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Assuntos Gerais


Pedro de Alcantara Lisboa, químico brasileiro do século XIX#
Pedro de Alcantara Lisboa, brazilian chemist of the nineteenth century

Carlos A. L. Filgueiras*

Departamento de Química, Universidade Federal de Minas Gerais, 31270-901 Belo Horizonte - MG, Brasil

Recebido em: 04/03/2022
Aceito em: 27/04/2022
Publicado em: 01/06/2022

Endereço para correspondência

*e-mail: calfilgueiras@gmail.com

RESUMO

The subject of the present article is a Brazilian chemist who lived and worked in the nineteenth century and who is hardly known today. He was the first person in Brazil, still in the first half of the nineteenth century, to write chemical equations in the description of actual reactions, and also the first to use equations in order to perform stoichiometric calculations. Although commonplace and trivial today, these were quite innovative in the 1840's. He had a diploma from the École Centrale des Arts et Manufactures of Paris, from which he graduated in 1845 as a "chemical civil engineer". Back in Brazil he continued his career, pioneering different aspects of chemistry in the country, and publishing continuously for a number of years on several chemical topics, as well as in other technical subjects. After what seemed to be a meteoric career, he became disillusioned with many setbacks, mostly political, and took up a different career, as a mathematician.

Palavras-chave: Pedro de Alcantara Lisboa; early use of chemical equations; stoichiometric calculations; Brazilian chemistry in the 1840's.

INTRODUÇÃO

O conhecimento de nosso passado científico e de todas as iniciativas ocorridas para desenvolver a ciência e a tecnologia no Brasil, desde os tempos mais antigos, faz parte de nossa herança científica e cultural. Mesmo que admitamos o que se atribui a Voltaire, que "a história é uma peça que os mortos pregam nos vivos", conhecer o passado nacional é importantíssimo para compreender nossa condição atual, nossas idiossincrasias, defeitos e virtudes, e vislumbrar o que nos promete o futuro, bem como formas possíveis de buscar intervir de uma maneira ou outra no desenvolvimento que possamos desejar, evitando que sejamos vítimas das peças dos antepassados remotos ou próximos, que possam estar à nossa espreita. A História da Ciência é um componente essencial da História da Cultura, e o cultivo de ambas é imprescindível para o entendimento da formação da mentalidade nacional, assim como de possíveis intervenções sobre ela.

Em momento algum pretende-se, nesta introdução, contrapor a História da Ciência no Brasil à História da Ciência no mundo. Trata-se, ao contrário, de perseguir uma certa complementaridade. Não se pode perder de vista a inserção do Brasil na comunidade internacional, sob pena de se cair no paroquialismo. Portanto, fazer História da Ciência no Brasil não permite ignorar o que ocorreu no resto do mundo. Isso talvez possa parecer um pouco repetitivo, mas este equilíbrio é muito importante e precisa ser mantido.

A pessoa e a carreira de Pedro de Alcantara Lisboa, cuja trajetória singular na ciência brasileira de meados do século XIX caiu lamentavelmente no esquecimento, merecem ser revividas. A recuperação de nosso passado científico é uma tarefa ingente, de que há muito a fazer, para que este conhecimento se faça presente, afastando preconceitos de auto-menosprezo nacional. Tanto o auto-menosprezo como seu oposto, o ufanismo, são deletérios em qualquer reconstituição histórica que se queira fazer. Todavia, prevalece em relação a nossa história científica um relativo desprezo, derivado da ignorância e da ainda escassa produção histórica fundamentada em fontes primárias. Este é um campo que só tem sido pesquisado em profundidade nas últimas décadas, mas o qual poderá produzir resultados abundantes e de grande relevância, se bem conduzido de acordo com as melhores práticas da investigação histórica.

A pesquisa do passado científico de países e sociedades periféricas tem hoje um grande interesse em todo o mundo, e deriva da convicção da importância de um conhecimento global na construção do desenvolvimento científico do mundo e das sociedades que o integram.1 É nesse espírito que se considera a necessidade de tornar conhecida a personagem título do presente relato. Sua inserção na ciência brasileira e francesa do século XIX muito nos revela das incipientes iniciativas que se intentavam de desenvolver a ciência no Brasil e a respeito de suas relações com a chamada ciência central daquela época.

 

FORMAÇÃO E VIDA PROFISSIONAL DE PEDRO DE ALCANTARA LISBOA

Pedro de Alcântara Lisboa (Rio de Janeiro, 1821-1885) foi um químico que, como muitos outros brasileiros que se dedicaram às ciências no passado, tombaram no esquecimento. Pedro pertencia a uma família importante na sociedade brasileira do Império, em que muitos de seus membros tiveram papel destacado. Seu pai, José Antonio Lisboa (1777-1850) nasceu no Rio de Janeiro e formou-se em matemática e filosofia na Universidade de Coimbra. Retornando ao Brasil, teve uma carreira distinguida na área de finanças públicas, tendo chegado a Ministro da Fazenda de D. Pedro I. Sua esposa foi Maria Euphrasia Marques Lisboa (1790-1837).2

Dos filhos do casal, dois vieram a ganhar muito destaque: Miguel Maria Lisboa (1809-1881) foi um importante diplomata do Império, tendo servido em vários postos na Europa e nas Américas do Sul e do Norte, vindo a ser agraciado pelo Imperador com o título de Barão de Japurá (Figura 1).3 Sua viúva esteve presente aos últimos momentos da Imperatriz Teresa Cristina no Porto, em dezembro de 1889.

 


Figura 1. Miguel Maria Lisboa, Barão de Japurá, irmão mais velho de Pedro de Alcantara Lisboa. Não foi possível localizar retratos deste último

 

Outro membro destacado da família foi Joaquim Marques Lisboa (1807-1897), tio e cunhado de Miguel e seu irmão Pedro. O tio Joaquim havia nascido na cidade de Rio Grande, para onde a família Marques Lisboa se transferira em 1800. De volta ao Rio, porém, Joaquim Marques Lisboa se casou com uma sobrinha, também chamada Maria Euphrasia, e teve uma carreira destacada na Marinha. D. Pedro II lhe concederia o título de Marquês de Tamandaré. Hoje ele é o Patrono da Marinha do Brasil.

Miguel teve como irmão mais jovem Pedro de Alcantara Lisboa (1821-1885), tema do presente estudo. Todos os pormenores familiares apresentados aqui o foram apenas com o intuito de mostrar o meio social de que provinha a personagem central deste relato.

Pedro logo se mostrou um ótimo estudante e entrou para o recém-fundado Colégio de Pedro II em 1838, ano em que o colégio entrou em funcionamento. O jovem foi aprovado no exame de admissão, mas foi matriculado na série imediatamente inferior à sua classificação, por falta de colegas. Ele continuou por um ano, aparentemente muito decepcionado com a situação.

Ao final do ano foi aprovado em Geografia, Latim, Aritmética, História, Grego, Francês e Desenho, com diversos prêmios por seu desempenho.3 O Dicionário Bibliográfico Brasileiro, de Sacramento Blake, dá muitos dados sobre Pedro Lisboa, relatando suas realizações e publicações. São enumerados 12 livros de sua autoria, sendo três de matemática, dois sobre o Sistema Métrico Decimal, e os outros sobre assuntos variados. Curiosamente, porém, entre as muitas publicações arroladas em diversos assuntos, não é citada nenhuma obra na área de Química, em que ele viria a publicar bastante, embora sempre na forma de artigos.4 Quanto a livros de Química, sua bibliografia só contém um exemplar, e essa é uma tradução do francês, como adiante se verá. Tampouco este livro viria a ser mencionado por Sacramento Blake.

Após terminar um ano de estudos no Colégio Pedro II, aparentemente desestimulado por ter que passar a conviver com colegas mais jovens e menos experimentados, Pedro se retirou do colégio em 1839, como o pesquisador Paulo Strauch verificou ao consultar o livro de memórias da instituição.5 Provavelmente Pedro achava o ensino fácil demais, pois tirava as maiores notas sem muito esforço. O currículo do colégio era mais voltado para as humanidades, prevendo uma futura carreira jurídica para seus egressos, mas não era essa a vocação de Pedro, que almejava fazer estudos científicos. Ele saiu do colégio em 31 de março de 1831 e passou a estudar em casa, com professores particulares. Mais tarde seguiu para a França em 7 de junho de 1840, e lá prosseguiu seus trabalhos escolares regulares. Acompanharam-no na viagem seu pai, o Conselheiro José Antonio, e sua irmã mais velha, Bárbara.6 Considerando o interregno entre sua saída do colégio e a viagem até a Europa, pode-se presumir que ele teve cerca de 15 meses para se preparar, estudando com professores franceses particulares, que eram razoavelmente comuns na época e anunciavam seus serviços nos jornais da Corte.6

Pedro desejava cursar Engenharia na École Centrale des Arts et Manufactures, em Paris, e para isso teve que fazer exames de desenho, francês, aritmética, álgebra e geometria. Embora não se conheça o teor do ensino que ele poderia ter tido no Brasil, sabe-se que, pelo menos em desenho ele tivera um professor notável, Manoel de Araújo Porto Alegre, um dos maiores pintores do Império. Um provável reflexo disso é que no exame de desenho, foi-lhe pedido em Paris apenas um desenho a aquarela.7

A instituição escolhida por Pedro Lisboa para prosseguir seus estudos em Paris foi a École Centrale des Arts et Manufactures, mais tarde conhecida informalmente como École Centrale Paris. Ela foi fundada em 1828 e começou a funcionar no ano seguinte. Seu fundador foi Alphonse Lavallée (1797-1873), doutor em Direito, que sonhava em criar uma escola de ensino industrial de nível superior (Figura 2). Lavallée, oriundo do comércio marítimo em Nantes, era muito bem relacionado nos meios intelectuais, científicos e políticos da capital francesa.

 


Figura 2. Alphonse Lavallée

 

Três amigos de Lavallée, todos bastante jovens, foram fundamentais para a concretização de sua escola: o geômetra Théodore Olivier (Figura 3), o físico Eugène Péclet (Figura 4) e o químico Jean Baptiste Dumas (Figura 5).8 Théodore Olivier (1793 1853), um egresso da Escola Politécnica de Paris, foi durante toda a sua carreira posterior professor de geometria e mecânica.

 


Figura 3. Théodore Olivier

 

 


Figura 4. Eugène Péclet

 

 


Figura 5. Jean Baptiste Dumas jovem

 

Jean Claude Eugène Péclet (1793-1857), ex-aluno de Joseph Louis Gay-Lussac (1778-1850) e Pierre Louis Dulong (1785-1838) na Escola Normal Superior, tornou-se o professor de física e autor de vários livros dessa ciência.

Jean Baptiste Dumas (1800-1884) foi um dos químicos franceses mais importantes do século XIX, depois de estudar farmácia, química e fisiologia em Genebra. Tornou-se assistente do químico Louis Jacques Thénard na Escola Politécnica e mais tarde um dos fundadores da nova Escola Central de Artes e Manufaturas. Dumas lecionou várias disciplinas de química na Escola Central, ao lado de também lecionar na Escola Politécnica, na Faculdade de Medicina, na Faculdade de Ciências de Paris e no Collège de France.9

O nome da nova escola obedeceu a conceitos muito bem definidos na época. A palavra "arte", além de seu uso como uma das "belas artes", significava também o conjunto de princípios, preceitos e regras colecionados para fazer ou praticar alguma coisa, ofício mecânico, indústria. Já o termo "manufatura" seguia o conceito definido pelo químico escocês Andrew Ure (1778-1857), denotando "qualquer produto da arte produzido por máquinas, com pouca ou nenhuma contribuição da mão humana" (Figuras 6-8).10

 


Figura 6. Um laboratório da École Centrale des Arts et Manufactures em 1887

 

 


Figura 7. A localização original da École Centrale des Arts et Manufactures, de 1829 a 1884 - edifício do século XVII, conhecido inicialmente como Hôtel Juigné, depois Hôtel Salé, e hoje sede do Musée Picasso, no bairro do Marais

 

 


Figura 8. Aspecto atual da segunda sede da École Central Paris. Em 2015 uma nova instituição, denominada CentralesSupélec foi criada pela junção da École Centrale Paris e da École Supérieure d'Électricité

 

Quase coincidentemente com o início das aulas da Escola Central, Auguste Comte (1798-1857) inicia seu curso de Filosofia Positiva no Athénée, onde também lecionava à época o químico Dumas. Em sua segunda lição, assim se exprimiu Comte: "Entre os cientistas propriamente ditos e os diretores efetivos das empresas produtivas começa a se formar em nossos dias uma classe intermediária, aquela dos engenheiros, cuja missão especial é a de organizar as relações entre a teoria e a prática".11 Em decorrência dessa coincidência de ideias, Comte passou a enviar à Escola Central muitos estudantes que ele encontrava como examinador na Escola Politécnica.

Muitos cientistas, homens de negócios, intelectuais e políticos influentes ajudaram na divulgação da nova escola. Todavia, essa, que era privada, ainda dependia de fundos pessoais de Lavallée. Apesar dos percalços iniciais, contudo, a Escola Central progrediu bastante, crescendo também o número de alunos. Ela permaneceu como instituição privada até 1857, quando o Governo de Napoleão III a estatizou. Até essa data, o estado se tinha limitado a conceder algumas bolsas de estudos para poucos alunos.12

Um número considerável de brasileiros dirigiu-se à Escola Central a fim de estudar Engenharia Industrial, especialidade inexistente no Brasil da primeira metade do século XIX. A fama da Escola chegou ao Brasil, como foi demonstrado pelo episódio relatado a seguir. A revista O Auxiliador da Indústria Nacional, órgão da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, sediada no Rio de Janeiro, publicou em 1838 a tradução por Januário da Cunha Barbosa de um artigo de Dumas sobre o assunto, publicado no ano anterior no Journal des Débats.13 Dessa maneira, a Escola Central passou a fazer parte do universo mental de jovens brasileiros que sonhavam em se formar em ciência e engenharia industrial.

A ida dos brasileiros para estudar na Escola Central é um fenômeno histórico, social e cultural de grande interesse. Até pouco antes da independência do Brasil, Coimbra era o grande magneto para onde se dirigiam os jovens brasileiros em busca de uma formação superior. Com a chegada da família real portuguesa começaram a ser criadas instituições de ensino superior no país, como as duas escolas de medicina de Salvador e do Rio de Janeiro, ambas fundadas em 1808, seguidas do ensino técnico e científico que veio a ser ministrado na Academia Real Militar do Rio de Janeiro, de 1810, antecessora direta da Escola Politécnica existente até hoje.

Para se ter uma ideia da profundidade da mudança operada no século XIX, basta apontar que, do início da colonização do Brasil até 1800, 2122 brasileiros estudaram na Universidade de Coimbra, sendo 1753 deles, ou a imensa maioria, no século XVIII, sobretudo após a Reforma Pombalina da universidade, em 1771-2.14 Fora de Coimbra, vários brasileiros também estudaram em outros países no final do século XVIII, mas praticamente só na área médica. As universidades de atração para os brasileiros nesse campo eram Montpellier, Edimburgo e Leiden. Como exemplo, pode-se citar o caso notável de José Pinto de Azeredo, que se graduou em Medicina em Edimburgo e se doutorou em Leiden em 1788. Azeredo veio a ser membro da Sociedade Literária do Rio de Janeiro, onde realizou e comunicou trabalhos experimentais de determinação da composição do ar em diversos pontos da capital, determinando os teores de oxigênio e gás carbônico, como medidas da chamada "bondade" do ar, ou seja, o ar mais adequado é aquele com o maior teor de oxigênio e menor de gás carbônico. Seu trabalho pode ser lido na longa publicação de sua autoria publicada no Jornal Enciclopédico de Lisboa em 1790, em que seu nome foi grafado erroneamente como Azevedo.15

A partir do início do século XIX a influência coimbrã na preferência dos brasileiros decresceu consideravelmente até se tornar insignificante, em virtude da abertura de cursos superiores no Brasil e do contacto mais intenso do país com outras nações, em particular a França, que veio a tornar-se o grande polo das atrações acadêmicas dos brasileiros. Mesmo nas escolas superiores do Brasil esta influência francesa pode ser notada claramente ao longo de todo o século XIX. A Escola Politécnica da UFRJ mantém uma notável biblioteca de obras raras, bastante grande, com obras que vão do século XVII ao final do XIX. A predominância é, contudo, do século XIX, e as obras francesas, sejam elas livros ou periódicos, dominam o acervo.

Com o passar do tempo, vários professores renomados, tanto cientistas como engenheiros, foram sendo adicionados ao quadro docente da Escola Central de Paris. O Prospecto da Escola definia muito bem seus objetivos. No caso que mais nos interessa aqui, ele assim se expressa com relação ao ensino da química: "o químico saído dessa Escola não exerceu somente na teoria e na prática as operações de laboratório; ele estudou a mecânica sem a qual não há exploração lucrativa; ele conhece as regras do emprego econômico dos combustíveis, ele pode projetar e indicar os melhores meios à execução dos edifícios destinados à indústria que ele deve dirigir".16 O caráter verdadeiramente politécnico da Escola Central pode ser aquilatado pela carreira de um de seus egressos mais notórios, Gustave Eiffel, futuro projetista e construtor do monumento mais conhecido de Paris, a torre que leva seu nome. Em adição a Eiffel, muitos outros franceses notáveis também se graduaram pela Escola Central, como Louis Blériot, Georges Leclanché, Émile Levassor, Édouard Michelin e Armand Peugeot. Uma simples pesquisa na Internet mostrará a plêiade de nomes importantes da ciência e da engenharia que por lá passaram. Eiffel, por exemplo, formou-se em Engenharia Química em 1855, mas acabou por dedicar-se ao ramo da construção civil, tornando-se um dos engenheiros mais conhecidos do século XIX.17

É claro que os brasileiros que estudaram na Escola Central eram todos oriundos de classes sociais abastadas. Caso contrário, seria impossível cursá-la. Além disso, eles precisavam ter tido anteriormente uma boa escolaridade, que os habilitasse a serem aprovados na admissão e durante os cursos. Entre os vários brasileiros graduados pela Escola Central, pode-se apontar Henrique Dumont (Figura 9), natural de Diamantina, em Minas Gerais. Seus pais, franceses de Bordeaux, vieram para o Brasil com a finalidade de procurarem pedras preciosas para o negócio de ourivesaria da família na França. Henrique se graduou na Escola Central em 1853 como engenheiro químico e retornou ao Brasil.18 Aqui se casou com Francisca Santos, mas passou a atuar no ramo de construção de ferrovias. Foi durante este período, quando trabalhava na implantação ferroviária na Serra da Mantiqueira, que ele residiu com a família no sítio de Cabangu, em Palmira, Minas Gerais, município que hoje se chama Santos Dumont. Foi aí que nasceu, em 1873, seu filho Alberto Santos Dumont. Pouco depois, Henrique se mudou para a região de Ribeirão Preto, onde veio a constituir um dos maiores impérios agrícolas do Brasil, com imensos cafezais que dispunham até mesmo de uma ferrovia particular interna.

 


Figura 9. Henrique Dumont aos 21 anos, em 1853, quando se formou na Éscole Centrale de Paris

 

A Tabela 1 mostra os dez primeiros brasileiros que se graduaram na École Centrale, nos anos entre 1842 e 1878. É significativa a predominância de estudantes oriundos das províncias do nordeste do Brasil. A Tabela 1 também é eloquente ao mostrar a forte influência que a escola francesa teve na formação de muitos engenheiros brasileiros nos anos centrais do século XIX. Por muitos anos um bom número de outros brasileiros também se formou na mesma escola.

 

 

O que estudou Pedro Lisboa na Escola Central? Em primeiro lugar, ele precisou ser aprovado no exame de admissão. Esse consistia em provas escritas e orais de aritmética, álgebra e geometria, proficiência em francês e em desenhos a mão livre, com régua e compasso e perspectivas em aquarela. O curso completo durava três anos, e sua família arcou com as despesas de alojamento em Paris, antes e depois da admissão, além de pagar as anuidades escolares, alimentação, vestuário e aquisição de material escolar. Pedro estudou na primeira série Geometria Descritiva, Física Geral, História Natural, Química Geral, Análise Geométrica e Mecânica Geral. Já na segunda série, suas disciplinas foram Mecânica Aplicada, Física Industrial, Metalurgia, Geologia e Lavra, Obras Públicas, Construção de Máquinas, Química Analítica, e Química Industrial. A terceira série consistiu em Mecânica Aplicada, Metalurgia, Geologia e Lavra, Obras Públicas, Máquinas a Vapor, e Ferrovias. A carga horária era bastante pesada, e neste ponto as disciplinas variavam de 30 a 120 aulas. Além disso, eles deviam realizar um estágio industrial durante as férias.20 O desempenho de Pedro Lisboa pode ser considerado bom, pois dos dados disponíveis, sabe-se que ao final do primeiro ano ele se classificou em 17o lugar entre 75 alunos, no segundo ano em 26o lugar entre 66 alunos. Na segunda série ele realizou os projetos de Cabrestante e de Fábrica de Ácido Sulfúrico. No terceiro ano seu projeto foi de uma instalação de banhos públicos e de um forno de tijolos. Já seus projetos finais foram de uma Fábrica de Gesso e de outra de Féculas.21

Pedro de Alcantara Lisboa se graduaria na Escola Central em 1845. Ele sempre se intitulou "engenheiro químico", que ele era realmente, embora seu diploma o chamasse oficialmente de "engenheiro civil modalidade química". Na verdade, o nome engenheiro químico só foi consagrado a partir de 1888, quando o Massachusetts Institute of Technology cunhou esse termo. Por isso, o MIT costuma ser apontado como o criador do primeiro curso de engenharia química no mundo.22 É claro que nessa alegação há alguma confusão semântica, assim como orgulho nacional envolvido.

Entre 1829 e 1847, 20% do alunado da Escola Central era estrangeiro. É curioso que, em contraste, ao longo do longo período entre 1805 e 1883, apenas 2,3% dos estudantes da Escola Politécnica, a outra importante escola de engenharia de Paris, não eram franceses.23 É também significativo assinalar que no ano de 1845, quando Pedro Lisboa se graduou, foram outorgados pela Escola Central 49 diplomas de engenheiros, nas especialidades Mecânica, Construção, Metalurgia e Química. Destes, 6 diplomas eram de Química.24

Após sua formatura na Escola Central, Pedro de Alcantara Lisboa retornou ao Brasil, chegando ao Rio de Janeiro em 18 de outubro de 1845, depois de 56 dias de viagem.25 A partir do início do ano seguinte começou uma carreira bastante intensa nos debates travados no seio da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, para a qual havia entrado a partir de abril de 1846. Por isso, é conveniente aqui falar um pouco desta instituição.

A Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional (SAIN) foi fundada em 1827 como uma associação civil de direito privado, com enquadramento ministerial e subvenção anual no orçamento do Estado, pois os membros compunham a equipe de pareceristas oficiais encarregados de conceder privilégios públicos. A SAIN estava diretamente ligada ao Ministério dos Negócios do Império, e passaria depois à jurisdição do Ministério da Agricultura, Comércio e Obras em 1860, funcionando como órgão consultivo do Estado, concedendo licenças e prêmios àqueles que se dispusessem a desenvolver novas técnicas e máquinas agrícolas.26

A SAIN funcionou bem entre 1827 e 1886, quando a verba que lhe era destinada pelo governo foi cortada em dois terços, sob alegação de crise nas finanças públicas. Com isso, ela perdia também sua posição de órgão consultivo na concessão de privilégios. Durante a existência de uma das mais duradouras sociedades do Império, a SAIN, hoje bem pouco conhecida, manteve o periódico "O Auxiliador da Indústria Nacional". Este foi publicado de 1833 a 1892, durante 59 anos, tornando-o um dos mais longevos periódicos brasileiros.26

A SAIN também deu origem ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB, 1838), à Sociedade Estatística do Brasil (1854), às Escolas Normais e Agrícola (1860), ao Imperial Instituto Fluminense de Agricultura (1860), à Escola Industrial do Brasil (1865) e à Escola Primária Noturna de Adultos (1871), tornando-se uma das mais profícuas associações brasileiras do século XIX.

O Conde da Barca (1756-1817) (Figura 10), ministro de D. João, promovera a fundação de uma Sociedade de Encorajamento à Indústria e à Mecânica, como relata o pintor Debret. Essa seria moldada em sua congênere francesa, a Société d'Encouragement pour L'Industrie Nationale (SEIN), fundada na França em 1801. A SEIN francesa promovia a ciência e a indústria por concursos, exposições, publicações e ensino técnico. Entre as invenções apoiadas por ela estão o tear mecânico (Jacquart), a fotografia (Niepce e Daguerre), e a cinematografia (irmãos Lumière).26

 


Figura 10. Conde da Barca. Antonio de Araújo de Azevedo

 

Um dos pareceres enviados a D. Pedro I, de 07/07/1825, sobre a conveniência de fundar a SAIN é do químico João da Silveira Caldeira, Diretor do Museu Imperial: "[...] a mecânica deve suprir as forças humanas deficientes, e ajudá-las com os recursos que ela fornece, bem como as águas, o ar, o calor, motores esses fáceis de se porem em atividade, e que só precisam das combinações do gênio, que cria, facilita, simplifica e aperfeiçoa.

Para conseguirmos este útil fim basta só que o governo queira, e que seja ajudado por homens esclarecidos; que haja cooperação em todas as medidas de melhoramentos, que se julgarem necessários, e praticáveis e que se concedam alguns prêmios aos autores das descobertas úteis, únicas molas que o governo tem a seu dispor, e que podem ser organizados de tal modo que não venham a carregar sobre o Tesouro Nacional [...]".27

De acordo com Silveira Caldeira, a nova Sociedade deveria:

- Ter um Museu da Indústria (Conservatório de Máquinas);
- Promover aulas com professores de Geometria e Desenho;
- Promover concursos públicos e premiações para protótipos;
- Manter correspondência com as principais sociedades científicas da América e da Europa;
- Manter um periódico que popularizasse as descobertas nacionais e estrangeiras;
- Manter sócios correspondentes em todos os lugares possíveis, em território nacional e estrangeiro.

O Tribunal da Junta do Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação respondeu favoravelmente ao parecer de João da Silveira Caldeira, em 18/07/1825:

"[...] estabelecimento que se oferece, e é objeto dos presentes papeis me parece muito digno de ser protegido como dirigido a beneficiar o Brasil, particularmente a Agricultura; e quando vejo que já principia a merecer a benigna contemplação de Sua Majestade Imperial. [...] quanto aos Estatutos, de que mais particularmente me incumbe dizer, no seu substancial me parece que são dignos de aprovação [...]".28 A tudo isto o Imperador D. Pedro I respondeu entusiasticamente, aprovando a fundação da sociedade e seus estatutos (Figuras 11 e 12), bem antes da entrada em funcionamento da Sociedade.

 


Figura 11. Estatutos da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional

 

 


Figura 12. A antiga sede do Museu Nacional, no Campo de Santana. A SAIN ocupava parte das dependências do museu. Este, com a vinda da República, foi transferido para o Paço da Quinta da Boa Vista

 

Já no ano de 1846, antes mesmo de sua eleição para a Sociedade, Pedro de Alcantara Lisboa publicaria em junho uma memória no volume 1, número 1 do Auxiliador da Indústria Nacional (Figura 13), sobre Equivalentes Químicos, cobrindo da página 9 à página 13. Essa foi a primeira vez que se publicou um texto sobre o assunto de equivalentes e equações químicas no Brasil, assim como cálculos estequiométricos, em um órgão de divulgação ampla, uma vez que o Auxiliador era um periódico distribuído gratuitamente pelo Governo Imperial em todas as províncias do Império. Anteriormente, em 27 de agosto de 1844, o médico Antonio Maria de Miranda e Castro (1818-1886) havia apresentado publicamente o tema em seu concurso para lente substituto da seção de ciências acessórias da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, numa tese intitulada "Considerações acerca do estudo das sciencias physicas e systema dos equivalentes ou proporções chimicas".29 Em sua tese, Miranda e Castro discutia a resolução do seguinte problema, hoje um assunto para estudantes de cursos secundários de Química: "suponhamos que temos 1000 gramas (2 lib) de nitrato de barita, e vamos precipitar toda a barita pelo ácido sulfúrico. Precisamos saber ao certo que quantidade do ácido devemos empregar, sem inutilizarmos o reativo, pondo de sobra, nem tampouco perdermos barita; que na economia para as artes, e mesmo para o químico está toda a utilidade da descoberta dos equivalentes".30 Os cálculos de Miranda e Castro são da mesma natureza daqueles efetuados mais tarde por Pedro Lisboa, mas o assunto estava exposto numa tese, que por sua natureza é uma publicação de âmbito restrito. Ao contrário, Pedro Lisboa, ao publicar dois anos depois sobre o mesmo assunto, procedeu de modo a expor para um público de âmbito nacional, donde sua abrangência e importância serem muito maiores.

 


Figura 13. Frontispício do primeiro número do Auxiliador da Indústria Nacional, órgão oficial da SAIN, que foi publicado de 1833 a 1892

 

Também no mesmo número da revista, Pedro Lisboa publicara uma outra memória sobre Conservação das Madeiras (pp. 25-26). Suas inúmeras memórias correspondiam às várias comunicações orais que ele apresentava nas sessões da SAIN, nas quais demonstrava uma grande capacidade didática em suas exposições, o que já prenunciava sua futura carreira como professor.

Voltando à memória de Pedro Lisboa sobre os equivalentes químicos, é importante mostrar como ele lidava com os conceitos que usava. Assim escreve ele:

"Entende-se por equivalente químico de um corpo simples a quantidade em peso que, unindo-se a 100 partes em peso de oxigênio, constitui o óxido menos oxigenado. Assim o equivalente do oxigênio é 100, o do potássio é 490, o da potassa é 590. Cinquenta e quatro elementos, ou corpos simples, combinando-se entre si de todos os modos e em diferentes proporções, produzem os corpos da natureza. A cada um desses corpos corresponde um número abstrato, que é chamado equivalente químico desse corpo. Já vimos que esse número exprime o número das partes em peso desse corpo que, combinando-se com 100 partes de oxigênio dá origem ao óxido menos oxigenado".31

Em seguida ele dá uma tabela com os elementos conhecidos e os valores de seus equivalentes. Em sua tabela, o padrão fundamental, como já observado, é o oxigênio, que recebe o peso 100, e em relação ao qual são dados os pesos dos outros elementos. É interessante notar as muitas diferenças que se percebem nessa tabela em relação aos nomes e aos próprios símbolos usados na França e mesmo no Brasil na época. Assim, ele usa, por exemplo, E para enxofre, Pr para prata, Ar para arsênio, C tanto para carbono como para cobre, L para lítio e lantânio, Pl para platina, Pa para paládio, Hgr para azougue (mercúrio), B para bismuto e boro, e Cm para chumbo.

A Tabela 2 apresenta sua lista completa, na sequência dada pelo autor, e respeitando a grafia original. A lista não segue qualquer sequência especial, e não há qualquer menção a possíveis similaridades nas propriedades químicas dos diversos elementos.

 

 

Em seguida, Pedro Lisboa explica como se devem escrever as fórmulas dos compostos: "os símbolos que estão em frente desses corpos indicam um equivalente dos corpos que eles exprimem: quando há mais de 1 equivalente, indica-se o número destes, colocando-se no lugar do expoente o número que exprime a quantidade deles: deste modo EO3HO, que é o símbolo do ácido sulfúrico do comércio, diz que nesse ácido há 1 equivalente de enxofre, 3 de oxigênio e 1 de água ou, em outros termos, 201,1 partes de enxofre, 300 de oxigênio e 112,5 de água." Somando nós esses valores, obtemos 613,6. Assim, pode-se calcular hoje que o enxofre corresponde a 32,77%, o oxigênio 48,89%, e a água 18,33% em massa. Usando dados atuais, e supondo a fórmula do ácido sulfúrico como SO3.H2O esses valores seriam: S = 32,65%, O (exceto o oxigênio da água) = 48,98%, água = 18,37%. Apesar do erro conceitual de supor a água como HO, e não H2O, os resultados são excelentes, como qualquer químico atual pode comprovar.

Logo a seguir, Pedro Lisboa passa a mostrar a aplicação prática do que acaba de expor. É interessante que ele prefere fazer seus cálculos usando o sistema métrico decimal, originado durante a Revolução Francesa, e com o qual ele estava bastante familiarizado por sua longa estada em Paris. No Brasil o Sistema Métrico Decimal só seria adotado por resolução da Assembleia Geral do Império, a partir de 1862. Assim prossegue ele:

"Vamos ver agora o partido que os industriais e aqueles que se dedicam â pratica dos processos analíticos têm tirado desses números. Suponhamos que queremos produzir uma quantidade de gás hidrogênio para encher um balão de quatro metros de diâmetro.

A capacidade do balão sendo 4/3 π r3 = 4/3 π x 23 = 4/3 x 3,14 x 8 = 33 metros cúbicos, e como cada metro cúbico contém 1000 litros, segue-se que temos de produzir 33000 litros de gás hidrogênio. Ora, 1 litro desse gás pesando 0,08g, segue-se que 33000 pesam 2660,00 g, ou em números redondos 2,5 quilogramas, que correspondem a pouco mais de 5 libras.

Por outro lado, sabemos que 1 equivalente de ácido sulfúrico, reagindo sobre 1 equivalente de ferro, produz 1 equivalente de gás hidrogênio; portanto podemos escrever a equação seguinte:

Nota inserida pelo presente autor:

A equação pode ser transcrita como segue, usando a notação antiga com símbolos modernos, ou escrevendo uma equação totalmente moderna:

Voltando agora ao texto de Pedro Lisboa:

"Esta equação nos mostra que 613 libras de ácido sulfúrico, reagindo sobre 339 libras de ferro dá (sic) origem a 12,5 libras de hidrogênio; fácil é, portanto, calcular as proporções de ácido e de ferro necessários para produzir 5 libras de hidrogênio, que queríamos obter. Essa mesma equação nos indica a quantidade de sulfato de ferro, produto acessório desta operação; ela nos verifica finalmente esta eterna lei da natureza - Nada se perde, nada se cria".

Essa longa citação foi importante porque retrata a primeira vez que se usou numa publicação no Brasil uma equação para representar uma reação química, e também a primeira vez em que uma equação foi utilizada para se proceder a um cálculo estequiométrico. É claro que tudo isso é bastante elementar para olhos modernos, e é assunto para uma aula de química de ensino médio, mas não se pode perder de vista o contexto histórico e saber avaliar o grande passo que estava sendo dado por Pedro de Alcantara Lisboa, que também já havia mostrado o tema numa conferência na sede da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional.

É impressionante o número de comunicações lidas e publicadas na SAIN por Pedro de Alcantara Lisboa, abrangendo os mais diversos assuntos, às quais ele gostava de acrescentar, logo após seu nome: Engenheiro Químico. Uma dessas publicações tem o título geral de Indústria Manufatureira, e nela assim se expressa ele:

"A indústria é o trabalho material qualquer que seja sua forma. Se esse trabalho se exerce em tirar da superfície do solo o partido conveniente, a indústria é agrícola; se em transformar essas matérias que o solo ministra em outras matérias igualmente úteis, a indústria é manufatureira, se enfim o trabalho consiste em oferecer essas substâncias aos consumidores, nesse caso a indústria é comercial. É da indústria manufatureira que eu vou falar mais especialmente.

Desgraçadamente, Srs., entre nós, muito atrasada está a indústria manufatureira. Alguns sábios têm indicado como medida para apreciar o estado desse ramo da indústria o estudo da posição e progresso em que se acham em um país as fabricações do ferro, do sabão e do ácido sulfúrico. Conquanto exista no país grande abundância de minas desse metal, conquanto já se obtenha algum resultado, contudo bem longe está a fabricação de ferro no Brasil de chegar ao ponto de perfeição em que se acha em outros países; a fabricação de sabão igualmente é susceptível de muitos melhoramentos e quanto ao ácido sulfúrico, mal se conhece o seu nome".

A seguir ele dá uma aula sobre a necessidade de desenvolver o estudo das ciências da natureza, sobretudo da Química, se se quiser o progresso das manufaturas no país:

"O estudo aprofundado das ciências naturais é, pois, a condição essencial do desenvolvimento industrial do Brasil. Sem um conhecimento muito abalizado da química teórica e prática não é possível dar-se um passo acertado no caminho da indústria manufatureira; as condições de saúde pública, a maior produção nas condições as mais favoráveis, o desenvolvimento orgânico do estado, tudo isto está debaixo do domínio da química auxiliada pela mecânica, física e história natural".32

Em seguida ele parte para dizer que a teoria mais elucidativa da importância e abrangência da Química é a dos equivalentes químicos, sobre os quais ele já havia publicado pouco antes a memória referida acima. Para isso, ele havia introduzido, pela primeira vez no Brasil, conforme já se disse e nunca é demais enfatizar, numa publicação de ampla divulgação, o uso das fórmulas químicas usando os símbolos de Berzelius, e uma equação química, usada de forma também pioneira no país, usando-a para fazer um cálculo estequiométrico. Em todos esses aspectos, Pedro de Alcantara Lisboa teve a primazia no Brasil.

Seria enfadonho recapitular aqui todas as contribuições de Pedro de Alcantara Lisboa, sobretudo aquelas publicadas no periódico da SAIN. Basta, todavia, assinalar que, entre 1846 e 1851 podem ser consultadas pelo menos 49 comunicações de sua autoria publicadas nas páginas do Auxiliador da Indústria Nacional. A coleção completa da revista está disponível na Internet a partir dos exemplares conservados na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Sugere-se aos interessados que façam uso desse enorme manancial de informações.

Pouco tempo depois do retorno de Pedro Lisboa ao Brasil, porém, no próprio ano de 1846, a SAIN tomou a iniciativa de enviá-lo novamente à França, onde ele serviu de setembro de 1846 a julho de 1848, atuando como adido de primeira classe à Legação do Brasil na capital francesa, com o intuito de coletar informações sobre avanços científicos e tecnológicos que estivessem ocorrendo não só na França, como em toda a Europa, e enviar relatórios sobre os mesmos à SAIN, no Rio de Janeiro. Além disso, também enviaria notícias sobre novos equipamentos e instrumentos de interesse à indústria brasileira. Os artigos enviados por Pedro Lisboa, e publicados no Auxiliador da Indústria Nacional, cobrem os mais variados assuntos, como a fabricação do algodão-pólvora, os progressos da indústria moderna da França, a descrição do eterizador (aparelho para anestesia com éter etílico), produção de espelhos, fabricação de sorvetes e de gelo, asfaltamento de ruas, eletroquímica, química agrícola e fertilizantes, além de desenhos de equipamentos de produção de asfalto, projetos de poços e galerias de minas de carvão, além de artigos sobre política e economia, numa época de profundos movimentos sociais que abalavam toda a Europa.33

Durante sua nova estada em Paris, ele traduziu as notas de aula de seu antigo professor de Química na Escola Central, Jean Baptiste Dumas, e pediu-lhe permissão para publicá-las no Brasil, ao que o químico francês imediatamente acedeu. O livro, de 105 páginas, está repleto de equações químicas e cálculos estequiométricos. O foco principal é a Química Inorgânica, e essa é apresentada de acordo com as teorias vigentes à época, com grande ênfase no uso de equações para representar reações reais.

Assim, em 1848 saiu no Rio de Janeiro o livro intitulado Lições de Química professadas por J. Dumas na Escola Central das Artes e Manufaturas de Paris no ano letivo 1846-1847. Assim começa o Prólogo de sua tradução:

"A Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, convencida do muito que convém espalhar no Brasil o gosto dos estudos químicos, que nos nossos dias têm tomado voo tão extraordinário, e certa que sem o conhecimento de sua prática e teoria impossível é que a agricultura e a indústria prosperem entre nós, impôs-me como primeira condição do contrato comigo feito, o mandar eu de Paris redigido com os principais detalhes, desenhos ou mapas, o curso que agora vai sair à luz".34

Ao final do Prólogo, assim se expressa Pedro Lisboa: "agora só me resta fazer votos para que estas lições, sendo utilizadas, aproveitem a alguém que as leia com meditação, e faça as experiências que forem necessárias para o seu exato conhecimento. Esta é a única maneira da química fazer entre nós os progressos, que tanto anelo, e de que o país muito precisa. Só deste modo poderemos afugentar esta coorte de charlatães estrangeiros que, infectando o solo pátrio, impedem o adiantamento de toda e qualquer ciência".34 Certamente aqui ele se refere a anúncios como aquele publicado no Jornal do Commercio do Rio de Janeiro em 10 de janeiro de 1846, em que um espertalhão estrangeiro, dizendo-se portador de diplomas de medicina, farmácia e química buscava empregadores que o contratassem para fazer cachaça a partir de café fresco.35

Em 1851 foi realizada em Londres, sob inspiração do Príncipe Consorte Albert, a grande Exposição Universal sediada no Hyde Park, no imenso edifício de painéis de vidro denominado Crystal Palace. Embora o Brasil, mesmo tendo sido convidado, não tenha participado dessa exposição, que marcou época no século XIX, três representantes do país lá estiveram presentes. O primeiro deles foi João Diogo Sturz, cônsul brasileiro na Prússia, em Berlim. Sturz era um alemão naturalizado brasileiro e sócio honorário da SAIN, à qual ele enviava regularmente relatos sobre desenvolvimentos técnicos surgidos nos vários estados alemães. Sturz foi nomeado representante oficial do Governo Brasileiro para relatar o que era apresentado na grande exposição.

A Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional também não ficou alheia a mandar um representante a Londres, e o escolhido foi o jovem Pedro de Alcantara Lisboa, que já havia mostrado uma notável capacidade de trabalho desde que concluíra seu curso de engenharia em Paris, em 1845. Também o Jornal do Commercio mandaria um correspondente, para informar a seus leitores do grande acontecimento londrino que tanta atenção granjeou.36 Os relatos de Sturz, publicados no Auxiliador da Indústria Nacional, são bastante sofríveis, ao contrário do que escreveu Pedro Lisboa em seus quatro relatórios.

Um aspecto não desprezível é que Lisboa não se mostrava insensível aos conflitos recentes entre a Inglaterra e o Brasil, sobretudo no tocante ao apresamento de navios brasileiros para forçar o fim do tráfico africano. Apesar de entusiasmado com os progressos da indústria britânica, ele não deixava de notar o contencioso existente entre a Grã-Bretanha e o Brasil por aquela espinhosa questão. Assim escreveu Lisboa em seu segundo relatório, redigido em 8 de outubro de 1851: "com um coração brasileiro, não posso ser indiferente às injustiças e intempestivas violências que os cruzeiros britânicos continuam a praticar em nossas costas, mas ... não vejo a necessidade de negar ou menosprezar essa potência manufatureira que fabrica bem, depressa e com abundância, produtos para os quais são pequenos os mercados do mundo".37

Em sua carreira profissional, Pedro Lisboa teve também destacado papel na busca e difusão de novas tecnologias na fabricação de açúcar e álcool no Brasil. Seus abundantes artigos publicados nas páginas do Auxiliador da Indústria Nacional, contendo os mais modernos avanços científicos e técnicos da época, foram distribuídos ao longo de todo o Império. Apesar de tudo, esses esforços devem ter tido destino inglório. Nas palavras do pesquisador Paulo Strauch, "o elevado conteúdo técnico daquele material pode não ter sido simplesmente aproveitado, devido à ignorância dos seus leitores, dada a inexistência nas províncias de cursos de química ou de cursos secundários ou técnicos que ensinassem aquela disciplina".38

A partir de 1849 houve um longo e acirrado debate na SAIN sobre a criação de um curso de Química Aplicada às Artes, sob os auspícios da própria Sociedade, e para ele seria contratado Pedro Lisboa, com um salário de 1:200$000 mais 400$000 para a compra de instrumentos e reagentes. As opiniões se dividiram, com o engenheiro Frederico Leopoldo César Burlamaque a favor e o farmacêutico Ezequiel Correa dos Santos violentamente contra. Pedro Lisboa, bastante agastado, pediu sua demissão como professor de Química, que foi aceita.

Aos poucos, desiludido, Pedro Lisboa passou a afastar-se de atividades técnicas, e começou a dedicar-se a outros assuntos, como a abolição, embora ele só fosse favorável a um processo lento nesse sentido. Todavia, foi um crítico desde muito tempo do tráfico, e um ardoroso defensor da Lei Eusébio de Queirós, que pôs fim ao tráfico em 1850, como publicou o Auxiliador.39

Ao contrário de seus colegas brasileiros de Paris, Pedro Lisboa não veio a exercer a profissão de engenheiro. Decepcionado com a frustração de seus planos de criar um curso de Química Industrial no âmbito da SAIN, ele simplesmente abandonou seus planos e veio a tornar-se professor de matemática na Escola Normal da Província do Rio de Janeiro.

Em 1875 foi publicado no Rio de Janeiro um importante livro intitulado Noções de Chimica Geral, de autoria do Prof. João Martins Teixeira. Esse livro teve grande sucesso e passou por inúmeras edições, até bem dentro do século XX. Na 14a edição, de 1926, ainda se pode ler, no capítulo intitulado "A Chimica entre nós", que, em 1850 o médico Dr. Francisco Ferreira de Abreu, mais tarde Barão de Teresópolis, após estudar na Europa, abriu um curso público e gratuito de Medicina Legal nas dependências do Museu Nacional, em que lecionou muitos assuntos de Química. Entre as "novidades" apresentadas por Ferreira de Abreu, ainda de acordo com Martins Teixeira, "se destaca o emprego de fórmulas e equações químicas, que até então ainda não tinham sido introduzidas no ensino entre nós".40 É gritante a injustiça com a prioridade devida a Pedro Lisboa, repetida através das várias edições do livro de Teixeira.

Todavia, Ferreira de Abreu nada publicou sobre o assunto. Ao fazer uma palestra sobre a iluminação a gás no Museu Nacional, com a presença de D. Pedro II, ele se impressionou tanto que acabou por convidá-lo a ser professor de ciências naturais de suas filhas, médico da Imperial Câmara e membro do Conselho do Imperador.41

Apesar de algumas intervenções ocasionais no ambiente científico ou industrial brasileiro, a carreira de Pedro Lisboa prosseguiu no âmbito do ensino, jamais tendo conseguido realizar sequer parte do que prometia no início, e vindo a falecer no Rio de Janeiro em 1885. Mesmo assim, é importante rememorar no presente seu papel fugaz, mas importante na história da ciência e das técnicas no Brasil. Mesmo que ele não tenha sido um pesquisador original de importância como descobridor de novas substâncias ou processos químicos ou industriais, não devemos encará-lo, depois de mais de um século e meio, com os olhos do presente. O ambiente científico do Brasil em meados do século XIX, sobretudo na Química, era muito acanhado, talvez melhor descrito como por demais incipiente. Por isso, a figura de Pedro de Alcantara Lisboa teve importância como incansável divulgador científico, com contribuições notáveis nesse campo, assim como um grande professor, que ele sempre foi.

 

REFERÊNCIAS

1. Filgueiras, C. A. L.; Quim. Nova 2001, 24, 709.

2. Magalhâes, J. B.; Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro 1950, 208, 111; Magalhâes, J. B.; Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro 1950, 208, 132.

3. Strauch, P. C.; Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil, 2019, p. 38.

4. Sacramento Blake, A. V. A.; Diccionario Bibliographico Brazileiro, Imprensa Nacional: Rio de Janeiro, 1902, vol. 7, pp. 11 - 12.

5. Ref. 3, p. 141.

6. Ref. 3, p. 127.

7. Ref. 3, p. 128.

8. Ref. 3, p. 90.

9. Ref. 3, p. 92.

10. Ref. 3, p. 93.

11. Comte, A.; Cours de Philosophie Positive, 1830, p. 67, Hachette Livre Bnf, 2012.

12. Guillet, L.; Cent Ans de la Vie de L'École Centrale des Arts et Manufactures, 1829-1029, Éditions Artistiques de Paris, 1929, pp. 14-16.

13. O Auxiliador da Indústria Nacional, VI, 4, pp. 149 - 152 (1838).

14. Morais, F.; Brasilia, Suplemento ao vol. IV, Coimbra, 1949.

15. Azevedo (sic), J. P.; Exame químico da atmosfera do Rio de Janeiro, Jornal Enciclopédico, Lisboa, março de 1790, 259-288; Pinto, M. S.; Cecchini, M. A. G.; Malaquias, I. M.; Moreira-Nordemann, L. M.; Pita, J. R.; História, Ciência, Saúde - Manguinhos 2005, 12, 617.

16. Ref. 3, p. 113.

17. Ref. 3, 114.

18. Ref. 3, p. 333.

19. Os dossiers individuais de cada um dos alunos brasileiros foram obtidos diretamente dos arquivos da École Centrale pelo Dr. Paulo César Strauch, ref. 3, p.139.

20. Ref. 3, p. 386.

21. Ref. 3, p. 133.

22. Ref. 3, p. 30.

23. Ref. 3, p. 22.

24. Ref. 3, p. 120.

25. Ref. 3, p. 214.

26. Wanzeller, P. R. C.; Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional: o Templo Carioca de Palas Atena, Edição privada tese de doutorado homônima de 2009, História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia, UFRJ, Rio de Janeiro, Brasil 2018.

27. Ref. 26, pp. 105-6.

28. Ref. 26, p. 111.

29. Strauch, P. C.; Scientiarum Historia II, Encontro Luso-Brasileiro de História da Ciência, Livro de Anais, pp. 379-384, Rio de Janeiro, 2009; e Castro, A. M. M.; Considerações acerca do estudo das sciencias physicas e systema dos equivalentes ou proporções chimicas, tese, Typ. de J. E. S. Caurala, Rio de Janeiro, 1844.

30. Ref. 29.1, p. 14.

31. Aux. Ind. Nac., 1, nova série, 9-13, junho 1846.

32. Aux. Ind. Nac., 4, pp. 140-5, agosto 1846.

33. Ref. 3, pp. 196-197.

34. Lisboa, P. A.; Dumas, J. B.; Lições de Química professadas por J. Dumas na Escola Central das artes e Manufaturas de Paris no ano letivo 1846-1847, Typographia Brasiliense de F. M. Ferreira, Rio de Janeiro, 105 pp., 1848.

35. Ref. 3, p. 199.

36. Strauch, P. C.; Pindorama e o Palácio de Cristal - um olhar brasileiro sobre a Exposição de Londres de 1851, E-papers Serviços Editoriais: Rio de Janeiro, 2008, p. 51.

37. Ref. 36, p. 81.

38. Ref. 3, p. 296.

39. Lisboa, P. A., Aux. Ind. Nac., v.3, 110-14, 1850.

40. Teixeira, J. M.; Noções de Chimica Geral, Baseadas nas Doutrinas Modernas, 14a edição anotada, Livraria Francisco Alves: Rio de Janeiro, 1926, pp. 397-398.

41. Ref. 3, p. 211.

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