usando o conhecimento das disciplinas do campo das Ciências da Natureza, como é o caso da Química Orgânica e, com isso, fortalecer a gravidade semântica.3,4 O fato de quatro estudantes proporem a extração a partir das sementes de Feijão de Calabar é uma evidência disso. Acreditamos, porém, que discutir abertamente essas resoluções propostas pelos estudantes na arena pública da sala de aula poderia trazer resultados ainda melhores, o que será inserido em experiências futuras.

Diante dos resultados, argumentamos que esse tipo de "caso" envolve os estudantes na elaboração de hipóteses (ex: envenenamento; propriedades da digoxina e outras) e as técnicas trabalhadas em sala de aula são reconhecidas como formas de testar essas hipóteses, obtendo evidências que possam corroborá-las ou invalidá-las, podendo levar à formulação de novas hipóteses. Embora a história narrada no "caso" seja fictícia, as estratégias investigativas requeridas para a solução se assemelham a estratégias utilizadas em situações reais ou em situações que possam vir a ser enfrentadas pelos profissionais (o caso da cerveja Backer, por exemplo).32

Parafraseando Collins,15 defendemos que os estudantes tendem a compreender melhor as técnicas ensinadas na disciplina de Química Orgânica Experimental ao enfrentarem um caso que usa uma linguagem narrativa7,8 e que os desafia na resolução de um evento policial. Nesse sentido, destacamos a frase escrita por E3 antes do texto com a resolução do "caso": "Primeiramente, gostaria de frisar que amei a paródia com Hercule Poirot, no personagem de Jules". Essa experiência com um "caso" ou história fictícia, usando uma linguagem narrativa, se contrapõe a um tradicional relatório que usa uma linguagem técnica e, geralmente, impessoal. Os estudantes participantes se colocaram no lugar de um personagem que precisa resolver um problema, resolução essa que só foi possível a partir do uso das técnicas básicas presentes em uma disciplina de Química Orgânica Experimental.

 

MATERIAL SUPLEMENTAR

Informações referentes ao "Caso 3", bem como os materiais de laboratório utilizados nos experimentos estão disponíveis em http://quimicanova.sbq.org.br, em formato pdf, com acesso livre.

 

REFERÊNCIAS

1. Bittencourt, P. F.; Rapini, M. S.; Paranhos, J.; Ensaios FEE, 2012, 33, 453.

2. Chaimovich, H.; Estudos Avançados 2000, 14, 134.

3. Maton, K.; Linguistics and Education 2013, 24, 8.

4. Maton, K. Em Knowledge-building: educational studies in legitimation code theory; Maton, K., Hood, S., Shay, S., eds.; Routledge: New York, 2016, cap. 1.

5. Cropper, A. D.; Luna, R. E.; Mclean, E. L.; Anais da 5th IEEE Integrated STEM Conference, Princeton, United States, 2015.

6. Informações retiradas das ementas das disciplinas de Química Farmacêutica e Medicinal I e Farmacognosia I, da grade curricular do curso de Farmácia da UFMG, disponível em https://www.farmacia.ufmg.br/baixar-ementas/, acessada em março 2022.

7. Bruner, J.; Atos de significação, Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.

8. Bruner, J.; Realidade mental, mundos possíveis, Porto Alegre: Artes Médicas, 2002.

9. Bruner, J.; Critical Inquiry 1991, 18, 1.

10. Rodrigues, A. A. D.; Quadros, A. L.; Quim. Nova Esc. 2018, 40, 126.

11. Hoffmann, R.; The Same and Not the Same, Columbia University Press: New York, 1995.

12. Hoffmann, R.; O mesmo e o Não Mesmo, Ed. UNESP: São Paulo, 2007.

13. Kauffman, G. B.; Kauffman, L. M. J.; Chem. Educ. 1996, 73, 47.

14. Hoffmann, R.; American Scientist 2014, 102, 250.

15. Collins, S. N.; Nat. Chem. 2021, 13, 1.

16. Holmann, H. T.; Arch. Dermatol. Syphilol. 1922, 5, 94.

17. Pennington, N.; Hastie, R. J.; Personality Soc. Psychol. 1992, 62, 189.

18. Connelly, M.; Clandinin, J.; Educational Researcher 1990, 19, 2.

19. Herreid, C. F.; J. Coll. Sci. Teach. 1998, 27, 163.

20. Sá, L. P.; Francisco, C. A.; Queiroz, S. L.; Quim. Nova 2007, 30, 731.

21. Dicionário Michaelis; https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/caso/, acessada em março 2022.

22. Reis Neto, J. A.; Rosa, R. M.; Nascimento Junior, A. F.; Anais do IV ENECiências, Niterói, Brasil, 2014.

23. Vigotski. L. S.; A construção do Pensamento e da Linguagem, 2ª ed., Martins Fontes: São Paulo, 2009.

24. Proudfoot, A.; Toxicol Rev. 2006, 25, 99.

25. Pope, C. N.; Brimijoin, S.; Biochem Pharmacol. 2018, 153, 205.

26. Agatha Christie publicou o primeiro dos 33 romances (e 54 contos) com o personagem Poirot, O misterioso Caso de Styles, em 1921. E o último, Cai o Pano, em 1975. Disponível em https://super.abril.com.br/mundo-estranho/os-10-maiores-detetives-da-ficcao/, acessada em março 2022.

27. Em 1841, com a publicação de Os Assassinatos da Rua Morgue, o escritor Edgar Allan Poe teria criado o primeiro detetive da moderna literatura policial. Disponível em https://super.abril.com.br/mundo-estranho/os-10-maiores-detetives-da-ficcao/, acessada em março 2022.

28. Por exemplo, Maigret and the Wine Merchant (Maigret e o negociante de vinhos) ou Maigret and the Madwoman (A Louca de Maigret), ambos escritos por Georges Simenon.

29. Rang, H. P.; Ritter, J. M.; Flower, R. J.; Henderson G.; Rang & Dale: Farmacologia, 8ª ed., Elsevier: Rio de Janeiro, 2016.

30. Hilal-Dandan, R.; Brunton, L.; Manual de Farmacologia e Terapêutica de Goodman & Gilman, 2ª ed., Ed. AMGH: Porto Alegre, 2014.

31. Pavia, D. L.; Lampman, G. M.; Kriz, G. S.; Engel, R. G.; A Microscale Approach to Organic Laboratory Techniques, 6º ed., Cengage Learning: Boston, 2018.

32. Santos, M. A.; Trabalho de Conclusão de Curso, Universidade Federal de São Paulo, Brasil, 2021.

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