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Educação


Planejamento de fármacos contra COVID-19: uma experiência de ensino remoto de química farmacêutica
Drug design against COVID-19: a remote teaching experience in pharmaceutical chemistry

Rhanna Victória Amaral da Silva*; Larissa Magno Monteiro; Carlos Henrique Lamego Guimarães Thomaz Branco; Fernanda Guilhon-Simplicio

Faculdade de Ciências Farmacêuticas, Universidade Federal do Amazonas, 69080-900 Manaus - AM, Brasil

Recebido em: 12/08/2022
Aceito em: 22/11/2022
Publicado em: 03/02/2023

Endereço para correspondência

*e-mail: rhana2011@gmail.com

RESUMO

Infront of with the difficulties faced in making a new drug available to the population, it is essential to seek ways to simplify the process. In silico methodologies are alternatives to benchtop experiments, being frequently used due to their speed and low cost. The present study aimed to formulate a theoretical-practical activity in the Pharmaceutical Chemistry course, where students applied their knowledge of structural modeling and molecular docking to propose bioactive compounds against molecular targets of the SARS CoV-2 virus. The class was divided, and each group presented a drug candidate, the precursors being natural molecules. In total, seven derivatives were designed and tested against different macromolecules, and then an in silico prediction of their physicochemical characteristics was performed. The docking results were positive for all derivatives, in terms of binding energy, mainly GEND with -9.0 kcal mol-1. In addition, the prototypes exhibited good interactions with the amino acids of the respective targets, mainly KAED, QUED and GEND, in addition to presenting adequate physicochemical properties for meeting the Lipinski restrictions. Therefore, this study presented at least three potential inhibitors of SARS-CoV-2, showing the importance of using computational tools in drug design and development, as well as in teaching practice.

Palavras-chave: molecular docking; drug design; medicinal chemistry; SARS-CoV-2.

INTRODUÇÃO

Diante do cenário pandêmico que se estabeleceu no final de 2019, o uso de ferramentas computacionais, tais como triagem de alto rendimento, cristalografia de raio-X e química combinatória,1 vem sendo grandes aliadas na continuidade de pesquisas científicas e no processo de ensino-aprendizagem nas universidades, com o emprego de aulas práticas experimentais envolvendo modelos de síntese, análises de predições de propriedades farmacológicas e triagem de fármacos por ferramentas computacionais.2-3

O emprego dessas ferramentas permite estudos mais detalhados da relação estrutura-atividade, dados de farmacodinâmica e propriedades farmacocinéticas, que proporcionam uma compreensão mais abrangente dos aspectos do reconhecimento intermolecular.4,5

O docking molecular é baseado na afinidade de ligação entre um possível ligante obtido a partir de um protótipo e um alvo molecular (receptor, enzima). Assim, esse método é capaz de prever a interação, energia de ligação, além de caracterizar os modos de ligação. Compreende duas etapas básicas que envolvem a previsão da conformação e orientação do ligante (pose) e avaliação da afinidade de ligação, que permitem inclusive, planejar novos derivados com base nos resultados dessas análises, com base na estrutura do ligante ou do receptor.6,7

Durante as últimas décadas muitos softwares foram desenvolvidos para a análise de moléculas candidatas a fármacos por docking molecular. Dentre os mais utilizados estão o AutoDock, GOLD, AutoDock Vina, DockThor, OURO, FlexX e Molegro Virtual Docker.8 Outros programas de visualização podem ser usados durante o processo para análise dos resultados tais como Pymol, Quimera UCS, VMD e Discovery Studio. Muitos desses programas estão disponíveis para uso educacional de forma gratuita, e permitem um treinamento relativamente rápido acerca de suas principais funcionalidades (fácil manuseio pelo usuário), e são compatíveis com a maioria dos sistemas operacionais, incluindo Windows®, utilizado pela maioria dos estudantes.

Este texto relata a experiência de planejamento e aplicação de uma aula prática remota de Química Farmacêutica no curso de Farmácia da Universidade Federal do Amazonas, campus Manaus, onde os estudantes empregaram o docking molecular para criar e defender um candidato a fármaco que atuasse no tratamento ou prevenção da infecção pelo vírus SARS-CoV-2, fomentando o debate sobre o papel da Universidade na resolução de problemas imediatos da sociedade, estimulando a criatividade e o senso crítico dos mesmos.

 

PARTE EXPERIMENTAL

Planejamento da aula

Essa aula foi realizada com estudantes do curso de Farmácia da Universidade Federal do Amazonas matriculados na disciplina de Química Farmacêutica no período 2020/1 (ano civil 2021). Dado o cenário de pandemia, a disciplina foi ministrada de modo remoto e, nesses termos, a professora responsável demandou um projeto final onde os estudantes deveriam propor uma nova molécula com potencial contra SARS-CoV-2 ou COVID-19. Os estudantes deveriam defender a molécula proposta com base em revisão bibliográfica e os resultados do docking molecular, aplicando os conceitos aprendidos ao longo da disciplina Química Farmacêutica de forma ativa e integrada, diante de uma banca de professores da química medicinal e farmacologia.

Para tanto, os estudantes foram divididos em trios. O projeto teve como regras gerais:

Antes de iniciarem os projetos, os estudantes tiveram aulas práticas síncronas e assíncronas mostrando os fundamentos de docking molecular de diferentes classes terapêuticas, e as gravações das aulas, além de tutoriais pré-gravados, os quais estão disponíveis como Material Suplementar deste texto, foram disponibilizados na sala virtual da disciplina. Os estudantes tiveram 30 dias para preparar suas defesas, período no qual receberam o suporte dos monitores, pós-graduandos em estágio à docência e da professora da disciplina, os quais acompanharam as equipes em interações síncronas para sanar dúvidas e ajudar com questões técnicas dos softwares utilizados.

As defesas foram síncronas, e apenas um dos membros de cada trio foi responsável pela apresentação, o qual foi definido em sorteio instantes antes da respectiva defesa. Cada equipe tinha o mínimo de 30 e o máximo de 45 minutos para apresentar todos os elementos solicitados e defender sua proposta, devendo destacar o processo criativo que levou à molécula final. Ao fim da exposição, as equipes foram arguidas por uma banca avaliadora de três membros, que fazia questões abertas dentro de suas especialidades e relacionadas ao trabalho apresentado. Nessa fase de arguição, todos os membros do trio poderiam interagir com a banca.

Programas utilizados

Para o cumprimento da atividade proposta, os estudantes foram orientados a fazer uso dos softwares que estão listados no Quadro 1. Além dos tutoriais sobre o uso dos softwares ministrados pelos professores e monitores, os estudantes também poderiam consultar as indicações dos desenvolvedores dos programas e vídeos educativos confiáveis que estão dispostos em algumas plataformas da internet.

 

 

Obtenção do alvo e desenho dos ligantes

As etapas iniciais da prática consistiram na determinação do alvo proteico e sua obtenção no banco de dados de proteínas (PDB). A busca foi feita por meio do nome da proteína ou pelo código de quatro caracteres que esta recebe ao ser inserida no PDB. Alguns aspectos foram considerados durante a seleção dos alvos, como alta resolução, isto é, abaixo de 2 Å. No entanto, como alguns alvos não atenderam a este quesito no banco de dados, valores superiores foram aceitos. Também foram priorizadas proteínas co-cristalizadas com moléculas inibidoras. O download das estruturas cristalográficas foi feito no formato pdb.

Após determinação do alvo e estudo da relação estrutura-atividade, os estudantes escolheram uma molécula com potencial atividade contra o alvo. Empregando o ChemSketch, realizaram modificações moleculares visando a otimização destas estruturas. Os derivados desenhados foram salvos no formato mol2 e posteriormente transformados no formato pdb com o auxílio do programa Avogrado, onde tiveram suas energias minimizadas no campo de força Universal Force Field (UFF).

Preparo do alvo e ligante

As proteínas determinadas como alvos moleculares foram preparadas a partir do programa AutoDock Tools a fim de remover cofatores de cristalização e moléculas de água, adicionar os átomos de hidrogênio subtraídos e cargas atômicas, se necessário. Os ligantes também foram preparados para realização das etapas seguintes, podendo também ser adicionadas cargas e átomos caso houvesse necessidade. Tanto o alvo quanto os análogos foram salvos no formato pdbqt para realização da etapa de docking molecular.

Definição dos parâmetros do docking

Outra etapa de pré-ancoramento consistiu na definição dos espaços de busca e local de ligação do derivado ao receptor. Os parâmetros de gridbox no AutoDock Tools foram definidos englobando inteiramente ou parcialmente o receptor a fim de incluir o sítio de ligação deste alvo. Informações acerca dos aminoácidos que compõe o sítio ativo das enzimas foram localizadas nos artigos anexados nos bancos de dados de proteínas ou em outros estudos presentes na literatura. Além disso, os parâmetros da caixa também levaram em consideração os aminoácidos que circundavam a molécula inibidora co-cristalizada com a proteína (Figura 1) puderam ser determinados, anotados e posteriormente usados na etapa de docking.

 


Figura 1. Definição dos parâmetros de caixa de uma enzima no programa AutoDock Tools

 

Validação

A etapa de validação do método de modelagem escolhido consiste na retirada do ligante da estrutura cristalográfica, reinserindo-o a partir da metodologia de docking utilizada, processo também denominado como redocking. Dessa forma, a posição do ligante co-cristalizado com proteína é comparada com a posição do mesmo ligante após separação da macromolécula e reintrodução para realização da docking molecular. Assim, o redocking visa garantir a predição correta da disposição do ligante em seu sítio de ligação na proteína. A validação do teste é confirmada quando a Raiz Quadrada do Desvio Quadrático Médio (Root Mean Square Deviation - RMSD) entre a pose obtida pelo redocking e a pose original for menor que 2,0 Å.9 As etapas que envolvem a preparação do alvo, separação do ligante e docking molecular foram realizadas empregando o AutoDock Tools.

A determinação do RMSD foi feita utilizando o programa Discovery Studio. Para isto, a proteína juntamente com a molécula co-cristalizada, foram inseridas no software e, em seguida, a pose obtida pelo redocking foi adicionada de modo a sobrepor o ligante. Ao ocultar o alvo e selecionar os dois ligantes, acionou-se o recurso Structure > RMSD > Heavy Atoms e o valor de RMSD foi gerado automaticamente.

Docking molecular

Após preparo do alvo e do ligante e determinação dos parâmetros de caixa foi realizado o docking molecular, baseado na complementaridade do ligante-receptor. O docking do ligante ao alvo molecular foi realizado utilizando o programa AutoDock Vina e os procedimentos para realização desta etapa, bem como os códigos de comando utilizados, estão disponíveis no Material Suplementar.

De forma geral, para realização do docking, alguns arquivos são necessários para o funcionamento correto da metodologia no software, e devem estar devidamente organizados em uma pasta. Nessa pasta foram inseridos os alvos e os ligantes no formato pdbqt e os arquivos de programa Vina e Vina split no formato exe. Além disso, um arquivo de texto no formato txt para configuração foi criado contendo o nome da proteína e da molécula testada, assim como as dimensões da caixa, e posteriormente adicionado à pasta.

Assim, com o auxílio do prompt de comando (Windows®), o docking pôde ser concluído e os resultados apareceram na tela de comando, organizados de acordo com as melhores poses, classificadas pela energia de ligação.

Avaliação dos resultados

Os resultados a serem interpretados incluem os valores de RMSD encontrados na etapa de validação, visualização dos sítios de ligação, além dos resultados de docking no AutoDock Vina, disponíveis em energia de ligação, tendo em vista que quanto menor a energia de ligação, maior é a afinidade da ligação e maior o potencial do ligante testado.

Além disso, os resultados obtidos no que se refere às interações entre ligante e receptor puderam ser visualizados pelos estudantes através do programa Discovery Studio. Para isto, o alvo foi inserido no programa e definido como receptor. Em seguida, a melhor pose do docking foi selecionada, adicionada ao software e definida como ligante. Após isto, os estudantes utilizaram o recurso Ligand Interactions > Show 2D Diagram e puderam identificar a presença de ligações hidrofóbicas, de hidrogênio ou desfavoráveis de acordo com os resultados obtidos em cada teste.

Análise das propriedades físico-químicas

Para a análise das propriedades físico-químicas das moléculas propostas pelos estudantes foi utilizada a plataforma SwissADME, uma ferramenta gratuita e online que permite avaliar aspectos farmacocinéticos de pequenas moléculas, incluindo a análise da Regra de Lipinski (Rule of five) e suas extensões. Para isto, os estudantes desenharam as estruturas químicas propostas na plataforma, e os parâmetros de interesse foram calculados em poucos minutos. Os parâmetros físico-químicos analisados segundo a regra dos cinco de Lipinski são: LogP < 5; peso molecular < 500 Da; grupos doadores de ligação de hidrogênio < 5; grupos aceptores de ligação de hidrogênio < 10 que, de acordo com o autor, são as propriedades mínimas desejáveis em uma molécula proposta como potencial fármaco de uso oral, pois as Regras de Lipinski e suas extensões estão relacionadas a capacidade da molécula em permear membranas e, consequentemente, ser bem absorvida pelo TGI (trato gastro intestinal), apresentando possivelmente, boa biodisponibilidade oral.10

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

O roteiro prático criado para desenvolvimento da aula de dinâmica molecular possibilitou aos estudantes a visualização das etapas de docking para proposição e melhoria da afinidade de ligantes frente a um alvo específico, além da inspeção visual de complexos 3D entre o alvo-receptor. A prática demonstrou ainda o potencial do uso de ferramentas computacionais no processo de aprendizagem de estudantes no ensino da química medicinal, abrangendo de forma satisfatória o caráter multidisciplinar da disciplina

Após a aula experimental, foi proposto que os grupos realizassem o docking molecular com um potencial fármaco para atuar na COVID-19. Nesse sentido, os estudantes elaboraram seus ligantes a partir de uma substância natural e as modificações realizadas foram feitas seguindo reações gerais em química orgânica.11

Para os derivados ESPD e CELD, o isosterismo clássico foi aplicado, resultando na substituição de grupamentos metil por hidroxilas. De forma semelhante, as moléculas KAED e QUED também foram concebidas. Para KAED as modificações consistiram na substituição do átomo de hidrogênio pelo grupamento metoxi e adição de hidroxibezeno no anel aromático, enquanto que para QUED foi realizada a adição dos grupamentos isopropril e resorcinol.

Ademais, utilizando a simplificação molecular, foi possível obter CURD a partir da Curcumina, mantendo os dois anéis aromáticos com hidroxilas em suas extremidades ligados por uma cadeia de carbonos com pelo menos uma insaturação e grupamentos cetona. Para a obtenção de GEND também se aplicou a simplificação molecular, reduzindo o esqueleto base do geniposídeo, o que resultou em uma estrutura que posteriormente foi unida, por meio da hibridação molecular, a um grupamento volumoso. Ainda, o desenho de NAFD também envolveu o emprego de duas táticas do planejamento racional. Para obtenção de 1,4-dihidroxinaftaleno-2,3-diona empregou-se o isosterismo clássico, substituindo átomos de hidrogênio por hidroxilas. Por fim, pode-se unir esta molécula ao ácido xantina 8 carboxílico através da hibridação molecular.

Além disso, cada grupo teve que selecionar um alvo diferente para a realização dos procedimentos de docking. Ao final obteve-se um total de sete alvos selecionados e as principais características de cada proteína estão indicadas na Tabela 1. Para apresentação dos resultados, os estudantes precisaram demonstrar os modelos tridimensionais das enzimas, as interações dos ligantes nativos com o alvo, os valores de energia de ligação por docking molecular, além das interações dos ligantes modificados, a predição de propriedades físico-químicas e a relação de estrutura-atividade.

 

 

As enzimas obtidas do PDB foram avaliadas no programa Discovery Studio para inspeção do sítio ativo e visualização do complexo formado pela enzima e pelo ligante co-cristalizado. É possível ainda observar as especificações estruturais de cada enzima, quanto ao seu tamanho formato e complexidade. A resolução das enzimas selecionadas pelos grupos variou entre 1,73 Å e 3,10 Å, todas obtidas por difração de raio-X. Todas as enzimas selecionadas para o docking foram testadas em estudos anteriores para investigação de potenciais novos fármacos para atuar na COVID-19.

As moléculas-base para desenho dos ligantes foram selecionadas por cada equipe a partir de levantamento bibliográfico. O Quadro 2 correlaciona os alvos e os protótipos investigados para obtenção dos derivados, além de demonstrar os ligantes selecionados para docking, após a modificação molecular.

 

 

Cada grupo defendeu um derivado específico, aquele que, de acordo com suas análises apresentou resultados mais promissores em energia de ligação e interações intermoleculares, cujas, incluíram ligações de hidrogênio, pi-alqui, pi-aniôn, pi-pi e alquil e podem ser visualizadas na Figura 2. Os resultados obtidos após o docking estão dispostos na Tabela 2, expressos em energia de ligação (kcal mol-1) indicando as melhores poses geradas e visualizadas no Discovery Studio.

 


Figura 2. Interações intermoleculares entre os resíduos de aminoácidos do sítio ativo das proteínas e os derivados planejados

 

 

 

Os valores referentes à energia de ligação são inferiores em todos os derivados testados frente aos ligantes nativos o que indica uma maior afinidade de ligação e um potencial composto ativo a ser investigado. Destaque para as moléculas CURD, GEND e CELD com boa afinidade, em termos energias de ligação, ao respectivo alvo.

Visto que o sítio de ligação de um alvo molecular é constituído por aminoácidos que estão envolvidos tanto no reconhecimento molecular, ou seja, interação com a molécula bioativa, bem como no mecanismo de ação da macromolécula, as interações moleculares entre alvo e substrato são importantes não só pelo seu papel na promoção do efeito farmacológico, mas também na formação e estabilidade da estrutura protéica.12

Nesse contexto, todos os derivados apresentaram mais de uma ligação de hidrogênio, sendo o derivado GEND o que apresentou o maior número deste tipo de ligação. Esta é considerada um dos mais importantes tipos de interação em decorrência da sua especificidade, conferindo também estabilidade à interação.12

Ao comparar o desempenho do derivado KAED com o estudo realizado por Vique-Sánchez13 nota-se a interação por meio de ligação π-ânion com Asp320, um aminoácido importante na inibição de Neuropilina-1. Ademais, os resultados mostraram que a molécula QUED interagiu com Cys145 e His41 por meio de ligação de hidrogênio, sendo estes os resíduos de aminoácidos do sítio catalítico de 3CLpro/Mpro.14 Ainda, o composto GEND ligou-se aos resíduos His296 e Ser441 por meio de interações pi-pi e de hidrogênio, respectivamente, sendo estes integrantes da tríade catalítica de TMPRSS2.15 Com o perfil de interações intermoleculares descritos, pode-se inferir que esses derivados possuem potencial para atuar inibindo as enzimas supracitadas, promovendo, por diferentes mecanismos, a diminuição da replicação viral.

Contudo, alguns protótipos planejados pelos estudantes não apresentaram resultados tão expressivos como os já mencionados. O ESPD, por exemplo, exibiu poucas interações em comum com um composto projetado por Li e colaboradores16 para inibição seletiva do receptor canabinóide tipo II. Portanto, nota-se que D02 não se encaixou inteiramente na região catalítica do receptor, sendo necessária a realização de ajustes na estrutura química do composto, de modo que este se torne mais específico ao alvo.

Os aminoácidos essenciais para inibição de Nsp9 ainda não foram identificados até o momento. Pesquisas recentes evidenciaram cavidades na superfície proteica que possivelmente sejam acessíveis aos fármacos, entretanto, dentre as interações intermoleculares citadas nos estudos, nenhuma foi semelhante às apresentadas pelo derivado NAFD com o alvo biológico em questão.17,18 Do mesmo modo, o estudo de Cheemanapallie e colaboradores19 identificou Tyr357, Cys359, Glu360, Lys444, Lys445 e Lys541 como os resíduos que compõem o sítio ativo de NF-kB, porém a molécula CURD não demonstrou interação com os aminoácidos citados.

Recentemente, Hansur e colaboradores20 constataram que a dafnoretina, oriunda de Carthamus tinctorius (Cártamo), é um potencial inibidor do receptor Toll-like 4, sendo que este atua na superprodução de citocinas inflamatórias durante a infecção por SARS-CoV-2. Relacionando o padrão de docking da dafnoretina e do derivado CELD com o Toll-Like 4, observa-se que as moléculas não interagem com os mesmos aminoácidos, logo, o encaixe de CELD com o alvo ocorre distante da região catalítica.

Por fim, com o auxílio do software SwissADME, foi possível predizer as propriedades físico-químicas dos derivados planejados como massa molecular, LogP, número de aceptores e doadores de hidrogênio. A comparação das estruturas químicas com os dados disponíveis em plataformas virtuais permite a previsão e seleção de moléculas com bom perfil farmacocinético, isto é, aquelas que, em teoria, apresentarão biodisponibilidade oral satisfatória.21 Os dados físico-químicos de cada derivado podem ser visualizados na Tabela 3.

 

 

Os resultados obtidos mostraram que, com exceção de CELD (massa molecular > 500 g mol-1), todos os protótipos atenderam às especificações de Lipinski, evidenciando moléculas com atributos desejáveis no que diz respeito à absorção e permeabilidade em membranas biológicas, logo, estas predições apresentaram bons candidatos a fármacos contra o SARS-CoV-2. Ademais, compostos com boa biodisponibilidade possibilitam administração em menores quantidades e em maiores intervalos de tempo, o que pode gerar maior aceitação do tratamento pelo paciente.22

Diante do exposto, é notável que o emprego de ferramentas computacionais no planejamento e desenvolvimentos de fármacos é vantajoso, visto que o processo tradicional para introdução de um novo fármaco no mercado é demorado e requer altos investimentos para garantia da eficácia e segurança do medicamento. Dessa forma, esta prática promove a redução de possíveis fracassos e prejuízos para a indústria, já que é possível avaliar a interação entre moléculas e receptores biológicos, predizendo o comportamento dos compostos em condições fisiológicas reais.23,24

Nesse sentido, a técnica computacional empregada no presente estudo visa deduzir a interação entre uma macromolécula e um ligante, prevendo a provável orientação deste, a afinidade de ligação e as forças intermoleculares envolvidas no reconhecimento molecular. Assim, para facilitar a triagem biológica, os melhores candidatos, segundo o padrão de complementaridade com o alvo escolhido, são selecionados para os demais ensaios necessários. Logo, muitos compostos podem ser avaliados virtualmente frente a uma determinada enzima em um curto período e com menos gastos quando comparado com as técnicas experimentais.25

Para que possa ser executada, a triagem virtual necessita condicionalmente de uma estrutura 3D da proteína alvo a qual pode ser obtida de bancos de dados como o PDB. Muitos estudos vêm sendo publicado com uso de docking molecular, na descoberta de análogos de estruturas já conhecidas, a exemplo o captopril, um medicamento anti-hipertensivo de grande uso clínico. Os antivirais saquinavir, sitonavir, indinavir e zanamivir são exemplos de fármacos obtidos por modelagem molecular, além de outros como aliscireno (medicamento anti-hipertensivo), boceprevir (inibidor de protease usado para o tratamento da hepatite C), nolatrexed (em ensaio clínico de fase III para o tratamento do câncer de fígado).26,27

Devido à urgência por um tratamento adequado ao combate do SARS-CoV-2, vários alvos terapêuticos foram cogitados e alguns estudos mostraram-se promissores. Análogos estruturais de lopinavir e favipiravir foram projetados por Rafi e colaboradores28 na busca por inibidores de Mpro e RdRp, respectivamente. Cinco moléculas foram propostas e o resultado do docking molecular mostrou fortes interações com os resíduos de aminoácidos do sítio catalítico, assim como boas propriedades farmacocinéticas. Mais tarde, Singh e colaboradores29 não só avaliaram virtualmente um composto frente a protease Mpro, mas também sintetizaram a molécula e demonstraram a sua atividade inibitória in vitro, confirmando os dados obtidos por meio do docking molecular e demais técnicas da bioinformática.

Uma vez que os métodos in silico, como o docking molecular, são comumente utilizados no planejamento e desenvolvimento de medicamentos, os estudantes do curso de Farmácia devem ter contato com recursos computacionais no decorrer da graduação para que haja formação de um profissional que esteja habilitado para atender às novas tendências do mercado, isto é, farmacêutico com perfil multidisciplinar capaz de analisar propriedades moleculares, preparar alvos e ligantes, além de interpretar os dados gerados pelos diversos softwares disponíveis.30,31

Ainda, a utilização de ferramentas computacionais em aulas práticas pode ser de extrema relevância no processo educacional. Porém, vale ressaltar que o software por si só não possui a capacidade de estimular a aprendizagem, sendo necessário que a integração desses recursos na prática pedagógica esteja associada a estratégias que visem facilitar e potencializar a construção do conhecimento.24 Como esses programas são capazes de simular situações que dificilmente poderiam ser reproduzidas no ambiente real, a compreensão dos conceitos teóricos mais complexos ministrados em sala de aula pode ser adquirida de forma mais lúdica pelos imagens geradas pelos softwares.32,33

Ademais, na perspectiva de metodologias ativas, torna-se fundamental que os alunos tenham a oportunidade de debater suas ideias, inclusive diante de pesquisadores da área, e não meramente apresentá-las ou entregá-las na forma de trabalho. Nesta experiência, os estudantes puderam discutir com um farmacologista e um químico medicinal vários aspectos de suas ideias, podendo, portanto, aprimorá-las e sanar algumas dúvidas. Não obstante, os melhores projetos foram selecionados pela equipe da disciplina e avaliadores para receberam suporte para publicação, trazendo mais esse benefício acadêmico para os estudantes.

 

CONCLUSÃO

Nota-se que o docking molecular é uma ferramenta útil não só nas etapas que compõem o planejamento e desenvolvimento de um fármaco, mas também no processo educacional, auxiliando na fixação dos conhecimentos transmitidos em sala de aula por simular situações que por vezes são de difícil compreensão pelo aluno. Dessa maneira, formam-se profissionais farmacêuticos multifacetados e aptos para realizarem as atividades exigidas no mercado de trabalho. Tendo como plano de fundo o avanço desenfreado da pandemia de COVID-19 nos últimos anos, a triagem computacional de moléculas bioativas contra o vírus é de extrema relevância.

De acordo com os resultados obtidos nesta experiência, pode-se inferir que os derivados KAED, QUED e GEND possuem boa afinidade com Neuropilina-1, TMPRSS2 e 3CLpro/Mpro, respectivamente, mostrando fortes interações com sítio ativo, o que permite a inibição da enzima, e consequentemente, impede a replicação viral durante a infecção por SARS-CoV-2. As demais moléculas propostas podem ser utilizadas em estudos posteriores visando melhoria da afinidade com as respectivas macromoléculas, visto que apresentaram perfil farmacocinético adequado.

Dessa forma, os estudantes foram desafiados a usar os conhecimentos aprendidos em sala de aula para tentar solucionar um problema real da sociedade em que estão inseridos, dentro da perspectiva de sua futura profissão. Neste caso em específico, ainda conseguiu-se relacionar a importância do desenvolvimento de fármacos com a necessidade de agregar valor à flora brasileira, especialmente a amazônica, para que o Brasil não seja tão dependente de tecnologia estrangeira no seu sistema de saúde. Em suma, foi uma experiência agregadora em vários sentidos, que mostrou como a Química Medicinal é ciência complexa e multifacetada, sendo uma das disciplinas mais importantes do curso de Farmácia.

 

MATERIAL SUPLEMENTAR

O tutorial para a realização do docking molecular, segundo a metodologia adotada neste trabalho, está disponível em http://quimicanova.sbq.org.br, na forma de arquivo pdf, com acesso livre.

 

AGRADECIMENTOS

Os autores agradecem à Universidade Federal do Amazonas (UFAM), em especial à Faculdade de Ciências Farmacêuticas, campus Manaus, por todo suporte. Agradecem também aos Professores Carlos Klinger Rodrigues Serrão (Universidade Nilton Lins) e François Germain Nöel (Universidade Federal do Rio de Janeiro) por sua participação como avaliadores dos projetos apresentados pelos estudantes. Este trabalho foi desenvolvido durante o estágio à docência da primeira autora, pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Farmacêuticas da UFAM, sob a orientação da Profa. Dra. Fernanda Guilhon-Simplicio.

 

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