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Questões regulatórias sobre a desinfecção da água e o impacto da geração de DBPs na qualidade da água tratada Regulatory issues on water disinfection and the impact of DBP generation on drinking water quality |
Beatriz De Caroli Vizioli; Cassiana Carolina Montagner*
Departamento de Química Analítica, Instituto de Química, Universidade Estadual de Campinas, 13083-970 São Paulo - SP, Brasil Recebido em: 04/10/2022 *e-mail: ccmonta@unicamp.br Drinking water disinfection has been viewed as one of the major advances in public health protection in history. However, while it has been very successful in assuring microbiological safety, disinfection also brought relevant concerns about chemical safety and the potential unintended health hazards associated with disinfection byproduct (DBP) exposure. DBPs represent one of the most important groups of chemical compounds to which humans are exposed through drinking water, as epidemiological studies have consistently associated long-term exposure with multiple adverse health effects. It is established that disinfection is an essential component of providing microbiologically safe drinking water and shall never be compromised. Yet, chemical safety regarding DBP exposure remains a largely uncovered and highly discussed topic. Several DBPs have been reported in the past few decades, yet research on formation, toxicity and occurrence remains scarce for most compounds. Also, for each identified DBP, many remain undiscovered. In view of an ever-growing list of DBPs and the existing gaps in available research, identifying overall driving agents of toxicity is still a major challenge for public health protection. This review attempts to provide an insight on contemporary issues regarding the overall safety of drinking water and the trade-off between microbiological and chemical risks, considering current challenges in water and sanitation access and existing regulations. INTRODUÇÃO A desinfecção da água é considerada um dos maiores avanços na proteção da saúde pública da história da humanidade.1 A utilização de cloro para a desinfecção da água tratada começou esporadicamente na Europa no final do século XIX, mas seu uso contínuo foi introduzido apenas no início do século XX.2,3 Até então, as técnicas de tratamento anteriormente adotadas não garantiam o abastecimento de água microbiologicamente segura.4 A etapa de desinfecção, portanto, introduziu um método barato e facilmente reprodutível para garantir a segurança microbiológica da água. Ao longo dos anos, tal prática proporcionou inúmeros benefícios, reduzindo consideravelmente a transmissão de doenças infecciosas de veiculação hídrica que representavam sérias ameaças à saúde pública, e efetivamente aumentando a longevidade da população.2,3 A desinfecção constitui a etapa do tratamento cuja função principal é a de promover a destruição, remoção ou inativação de micro-organismos patogênicos a um nível em que não haja riscos significativos. Além disso, a desinfecção também possui a função de auxiliar no controle de outros micro-organismos que conferem cor, sabor e odor à água (através da geração de produtos de seu metabolismo, decomposição e aumento de população), ou promovem a formação de cianotoxinas (metabólitos secundários produzidos por algumas espécies de cianobactérias que possuem propriedades hepatotóxicas, neurotóxicas, citotóxicas, dermatotóxicas ou irritantes).5-7 A desinfecção pode ser realizada por meio da adição de agentes desinfetantes físicos, químicos, ou uma combinação de ambos. Os métodos físicos para a desinfecção da água consistem na aplicação direta de energia sob a forma de calor ou luz, incluindo exposição a calor, radiação UV-Vis, feixe de elétrons, raios X e raios gama. Com exceção da radiação UV-Vis, os processos de desinfecção física não são comumente utilizados em larga escala, pois a eficácia da desinfecção de tais técnicas está ligada essencialmente à qualidade da água bruta, e principalmente porque os métodos físicos não são capazes de garantir o efeito residual do desinfetante.8-12 Já os métodos químicos para desinfecção consistem na aplicação de agentes desinfetantes químicos na água. Atualmente, o cloro é o desinfetante mais adotado no mundo, principalmente utilizado na forma de cloro inorgânico como gás cloro (Cl2) e hipoclorito de sódio (NaClO) ou cálcio (Ca(ClO)2), mas também utilizado na forma de cloro orgânico como dicloroisocianurato de sódio (C3Cl2N3NaO3) e ácido tricloroisocianúrico (C3Cl3N3O3). Contudo, outros oxidantes químicos como cloraminas (NH2Cl, NHCl2 e NCl3), dióxido de cloro (ClO2) e ozônio (O3) vêm sendo cada vez mais empregados nas estações de tratamento.2,12-15 No tratamento de água, a adição de desinfetante é uma etapa obrigatória, realizada ao fim do tratamento (pós-tratamento).16 Esta etapa é fundamental para conter agentes patogênicos remanescentes do tratamento e fornecer uma concentração residual de segurança do desinfetante, necessária para constituir uma barreira sanitária contra eventual recontaminação microbiológica ao longo do sistema de distribuição.11 Entretanto, a adição de desinfetantes químicos no início do processo (pré-tratamento) é uma prática eletiva, porém bastante comum para induzir uma desinfecção primária. O pré-tratamento aumenta a eficiência do tratamento de água, uma vez que o desinfetante passa a ter um tempo de contato maior durante o processo, além de auxiliar na remoção da matéria orgânica e inorgânica da água, evitar a corrosão ou incrustação dos sistemas de tratamento, evitar a formação de espumas, remover óleos e gorduras e aumentar a eficiência das etapas de coagulação e filtração.14,15,17,18 Já no tratamento de esgoto, a etapa de desinfecção é classificada como tratamento terciário e é utilizada para garantir uma maior segurança microbiológica para o corpo hídrico receptor.2 Embora também eletiva, a adoção da desinfecção no tratamento de esgoto é cada vez maior dada a crescente deterioração das fontes de abastecimento de água para uso humano, e pode ser especialmente benéfica quando o efluente tratado é descartado em ecossistemas aquáticos sensíveis.17,19 Os desinfetantes, tanto físicos quanto químicos, são altamente reativos, e sua eficácia deriva da capacidade de provocar distúrbios na atividade microbiana que promovam a redução ou término da propagação dos micro-organismos patogênicos.20 Contudo, a mesma característica que confere aos desinfetantes a capacidade de promover o controle microbiológico também faz com que eles participem de reações paralelas não-intencionais com compostos orgânicos e inorgânicos presentes na água, resultando na formação de uma vasta gama de compostos indesejáveis e potencialmente tóxicos chamados de subprodutos de desinfecção (DBPs, disinfection byproducts).18,21-29 Segurança microbiológica versus segurança química: o trade-off da desinfecção da água tratada A etapa de desinfecção, entre outras vantagens, promove a segurança microbiológica da água, porém ao custo de promover a formação não-intencional de DBPs. Desse modo, a desinfecção provoca um conflito de escolha e uma consequente relação de compromisso entre o risco microbiológico e o risco químico, comumente chamada de trade-off.18,30-34 Décadas da prática de desinfecção da água mostram que o risco de uma água desinfetada é consideravelmente menor do que o risco microbiológico de uma água não desinfetada.35-37 Assim, apesar da abundância de contaminantes químicos presentes na água, a qualidade microbiológica sempre deve ter precedência sobre a qualidade química.6 Ao abordar a contribuição de compostos químicos para a incidência de doenças em seres humanos, as pesquisas iniciais em segurança química da água tendiam a se concentrar principalmente em riscos agudos. Assim, a ausência de efeitos adversos associados aos DBPs detectáveis a curto prazo foi inicialmente considerada como evidência de que a presença de tais compostos não apresentaria riscos. No entanto, ao contrário do risco agudo relacionado a doenças infecciosas de veiculação hídrica, a maioria dos contaminantes químicos, incluindo DBPs, apresenta um risco crônico que exerce efeitos adversos após períodos prolongados de exposição.38 A Figura 1 traz uma representação qualitativa de ambos os riscos associados à prática de desinfecção da água. O risco microbiológico relacionado a doenças infecciosas de veiculação hídrica é extremamente alto quando não há a prática de desinfecção, e cai rapidamente para níveis mais seguros, mesmo com níveis mínimos de desinfecção. À medida em que o nível de desinfecção aumenta, o risco microbiológico continua a cair vagarosamente, embora nunca seja nulo, pois a desinfecção não implica, necessariamente, a eliminação completa da vida microbiana presente na água (esterilização). Por outro lado, o risco químico não é nulo quando não há prática de desinfecção, uma vez que existe um pequeno risco relacionado à matéria orgânica e inorgânica presente na água antes da etapa de desinfecção. Desse modo, níveis iniciais de desinfecção promovem uma diminuição do risco químico, uma vez que a utilização do desinfetante também pode promover o controle da matéria orgânica e inorgânica. Contudo, o risco químico passa a aumentar rapidamente com o aumento do nível de desinfecção devido à formação dos DBPs.39 Claramente, o desencorajamento da prática de desinfecção traz um risco microbiológico muito elevado. Porém, a sobredosagem de desinfetante também não é uma solução justificada, pois a esterilização é impraticável, uma vez que requer altos níveis de desinfecção e dificilmente é mantida ao longo do sistema de distribuição.11 Desse modo, a sobredosagem não garante a eliminação completa do risco microbiológico nos sistemas de abastecimento público e ainda favorece o aumento do risco químico.
Figura 1. Relação entre nível de desinfecção e riscos associados. Cinza escuro: risco microbiológico; cinza claro: risco químico (adaptado da referência 39)
Embora avaliações quantitativas do balanço entre o risco microbiológico e o risco químico sejam escassas,40,41 a ponderação dos riscos diante do debate "risco químico versus risco biológico" justifica os benefícios da desinfecção para a saúde pública no controle de doenças infecciosas de veiculação hídrica,35,37,41 especialmente em países cujo fornecimento de água microbiologicamente segura e esgotamento sanitário adequado ainda são grandes desafios da saúde pública. Em tais países, assim como no Brasil, as taxas de morbidade e mortalidade relacionadas a doenças infecciosas de veiculação hídrica são bastante elevadas e superam consideravelmente às relacionadas a compostos produzidos durante a desinfecção da água. Isso significa que o controle e redução de DBPs gerados não deve, de forma alguma, implicar a diminuição na eficiência do processo cujo propósito básico é o de garantir à população uma água segura de micro-organismos patogênicos. No entanto, isso também não significa que o risco químico apresentado pelos DBPs seja irrelevante.21,42 Os DBPs representam um aspecto relativamente novo e complexo do multifário desafio da qualidade da água. Portanto, o tratamento de água deve ser planejado para minimizar a exposição dos DBPs sem que o papel benéfico da desinfecção seja comprometido. O delicado equilíbrio entre diminuir o risco químico sem comprometer a qualidade microbiológica para garantir efetivamente uma água segura é bastante raro. Cada aspecto do processo de tratamento de água, desde a captação da água bruta até a distribuição da água tratada, gera impacto sobre o trade-off entre o risco microbiológico e o risco químico. Assim, a fim de gerenciar ambos os riscos, torna-se necessária a adoção de uma abordagem holística capaz de atender às particularidades de cada sistema de tratamento de água, como a qualidade da água bruta, os processos de tratamento adotados e a qualidade final da água tratada.17 A identidade dos DBPs Os primeiros DBPs descobertos foram os trihalometanos (THMs), simultaneamente identificados por Rook e Bellar et al.43,44 em água desinfetada com cloro, em 1974. Desde o início do século XX, a prática de desinfecção fora adotada de maneira incontestável por muitos anos. À época, presumia-se que o tratamento da água tal qual era adotado seria suficiente para fornecer água tratada de uma maneira totalmente segura e consistente. No entanto, a presença destes compostos em água tratada gerou uma crescente discussão sobre seus possíveis efeitos adversos à saúde humana.45,46 Na década de 1980, os avanços na pesquisa analítica levaram à descoberta de outros DBPs, como os ácidos haloacéticos (HAAs), furanonas cloradas como MX (3-cloro-4-(diclorometil)-5-hidroxi- 2(5H)-furanona) e seus análogos, e os DBPs inorgânicos bromato e clorito.46 Desde então, a pesquisa evoluiu na identificação, ocorrência, formação e toxicologia de novos DBPs, na tentativa de atribuir os fatores de toxicidade responsáveis pelos efeitos adversos observados.47-49 Atualmente, existem mais de 700 compostos quimicamente distintos descritos na literatura para os principais desinfetantes usados (cloro, cloraminas, dióxido de cloro, ozônio e combinações),50 com uma ampla diversidade de respostas tóxicas como carcinogenicidade, mutagenicidade, teratogenicidade, neurotoxicidade, citotoxicidade, genotoxicidade, disrupção endócrina, entre outras.51-64 Os primeiros estudos de ocorrência de DBPs revelaram que THMs e HAAs são os principais grupos formados após o processo de desinfecção com cloro e, portanto, a pesquisa foi fortemente direcionada a esses compostos nas décadas seguintes.48,62 Contudo, estudos mais recentes têm demonstrado que uma proporção substancial de DBPs ainda não foi identificada, e que esses compostos desconhecidos possam responder pela maior parte da carga total de DBPs presente na água.65,66 Além disso, estudos toxicológicos indicam que THMs e HAAs clássicos não estão entre os DBPs mais tóxicos e que vários DBPs emergentes (EDBPs), em especial compostos contendo nitrogênio e iodo (I-THMs, I-HAAs, nitrosaminas, halonitrilas, halonitroalcanos, haloaminas, haloamidas, halocetonas, haloaldeídos, haloálcoois, haloésteres, haloéteres, entre outros), são de maior preocupação.56,67,68 Desse modo, embora os DBPs constituam uma classe cuja importância toxicológica seja reconhecida, existe uma incerteza significativa sobre a identidade química e toxicológica dos compostos aos quais as pessoas estão realmente expostas. Isso ocorre porque, dentre os inúmeros DBPs já relatados na literatura, apenas uma pequena fração foi foco de extensas pesquisas de formação e ocorrência, e uma fração menor ainda foi submetida a estudos epidemiológicos e toxicológicos que comprovem seus efeitos adversos à saúde. Mais ainda, para cada DBP devidamente caracterizado, diversos permanecem não identificados.24,25,47,69 A identificação química de DBPs em água tratada possui alguns entraves: i) a identificação de todas as espécies de diferentes classes químicas formadas após o processo de desinfecção pode ser intensiva, trabalhosa e requerer diferentes métodos analíticos devido às diferentes propriedades físico-químicas dos compostos; ii) os DBPs, assim como outros contaminantes ambientais, ocorrem em níveis traço e, portanto, sua identificação é limitada pelo avanço tecnológico dos instrumentos analíticos e métodos de preparo de amostra capazes de detectá-los; iii) ao contrário de outros contaminantes ambientais como fármacos, pesticidas e diversos outros produtos químicos de uso doméstico e industrial, poucos DBPs possuem dados espectrais de massa e padrões de referência comercialmente disponíveis e iv) muitos DBPs não são conhecidos de antemão, uma vez que não é possível prever a maioria dos compostos presentes na água tratada, devido à complexidade e variabilidade de seus precursores.27,70-76 Desse modo, apesar das centenas de compostos identificados nas últimas décadas, ainda é necessário um grande esforço para identificar todos os compostos que podem estar presentes na água após o tratamento. Atualmente, a epidemiologia é a abordagem mais precisa para prever a ação tóxica de um composto em humanos. Dada a presença de um contaminante na água, estudos epidemiológicos podem determinar se a exposição ao composto resultou ou não em efeitos adversos.77,78 As vantagens de estudos epidemiológicos são claras: a espécie experimental é naturalmente relevante e não é necessário fazer excessivas extrapolações, uma vez que os dados de resposta são obtidos em doses humanamente condizentes.79 Estudos epidemiológicos em diferentes países têm consistentemente associado o consumo prolongado de água desinfetada com cloro a um risco aumentado de câncer e a diversos outros efeitos adversos de ordem neurológica, imunológica, reprodutiva, respiratória, cardiovascular, hepática, renal, entre outras.80-94 Conforme estudos toxicológicos e epidemiológicos demonstram não haver nenhuma evidência da associação entre os riscos à saúde e a exposição aos desinfetantes, os efeitos adversos observados têm sido exclusivamente associados aos DBPs. Contudo, conduzir estudos epidemiológicos para identificar os DBPs responsáveis pelos efeitos adversos na saúde humana tem se mostrado um desafio bastante complexo, pois: i) os estudos disponíveis frequentemente não possuem um amplo grupo populacional para determinar se existe uma diferença estatisticamente significativa entre indivíduos expostos e não expostos; ii) os estudos disponíveis frequentemente têm pouca ou nenhuma informação sobre a dose e duração da exposição; iii) os indivíduos em estudo raramente são expostos a apenas um composto, impedindo a avaliação da contribuição individual de cada composto para a incidência da doença e iv) outras variáveis como uso de álcool, tabaco, drogas lícitas e ilícitas e doenças pré ou coexistentes podem interferir nos resultados observados.95-97 Além dos estudos epidemiológicos, muito do que se sabe sobre os efeitos tóxicos de contaminantes químicos em humanos vem de relatos sobre exposição ocupacional, ingestão (acidental ou proposital) e acidentes industriais.98 Porém, para a maioria dos DBPs, pouca informação quantitativa é obtida diretamente da exposição em humanos. E, atualmente não existem dados toxicológicos suficientes para definir quais DBPs induzem a maior parte da toxicidade observada na água tratada.50 Normalmente, os testes empregados para a avaliação de efeitos toxicológicos dos DBPs baseiam-se principalmente na exposição de organismos inteiros (testes in vivo) a compostos individuais ou misturas simples. Embora mais cara, demorada e complexa, esta abordagem produz dados particulares de cada DBP.99 A análise toxicológica individual de cada composto é mais detalhada e robusta, e permite identificar compostos prioritários a serem incluídos em regulações.65,100-103 Tais estudos, extensivamente desenvolvidos principalmente na segunda metade do século XX, permitiram o desenvolvimento de legislações para THMs, HAAs, bromato e clorito, e colocam as nitrosaminas como o foco atual da discussão regulatória.104 No entanto, principalmente devido a questões éticas e econômicas que surgem de testes in vivo, os dados toxicológicos são bastante limitados para diversos EDBPs que vêm sendo descobertos recentemente.50 Desse modo, a determinação de um composto ou grupo de compostos toxicamente relevantes, diante da possibilidade de inúmeros DBPs conhecidos e desconhecidos, torna-se uma tarefa cada vez mais árdua. O recente interesse na toxicidade de EDBPs vem incentivando o desenvolvimento de metodologias baseadas na toxicologia in vitro, in chemico e in silico, utilizadas como alternativas mais simples para auxiliar a priorização de compostos e identificar possíveis agentes direcionadores de toxicidade (toxicity drivers).30,58,65,68,105-121 A incerteza sobre a identidade dos agentes direcionadores de toxicidade existe principalmente por conta da divergência entre estudos toxicológicos e epidemiológicos, isto é, os resultados de estudos toxicológicos não são capazes de explicar completamente os efeitos adversos observados em estudos epidemiológicos.45 Uma possível explicação para essa discrepância é que, nas últimas décadas, os estudos epidemiológicos utilizaram principalmente compostos mais representativos de THMs e, em menor grau, HAAs, como indicadores para a exposição geral a DBPs, por serem os DBPs mais prevalentes em água clorada. Todavia, dados epidemiológicos relacionados à exposição a EDBPs são particularmente escassos.122 Outra possível explicação é que estudos toxicológicos geralmente avaliam os efeitos na saúde causados por compostos individuais ou misturas simples, enquanto na realidade as pessoas são expostas a misturas altamente complexas de DBPs.123-125 A exposição simultânea a uma ampla variedade de DBPs e seus efeitos tóxicos combinados desempenha um papel fundamental na toxicidade total da água, mas são insuficientemente explorados. Quando considerados individualmente, nenhum DBP (ou classe de DBPs) parece explicar os efeitos observados em estudos epidemiológicos. Pouco se sabe sobre os efeitos tóxicos da exposição simultânea a estes compostos.58 As misturas têm composição variável no tempo e espaço,124 e o resultado é que a água tratada não pode ser facilmente caracterizada quanto à sua toxicidade através da identificação de poucos DBPs específicos. A complexidade das misturas em que a população é exposta impede a atribuição de causalidade a qualquer composto ou grupo de compostos. Isso suporta evidências crescentes de que os DBPs podem agir em conjunto para induzir um efeito biológico. Além disso, a interação entre os compostos também pode alterar o modo de ação e os órgãos-alvo de DBPs individuais.58,123 Por fim, embora a ingestão seja considerada a principal via de exposição aos DBPs, a literatura sugere que esta não é a única forma relevante de contato.126 Embora poucos estudos toxicológicos e epidemiológicos incluam vias alternativas de exposição,96 a alta volatilidade e permeabilidade de certos DBPs leva a uma contribuição significativa das vias de inalação e absorção dérmica durante a higiene pessoal ou atividades de lazer.96,107,127-133 Aspectos gerais da regulação de DBPs em água tratada Desafios contemporâneos A regulação de DBPs em água tratada para consumo humano, assim como a de todo composto químico, baseia-se no estabelecimento de padrões ou diretrizes individuais de qualidade química da água.6,134,135 O monitoramento e controle dos compostos é realizado através de análises químicas e comparação posterior com os valores de referência regulatória. Se os compostos avaliados estiverem conformes, i.e., se os valores de concentração forem inferiores aos valores máximos permitidos (VMPs) estabelecidos, a água é considerada quimicamente segura e não há (presumivelmente) nenhum risco à saúde humana.6 Nos últimos anos, entretanto, muitas questões vêm sendo levantadas sobre as regulações existentes de DBPs, uma vez que os compostos atualmente regulados não são capazes de explicar adequadamente os possíveis impactos à saúde e, portanto, garantir que a água atenda aos padrões previstos nos instrumentos legais não necessariamente garante sua segurança química.50,57,136 Alguns desafios específicos da regulação de DBPs incluem a identificação de compostos e misturas de maior risco, a previsão de tendências esperadas devido a processos de mudança social, como o aumento da população ou mudança de hábitos de consumo, e o desenvolvimento de ferramentas para a gestão da qualidade química da água. Embora as regulações atuais possam contribuir, mesmo que limitadamente, para a segurança química da água tratada, a crescente conscientização da ampla gama de DBPs e de suas possíveis implicações para a saúde pública contesta muitos aspectos da regulação atual. A seguir, serão abordadas as principais questões relacionadas à regulação de DBPs que vêm direcionando tomadas de decisões em políticas públicas em todo o mundo. DBPs clássicos versus DBPs emergentes Os DBPs mais comumente regulados no mundo, como THMs, HAAs, bromato e clorito, representam uma fração muito pequena do universo de compostos que podem ocorrer em uma amostra de água tratada. Porém, apesar de dados de ocorrência apontarem a detecção de diversos outros EDBPs mais tóxicos em água tratada, as regulações atuais não sofreram modificações significativas em mais de 40 anos do início da regulação de DBPs, com exceção da regulação da NDMA em alguns países como o Brasil.16,50,135 Nas décadas seguintes ao início da regulação de DBPs, a dificuldade em atingir a conformidade regulatória, principalmente de THMs e HAAs, incentivou mudanças nas práticas de desinfecção como a adoção de desinfetantes alternativos.6,35,137 No entanto, os EDBPs formados por processos alternativos de desinfecção mostraram ser motivo de maior preocupação. Por exemplo, embora a utilização de cloraminas possa reduzir substancialmente a formação de THMs e HAAs, ela favorece a formação de N- e I-DBPs altamente tóxicos.32,138-141 A qualidade da água bruta Outro fator extremamente atuante na qualidade química da água tratada é a escassez hídrica que o mundo vivencia. Culturalmente tratada como um bem infinito, a água é um dos recursos naturais que mais tem dado sinais de que não subsistirá por muito tempo às intervenções humanas no meio ambiente. A atividade antropogênica predatória impulsiona a crise hídrica atual, principalmente nos grandes centros urbanos, através de dois fenômenos convergentes: o aumento da demanda por água e o aumento da depleção dos recursos hídricos.142,143 O aumento global da demanda de água acompanha vários fatores como o crescimento populacional, o aumento da urbanização e da industrialização, a expansão e intensificação da agricultura e pecuária, o crescimento da demanda de energia, o desenvolvimento econômico e a mudança dos padrões de consumo, fatores que promovem uma maior dependência de fontes hídricas degradadas e de processos de dessalinização e reuso (direto ou indireto) da água.122,144-148 Já a depleção dos recursos hídricos resulta diretamente do aumento exacerbado de fontes de poluição como escoamento agrícola e urbano, efluentes de mineração e indústrias extrativas, derramamentos industriais, desflorestamento, despejo ilegal de resíduos sólidos, gestão inadequada de águas residuais municipais, industriais e hospitalares, e de mudanças climáticas que causam altas variações na distribuição espaço-temporal da água, aumento de desastres naturais, encolhimento de corpos hídricos superficiais e subterrâneos, e intrusão de sais em corpos hídricos de água doce.148-150 À medida em que os recursos hídricos tornam-se cada vez mais vulneráveis, o tratamento de água convencional torna-se cada vez menos eficaz em garantir efetivamente a segurança química da água. Além disso, a crescente concentração da matéria orgânica, além de sua alta complexidade e variabilidade espaço-temporal nos corpos hídricos, propicia cada vez mais a formação de DBPs nunca antes conhecidos.151,152 Misturas A regulação de DBPs baseada no monitoramento individual de compostos traz indiretamente algumas suposições: i) a avaliação de risco de compostos regulados individualmente é confiável e precisa; ii) misturas de compostos regulados não apresentam risco considerável e iii) compostos não-regulados não apresentam risco considerável em uma mistura com compostos regulados.153,154 Nos últimos anos, estudos vêm consistentemente demonstrando que padrões individuais de DBPs não são suficientemente protetivos contra os possíveis efeitos da mistura, apontando a necessidade de ferramentas regulatórias capazes de avaliar como a sua composição pode afetar a toxicidade total observada.155-165 A avaliação de risco e a regulação de misturas em água tratada avançam de forma lenta, e falta de informação provavelmente continuará sendo uma questão central no futuro próximo. Alguns dos principais entraves a serem superados incluem: i) a infinita combinação de compostos que podem ocorrer na água tratada; ii) a falta de dados toxicológicos de DBPs e misturas de DBPs; iii) a probabilidade de que, para qualquer mistura complexa, sempre haverá compostos para os quais não existem dados toxicológicos suficientes para a estimação de riscos e iv) a probabilidade de que, para qualquer mistura complexa, sempre haverá compostos para os quais não existem métodos analíticos para realizar sua detecção e quantificação.154,156,166,167 O desenvolvimento regulatório Normalmente, para que um composto torne-se um candidato à regulação, i) ele deve apresentar um potencial efeito adverso à saúde humana; ii) ele deve poder ocorrer em sistemas de abastecimento público em níveis de frequência e concentração preocupantes para a saúde pública e iii) sua regulação deve apresentar uma oportunidade significativa para a redução do risco à saúde pública.168 A regulação de um composto depende fundamentalmente da disponibilidade de: i) estudos toxicológicos e/ou epidemiológicos que avaliem seus efeitos adversos à saúde e identifiquem os efeitos nas subpopulações mais sensíveis; ii) dados nacionalmente representativos de sua ocorrência; iii) dados de vias de exposição; iv) métodos analíticos amplamente disponíveis; v) capacidade laboratorial suficiente para conduzir o monitoramento em todo o país; vi) tecnologias de tratamento viáveis para realizar seu controle e/ou remoção; vii) dados de como a exposição a outros compostos simultaneamente pode afetar sua toxicidade; viii) dados para estimar os benefícios associados à redução do risco de exposição e ix) dados para estimar o custo necessário para a conformidade regulatória.168 Embora o desenvolvimento regulatório possa ser visto como um processo lógico e analítico, a base científica que o embasa é muitas vezes insuficiente. Para a maioria dos DBPs, tais informações geralmente não estão disponíveis. A escassez de dados químicos e toxicológicos precisos, robustos e sistemáticos tem sido um problema recorrente para o desenvolvimento regulatório, dificultando a elaboração de regulações relevantes e realistas e levando à extrapolação de potenciais impactos à saúde a partir de dados incompletos.169 As regulações geralmente requerem muito tempo e recursos para serem desenvolvidas, e seu desenvolvimento baseia-se em uma grande compilação de ensaios laboriosos de toxicologia e dados de exposição de magnitude nacional que justifiquem uma oportunidade significativa de melhoria da regulação.50,170-172 No entanto, isso acaba por trazer questionamentos sobre a possível necessidade de um Princípio da Precaução (Precautionary Principle), comumente adotado na Europa para pesticidas.173-175 O Princípio da Precaução estabelece que, em caso de ameaças irreversíveis à saúde da população, a incerteza científica não deve ser usada como motivo para adiar medidas preventivas. Em outras palavras, se houver uma forte suspeita de que determinado composto possa ter consequências prejudiciais irreversíveis à saúde, deve-se optar por realizar o controle do composto em vez de esperar por evidências científicas incontestáveis.173 Além disso, a obrigatoriedade da condução de testes in vivo para fins de desenvolvimento regulatório também traz alguns questionamentos. O inevitável abatimento de animais experimentais traz sérias preocupações éticas. Ademais, a realização dos ensaios frequentemente requer muitos indivíduos-teste, impedindo a realização de replicatas.118 Outros problemas surgem durante a seleção da dose e duração dos testes de toxicidade in vivo. A maioria dos estudos toxicológicos é realizada sob condições experimentais de altas doses e períodos curtos de exposição, devido principalmente a razões experimentais e práticas. O cenário de exposição a DBPs consiste em baixas doses durante um longo período e, embora as informações sobre a toxicidade aguda de um composto químico possam ser muito úteis em situações de emergência, tais informações são de pouca utilidade para prever efeitos da exposição diária ao longo de muitos anos. Na prática, os efeitos crônicos de um composto raramente apresentam qualquer semelhança com os efeitos agudos.176 Uma das razões da lenta adaptação aos avanços da ciência e tecnologia é a resistência na mudança de diretrizes. Décadas de experiência e harmonização internacional auxiliam na interpretação e aceitação dos dados de toxicologia in vivo.177 Todavia, novas tecnologias estão emergindo. A abordagem reducionista da toxicologia in vitro permite ensaios de baixo custo e alta replicabilidade, miniaturização e automação, enquanto as abordagens da toxicologia in chemico e in silico auxiliam na identificação e priorização de compostos de risco trazendo direcionamento aos testes posteriores.178-189 Por fim, existe um impulso em direção à adoção da triagem de alto rendimento (HTS, high-throughput screening), método de experimentação científica que permite a condução simultânea de testes automatizados para um grande número de compostos.190-192 Apesar do crescente interesse e aceitação de alternativas à toxicologia in vivo para fins regulatórios, sua substituição também produz uma hesitação por conta da possibilidade de se regular compostos desnecessariamente, dada a dificuldade em se atribuir um fator de risco à saúde humana com base apenas em ensaios alternativos. Por exemplo, um composto que apresente algum tipo de toxicidade em uma cultura celular não necessariamente provocará efeitos adversos a um organismo como um todo.50 Contudo, estes ensaios permitem comparações precisas da toxicidade relativa de uma série de compostos.56 As respectivas utilidades e limitações defendem muito mais a adoção de uma abordagem combinada do que qualquer uma isoladamente. Escopo da regulação Inevitavelmente, a regulação de DBPs deve ser restrita em seu escopo, pois conforme o número de compostos regulados aumenta, existe uma dificuldade crescente em atender simultaneamente a vários limites regulatórios individuais.193 Embora o foco em poucas substâncias prioritárias pré-selecionadas possa parecer bastante atrativo, isso traz um alto risco de omissão de outras substâncias mais tóxicas. Diante da ampla variedade de DBPs conhecidos e desconhecidos que podem ocorrer na água tratada com pouca ou nenhuma informação sobre seus potenciais efeitos adversos, e conforme a composição das misturas de DBPs é altamente complexa e variável ao longo do tempo e espaço, o monitoramento individual de compostos mostra-se seriamente limitado para caracterizar adequadamente a qualidade química da água. Por outro lado, o monitoramento excessivamente rigoroso de uma ampla variedade de compostos apresenta várias restrições, pois é excessivamente caro e demorado, pode comprometer a credibilidade e a utilidade da regulação como um todo, e não necessariamente proporciona benefícios à saúde pública.6 Em um futuro próximo, é provável que as regulações se tornem mais rigorosas e incluam outros DBPs. Contudo, a introdução de novos parâmetros pode não ser necessariamente a melhor abordagem em termos de gerenciamento eficaz dos sistemas de tratamento de água. Assim, outras condutas de monitoramento complementares às análises químicas serão necessárias para garantir a qualidade química da água. Inovações e perspectivas As últimas décadas demonstraram que a capacidade analítica em detectar DBPs na água superou totalmente a capacidade de avaliar o risco toxicológico que eles apresentam.65,73,75,105,108,109,116,120,193-201 Contudo, a detecção de um composto não revela nada sobre seus possíveis efeitos adversos à saúde. É provável que futuras regulações necessitem cada vez mais de novas ferramentas que possam efetivamente avaliar os riscos, em vez de permanecer na busca à conformidade de padrões químicos. Algumas alternativas capazes de auxiliar no progresso da regulação de DBPs são discutidas a seguir. Regulação por grupos A regulação de contaminantes químicos em água tratada, na maioria dos países, baseia-se preponderantemente no monitoramento de padrões individuais. Contudo, existem exceções de legislações desenvolvidas para grupos de contaminantes específicos, como algumas classes de DBPs.135 Sob a perspectiva analítica, existem algumas desvantagens no emprego de padrões individuais para contaminantes químicos. O custo do monitoramento para conformidade regulatória é bastante alto, pois é baseado em uma série de métodos analíticos otimizados em função de alvos específicos. Além disso, o foco em poucos compostos legislados também leva à perda de informações significativas da ocorrência de outros compostos de interesse regulatório.202 Desse modo, nos últimos anos, a regulação por grupos vem sendo pauta de discussões entre diversas entidades regulatórias, pois é uma abordagem capaz de acelerar o processo regulatório e aumentar a eficácia das regulações. A regulação por grupos promove uma proteção mais robusta à saúde pública, pois garante o monitoramento simultâneo de uma ampla gama de contaminantes através de um único processo analítico e gerencia os riscos à saúde por meio de um mesmo tratamento de controle e/ou remoção.202 No entanto, a implementação da regulação por grupos pode apresentar diversos desafios. Uma das maiores dificuldades de implementar esta abordagem é como selecionar os compostos a serem regulados por grupos. A extensa lista de DBPs aponta diversos tipos e classes de compostos que podem apresentar diferentes propriedades químicas, ter diferentes efeitos adversos à saúde, exigir diferentes métodos de amostragem, preparo de amostra e análise instrumental, ou requerer diferentes tecnologias para seu controle e/ou remoção.203 Porém, conforme apropriado, é desejável utilizar uma abordagem que selecione contaminantes semelhantes entre si, embora existam diversos quesitos que possam indicar semelhança entre compostos. Algumas abordagens técnicas e procedimentais sugerem que os compostos devem: i) possuir o mesmo tipo de efeito adverso à saúde; ii) ter um efeito adverso significativo à saúde; iii) ocorrer em níveis de concentração semelhantes; iv) ocorrer individualmente e concomitantemente; v) possuir propriedades físico-químicas semelhantes; vi) ser passíveis de análise por um único processo analítico, e/ou vii) possuir a mesma abordagem de tratamento para controle e/ou remoção.203 Historicamente, existem precedentes de regulação de DBPs por grupos, como os THMs e HAAs. O agrupamento de compostos de mesma classe química facilita diversos quesitos técnicos e analíticos para a regulação por grupos, entretanto é preciso selecionar adequadamente os compostos mais relevantes e representativos da classe.202 Os compostos TCM, DBCM, BDCM e TBM são considerados os mais representativos da classe de THMs, pois apresentam maiores níveis de ocorrência e concentração em água tratada. Já a classe de HAAs possui nove compostos representativos comumente legislados: MCAA, DCAA, TCAA, MBAA, DBAA, TBAA, BCAA, BDCAA, DBCAA. Contudo, estudos toxicológicos indicam que THMs e HAAs iodados são consideravelmente mais tóxicos do que seus análogos clorados e bromados.140,204,205 Apesar disso, nenhum I-THM ou I-HAA é contemplado nos respectivos parâmetros atualmente utilizados. Desse modo, a escolha de compostos representativos baseada apenas em níveis de ocorrência e concentração pode prejudicar a inclusão de compostos que possuam efeitos altamente significativos, causando a subestimação de potenciais riscos adversos à saúde. Uma dificuldade bastante importante está relacionada ao desenvolvimento de um único processo analítico capaz de detectar e quantificar todos os compostos de um mesmo grupo.202 A diversidade química dos DBPs restringe consideravelmente o processo analítico e frequentemente traz a necessidade de diferentes tipos de amostragem, preparo de amostra e análise química instrumental. Desse modo, a definição de um grupo com base principalmente na capacidade analítica muitas vezes não traz importância regulatória. Apesar disso, a maioria dos métodos padrão ou oficiais existentes são desenvolvidos de uma maneira bastante ampla, possibilitando a inclusão de novos compostos. Além disso, a extensão do escopo de um método analítico para fins não regulatórios pode ser bastante benéfica, pois fornece dados de ocorrência e concentração de compostos não legislados, mas que possuam interesse regulatório.202 Por exemplo, embora o método oficial U.S. EPA 521 para nitrosaminas tenha sido desenvolvido para sete nitrosaminas específicas (NDMA, NMEA, NPYR, NDEA, NPIP, NDPA e NDBA), diversos estudos já comprovaram a capacidade do método para outras nitrosaminas como NMOR e NDPhA.206,207 Outro exemplo demonstra a aplicação dos métodos oficiais U.S. EPA 551.1 (THMs)208 e 552.2 (HAAs)209 para a análise de análogos iodados.210 Outra dificuldade analítica frequentemente encontrada durante o desenvolvimento de um método para grupos refere-se aos limites de detecção e quantificação.202 A realização do desenvolvimento e otimização de um método para diversos compostos frequentemente termina na escolha da melhor condição para todos os analitos em conjunto. Contudo, isso pode prejudicar a quantificação de um composto em particular que possua maiores dificuldades analíticas para sua detecção e quantificação. Esta questão pode não ser relevante caso os compostos do grupo possuam VMPs bastante superiores à sensibilidade do método. Porém, compostos cujos limites de detecção e quantificação sejam muito próximos aos seus respectivos VMPs podem ter a avaliação do risco comprometida. Além disso, a análise de compostos por grupos pode exigir métodos que abranjam amplas faixas de concentração. Por exemplo, I-THMs e I-HAAs costumam ocorrer em níveis de concentração consideravelmente menores do que seus análogos clorados e bromados.23,204,211 A variação da concentração em ordens de magnitude dificulta o desenvolvimento e otimização de um único método e pode sacrificar a qualidade de diversas figuras de mérito como linearidade, limites de detecção e quantificação, precisão e exatidão. Por fim, outra dificuldade reside na escolha da metodologia utilizada para estabelecer VMPs para grupos. A definição de VMPs para grupos pode ser realizada de várias maneiras, como: i) estabelecer um limite individual para cada composto pertencente ao grupo; ii) estabelecer um limite total da soma de todos os compostos e iii) estabelecer um limite individual para cada composto juntamente com um limite total da soma de todos os compostos.202 No geral, a utilização da abordagem combinada (limites individual e total) pode trazer mais benefícios, pois leva em consideração a toxicidade de cada composto e a toxicidade do grupo como um todo. No entanto, esta abordagem é pouco utilizada, a exemplo dos THMs e HAAs que são comumente regulados apenas pelo limite total da soma de seus compostos representativos. A regulação por grupos traz diversas vantagens, mas sua implementação deve ser cuidadosamente avaliada. Cada grupo a ser considerado apresenta considerações analíticas únicas, porém a escolha dos compostos sempre deve priorizar as oportunidades significativas de proteção à saúde humana, ao mesmo tempo em que traz os benefícios analíticos e econômicos de monitoramento, controle e remoção simultâneos. Regulação de compostos indicadores Um conceito amplamente adotado é a substituição do monitoramento individual de compostos pelo monitoramento de indicadores (surrogates) da mistura.50 Esse conceito parte da suposição de que existe uma correlação na formação de diferentes DBPs (ou classes de DBPs) e que, portanto, a concentração de um composto a ser selecionado como indicador é proporcional à concentração de outros compostos não monitorados, isto é, eles mantêm uma razão constante entre si. Desse modo, o controle de sua formação implica diretamente o controle da formação simultânea de outros compostos, e seu uso como indicador pode facilitar o monitoramento de rotina e simplificar regulações.212 À época da implementação da primeira legislação de THMs, já se entendia que outros DBPs também poderiam ser formados durante o processo de desinfecção da água, porém acreditava-se que a formação de THMs se correlacionava com a formação de outros DBPs de modo geral, e que, portanto, o uso destes compostos como indicadores seria uma métrica adequada para avaliar e controlar a exposição total aos DBPs.50,213 Infelizmente, com o tempo, tal correlação não provou ser sempre verdadeira, resultando na legislação de HAAs e outros compostos alguns anos mais tarde.50,214 Apesar de não serem considerados os principais agentes direcionadores de toxicidade, THMs e, em menor grau, HAAs, são frequentemente usados como indicadores da exposição total a DBPs pela facilidade da análise química e por serem as duas classes mais abundantes de DBPs em água desinfetada com cloro.6,212,215 Desse modo, a adoção de THMs e HAAs como indicadores pressupõe que suas concentrações sejam proporcionais às concentrações de DBPs mais tóxicos presentes na mistura. No entanto, se essa suposição não for verdadeira, isso pode causar uma avaliação incorreta da exposição total e, muitas vezes, a subestimação do risco associado.216,217 De fato, estudos demonstram que, na maioria das vezes, a formação de DBPs mais tóxicos não acompanha a formação de THMs e HAAs. Além disso, tais classes podem não ser as maiores contribuidoras para a concentração total de DBPs após o processo de desinfecção com desinfetantes alternativos. Portanto, a suposição de que a exposição reduzida a estes compostos resulta efetivamente em menores riscos para a população ainda é bastante discutível.212 Embora esta abordagem seja bastante atrativa, existem vários entraves quanto à escolha de indicadores adequados. O conhecimento existente sobre a identidade química e toxicológica dos DBPs ainda é consideravelmente incompleto, somando-se ao fato de que uma proporção substancial de DBPs ainda não foi identificada.24,65 Além disso, a composição altamente complexa e variável das misturas de DBPs dificulta a escolha de indicadores adequados. Por fim, usar um indicador para medir a exposição total a DBPs assume implicitamente que a proporcionalidade entre a concentração do indicador e a concentração da mistura é robusta o suficiente diante de diversas variáveis que podem influenciar a extensão e a variabilidade dos compostos formados, como tipo do manancial, características físico-químicas da água bruta, conteúdo orgânico e inorgânico da água bruta, sazonalidade, características do desinfetante (tipo, dose, tempo de contato e concentração residual), engenharia da planta de tratamento, entre outras.217-222 Atualmente, a pesquisa existente sobre a relação de formação entre compostos não é suficiente para designar DBPs específicos como indicadores, além de sugerir que sua escolha não deve ser universal, e sim especifica de acordo as características dos processos de captação, tratamento e distribuição. Desse modo, a utilização atual de indicadores como THMs ou HAAs é essencialmente pragmática. Parâmetros de caracterização da água Uma possível abordagem regulatória para tratar do risco à exposição total aos DBPs seria incluir parâmetros de caracterização da água capazes de avaliar a formação de compostos como um todo e auxiliar nas estratégias de minimização de DBPs.6,50 As análises em bulk (bulk measurements) são métodos não específicos que fornecem uma estimativa da quantidade total de compostos em função de certas funções presentes em sua composição. Essas análises não permitem a determinação individual de compostos, porém são medições mais rápidas e baratas que fornecem informações significativas sobre a qualidade geral da água.38,223 Alguns exemplos interessantes incluem análises de sólidos suspensos totais (TSS), sólidos dissolvidos totais (TDS), carbono orgânico total (TOC), carbono orgânico dissolvido (DOC), nitrogênio orgânico total (TON), haletos orgânicos totais (TOX, TOCl, TOBr e TOI) e até ensaios mais específicos como o de nitrosaminas totais (TONO).224-231 Outros parâmetros alternativos para o monitoramento de DBPs incluem análises por espectroscopia de absorção no UV-Vis e de fluorescência, que auxiliam na caracterização da matéria orgânica precursora. A extensão da reação do desinfetante com a matéria orgânica não se baseia apenas na concentração dos precursores, mas também com o tipo de percursor presente na água bruta. Portanto, monitorar mudanças na absorbância e fluorescência ao longo do tratamento pode ser uma alternativa simples e rápida para controlar a formação de DBPs.26,232-234A maior vantagem da inclusão destes parâmetros está na facilidade em se fazer o controle da formação total em vez de uma ampla gama de compostos específicos. De fato, esta abordagem permite o monitoramento indireto de diversos DBPs simultaneamente, incluindo compostos não legislados conhecidamente mais tóxicos, compostos que apresentam dificuldades analíticas e compostos ainda desconhecidos, porém de relevância tóxica. Entretanto, esta abordagem invariavelmente também acaba por medir compostos (conhecidos e desconhecidos) de pouca ou nenhuma relevância tóxica e que, portanto, não apresentam riscos significativos.50 Embora as análises em bulk possam ser parâmetros bastante representativos, tais ensaios nem sempre são capazes de descrever adequadamente o grau da resposta tóxica e ser indicativos diretos da segurança química da água. Desse modo, realizar o monitoramento através destas análises poderá apenas fornecer um limite geral da formação de DBPs, mas não necessariamente restringirá a formação de compostos mais tóxicos que apresentam maiores riscos à saúde pública. No geral, estes parâmetros são considerados muito limitados para prever a formação de DBPs com precisão, especialmente para fins regulatórios, pois frequentemente a correlação entre si não demonstra ser estatisticamente significativa em níveis mais genéricos. No entanto, a correlação entre tais parâmetros e a formação de alguns grupos de DBPs tende a ser específica de acordo com as características da água bruta, as etapas e condições do tratamento de água e a qualidade final da água tratada antes da etapa de desinfecção.26,232 Portanto, tais parâmetros, ainda pouco explorados, possuem grande potencial para fornecer uma maneira adicional de prever a formação de DBPs dentro de um sistema de distribuição específico, além de trazer vantagens como a facilidade de análise, bom custo-benefício e a possibilidade de monitoramento em tempo real. Por fim, talvez uma abordagem mais eficaz seria estabelecer uma regulação que promovesse mudanças nas práticas operacionais, pois muito espaço para estratégias de controle de DBPs reside na compreensão de seus precursores. A concentração e o caráter tanto da matéria orgânica quanto da matéria inorgânica presente na água são críticos para determinar a extensão e a variabilidade dos compostos formados. Entender a natureza, fontes, características e reatividade dos precursores auxilia no controle de formação de DBPs ao longo do tratamento. Nesse sentido, a formação de DBPs pode ser potencialmente minimizada através da remoção de seus principais precursores em etapas prévias à desinfecção.67,71,144,221,229,235-238 Ensaios de toxicidade O monitoramento tradicional da qualidade da água (chemical-oriented) muitas vezes não é capaz de explicar completamente a toxicidade total observada em uma amostra de água tratada. Isso requer uma urgente revisão de ferramentas e paradigmas, enfatizando a necessidade de estabelecer padrões de qualidade da água utilizando uma abordagem orientada para toxicidade (toxicity-oriented).176,239,240 À medida em que mais DBPs são identificados, a complexidade inerente das misturas formadas representa um dos maiores desafios na avaliação da exposição total a estes compostos. Nesse sentido, o benefício da adoção de uma abordagem orientada para toxicidade torna-se cada vez mais evidente.241-243 Todas as etapas do tratamento de água, desde a aquisição até a distribuição, possuem um impacto sobre o risco químico gerado. Desse modo, o desenvolvimento e a aplicação de ensaios de toxicidade apropriados que sejam capazes de medir diretamente o impacto total do tratamento na qualidade da água podem permitir a seleção de etapas apropriadas para melhorar a segurança da água através da redução da toxicidade total, fornecer informações complementares sobre os agentes direcionadores da toxicidade observada, e integrar o pensamento de gerenciamento da toxicidade no desenvolvimento de novos projetos de engenharia de qualidade da água.21,176,239,243 Na abordagem orientada para toxicidade, amostras de água tratada pré e pós-desinfecção são submetidas a diversos testes de toxicidade e comparadas entre si. A diminuição da toxicidade na água desinfetada em comparação à água não-desinfetada indica a ocorrência da mineralização (completa ou não) dos precursores em compostos menos tóxicos. Analogamente, o aumento de toxicidade indica a formação de compostos mais tóxicos após a etapa de desinfecção.99,214,244,245 A grande vantagem desta abordagem é a capacidade de indicar a formação de compostos tóxicos apenas com base no efeito observado, além de avaliar a influência de misturas na toxicidade total observada e, portanto, abranger uma gama muito mais ampla de compostos. Contudo, ela não permite a atribuição da toxicidade para compostos específicos, portanto, águas que expressem altos níveis de toxicidade podem vir a ser candidatas a análises químicas para identificar possíveis agentes direcionadores da toxicidade, demonstrando a necessidade da associação de ambas as abordagens.50 A abordagem orientada para toxicidade para o controle de DBPs é mais difícil de desenvolver e regular do que a abordagem baseada no simples cumprimento de parâmetros químicos. Esta abordagem, embora absolutamente promissora, traz diversos obstáculos quanto ao seu desenvolvimento. Progressos recentes no monitoramento e controle da qualidade da água através da abordagem orientada para toxicidade apontam a dificuldade na escolha de testes toxicológicos adequados. Mais ainda, diferentes organismos/substâncias-teste podem responder de forma diferente em relação aos mesmos compostos, enquanto a seleção da dose e a duração do teste também são parâmetros discutíveis, tornando a seleção de testes bastante laboriosa.176,240 Atualmente, uma ampla variedade de testes toxicológicos in vivo, in vitro, in chemico e in silico com diferentes efeitos e endpoints vem sendo desenvolvida sob a demanda de novas ferramentas científicas de avaliação do potencial tóxico de compostos e misturas de compostos.246-253 Diante da presença de inúmeros compostos de diversos comportamentos tóxicos em uma mesma amostra de água tratada, deve-se buscar a adoção de uma bateria abrangente de testes que permita investigar múltiplos efeitos possíveis e cobrir a maior variedade de compostos potencialmente tóxicos para o monitoramento confiável da toxicidade da água, em vez de impossivelmente buscar abranger todos os contaminantes presentes. Portanto, esta abordagem não deve ser interpretada como um teste completo dos perfis toxicológicos de todos os DBPs presentes na água, mas sim um monitoramento direcionado para toxicidade que visa combater uma gama muito mais ampla de DBPs simultaneamente, em comparação com a abordagem tradicional.176,214 A legislação brasileira de DBPs em água para consumo humano versus o saneamento básico no Brasil No Brasil, o marco da regulação sanitária da qualidade da água para consumo humano ocorreu quando o governo brasileiro promulgou o Decreto Federal nº 79.367 de 1977, que atribuía ao Ministério da Saúde, entre outros quesitos, a competência da elaboração de normas e do padrão de potabilidade da água para consumo humano, e da fiscalização do seu exato cumprimento.254 Com base neste decreto, o Ministério da Saúde elaborou e aprovou uma série de legislações referentes à água para consumo humano válidas para todo o território nacional. Ainda no mesmo ano, o Ministério da Saúde publicou a Portaria BSB nº 56/1977, a primeira legislação federal brasileira sobre qualidade da água, que dispunha sobre as normas e o padrão de potabilidade de água para consumo humano.255 A portaria contemplava o padrão de potabilidade segundo aspectos microbiológicos, físicos, químicos, radiológicos e organolépticos, e incluía parâmetros de valor máximo desejável (VMD) para todos os parâmetros selecionados, além de parâmetros de valor máximo permitido (VMP) para parâmetros físicos e químicos. No entanto, nenhum parâmetro de desinfetantes ou DBPs (D/DBPs) fora incluído nesta portaria (Tabela 1).
Alguns anos depois, a revisão da Portaria BSB nº 56/1977 culminou na elaboração da Portaria GM/MS nº 36/1990.256 Além da extinção de parâmetros de VMD para a adoção exclusiva de parâmetros de VMP, a nova portaria promoveu a recomendação da manutenção do teor mínimo de cloro residual livre em qualquer ponto da rede de distribuição, além da inclusão de dois parâmetros de DBPs: THMs totais (TCM, TBM, BDCM, DBCM) e 2,4,6-triclorofenol. Além disso, o texto legal previa que a norma fosse revisada em um prazo de cinco anos, de acordo com o avanço do conhecimento referente a instrumentos normativos. Contudo, a revisão da Portaria GM/MS nº 36/1990 foi realizada quase 10 anos após sua edição. Assim, a Portaria GM/MS nº 1.469/2000 expandiu os parâmetros relacionados a D/DBPs ao substituir o parâmetro de teor mínimo por um VMP para o cloro residual livre, e definir um parâmetro para cloraminas e dois DBPs inorgânicos, bromato e clorito.257 Assim como sua versão anterior, a Portaria GM/MS nº 1.469/2000 também estabelecia a revisão da norma no prazo de cinco anos. Entretanto, novas configurações no Ministério da Saúde levaram à sua revogação e reedição como Portaria GM/MS nº 518/2004, porém todo o conteúdo técnico da Portaria GM/MS nº 1.469/2000 manteve-se o mesmo.258 A revisão formal da Portaria GM/MS nº 1.469/2000 ocorreu mais de 10 anos após sua publicação, com a publicação da Portaria GM/MS nº 2.914/2011.259 Tal portaria determinou a regulação de HAAs totais e dois outros compostos sob um mesmo parâmetro (MCAA, DCAA, TCAA, MBAA, DBAA, BCAA, BDCAA, ácido 2,2-dicloropropiônico e 1,2,3-tricloropropano). Já em 2017, o Ministério da Saúde agrupou diversas normas existentes em Portarias de Consolidação. Desse modo, a Portaria GM/MS nº 2.914/2011 foi incorporada integralmente à PRC GM/MS nº 5/2017, sob o Anexo XX.260 Novamente após quase 10 anos desde a Portaria GM/MS nº 2.914/2011, a norma de potabilidade da água para consumo humano passou por um processo amplo de revisão, que resultou na publicação da Portaria GM/MS nº 888/2021, norma de vigência atual.16 A portaria atual traz uma atualização dos compostos contemplados pelo padrão de HAAs totais (MCAA, DCAA, TCAA, MBAA, DBAA, TBAA, BCAA, BDCAA, DBCAA) e a inclusão dos DBPs clorato, N-nitrosodimetilamina (NDMA) e 2,4-diclorofenol. A Figura 2 apresenta um panorama da evolução do padrão de potabilidade da água para consumo humano ao longo das edições da norma brasileira em relação ao número de DBPs contemplados de acordo com o número de parâmetros regulados.
Figura 2. Evolução do padrão de potabilidade da água para consumo humano ao longo das edições da norma brasileira. Cinza escuro: número de D/DBPs contemplados na portaria; cinza claro: número de parâmetros previstos na portaria
A evolução do padrão de potabilidade da água para DBPs ao longo das edições da norma brasileira claramente demonstra avanços positivos e concordância com as regulações existentes em outros países através de um processo histórico de acumulações progressivas e de crescente amadurecimento.135,261 No entanto, seu desenvolvimento também levanta um questionamento fundamental: tendo em vista a realidade de um país continental como o Brasil, com diversas desigualdades geográficas, socioculturais e econômicas, estaria a legislação brasileira tornando-se muito complexa e de difícil cumprimento? Atualmente, uma das principais preocupações do Brasil é garantir a universalização do saneamento. Globalmente, a importância atribuída ao saneamento básico tem aumentado pelo fato de crescer, igualmente, o debate sobre o direito humano à água e saneamento.262 Em 2015, tal direito foi instituído pela Organização das Nações Unidas como Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) número 6 da Agenda 2030: "assegurar a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento para todos."41,263 Contudo, apesar de possuir uma das maiores reservas de água doce do mundo, garantir o acesso à água de qualidade a todos os brasileiros vem sendo um dos principais desafios do Brasil. A histórica falta de saneamento básico não tem alcançado a força necessária para o cumprimento integral da Agenda de 2030, e é considerado por muitos como um dos setores da infraestrutura mais atrasados do país.264 Diversos fatores contribuem para o lento desenvolvimento do setor de saneamento no Brasil, como falhas de planejamento e gestão em companhias de saneamento, falta de investimentos, baixa qualidade técnica de projetos e dificuldades na obtenção de financiamentos e licenças. Desse modo, a lenta expansão das redes e a baixa qualidade na prestação dos serviços têm trazido fortes implicações para a saúde da população e para o meio ambiente.265 Ano após ano, os dados nacionais demonstram que os investimentos realizados no setor nas últimas décadas estão muito aquém das reais necessidades do país. Segundo dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) referente ao ano de 2020, 15,87% da população brasileira não possui abastecimento público de água tratada e utiliza poços, nascentes, chafarizes, cisternas, açudes, carros-pipa, dentre outras, como alternativas de formas de provimento de água. Similarmente, o índice da população com atendimento público de esgotamento sanitário foi de 54,95%. Isso significa que, diariamente, milhões de brasileiros recorrem a fossas, tanques sépticos, galerias de águas pluviais, valas a céu aberto, disposição no solo ou lançamento em curso d'água como alternativas de afastamento de esgoto sanitário. Mais ainda, apenas 60,27% de todo o esgoto sanitário gerado em território brasileiro é coletado, e apenas 50,75% de todo o esgoto sanitário gerado é tratado em estações de tratamento.266 Atualmente, o saneamento básico no Brasil não atende às necessidades da população e mostra que o país está longe da universalização, pois, de acordo com a atual tendência de evolução dos índices de atendimento de ambos os serviços no período de 1995 a 2013, estima-se que a universalização absoluta de abastecimento de água seja atingida em 2043, enquanto a de coleta de esgoto apenas em 2054.265 Desse modo, o principal desafio do Brasil, assim como de outros países em desenvolvimento em situação semelhante, é o estabelecimento de uma regulação que faça o melhor uso de recursos limitados para o benefício da saúde pública, e que de fato produza melhorias na segurança da água distribuída à população. Muitas vezes, este complexo equilibrismo levará a uma ênfase na qualidade microbiológica sobre a qualidade química.134 Mais premente do que o risco representado pelos DBPs é a falta de água microbiologicamente segura para uma porção significativa da população brasileira que não se beneficia de tratamento de água e de regulações aprimoradas. Além disso, o excessivo aprimoramento da regulação da qualidade química da água pode promover uma falsa sensação de melhoria, pois a necessidade de se atender a padrões mais avançados pode vir às custas de um acesso reduzido à população. Em vista do cenário atual do saneamento básico brasileiro, o desenvolvimento de padrões químicos para DBPs é um componente importante no controle da qualidade da água, porém ele precisa ser considerado no contexto das condições ambientais, sociais, econômicas e culturais brasileiras. Mais ainda, a pesquisa em DBPs vem sendo predominantemente desenvolvida em países desenvolvidos. No geral, em países em desenvolvimento como o Brasil, existe uma clara indisponibilidade de dados sobre a ocorrência de DBPs. Os estudos existentes são altamente limitados em escopo e alcance e essencialmente focados em THMs e HAAs. Assim, as pesquisas atuais não contemplam a possível ocorrência de espécies mais tóxicas e não refletem o cenário real da segurança química da água tratada, o que traz sérias dificuldades na priorização de compostos para o desenvolvimento regulatório.169
CONCLUSÕES A prática de desinfecção configura-se como a melhoria mais significativa no abastecimento de água tratada, ao efetivamente prevenir doenças de veiculação hídrica causadas por micro-organismos patogênicos. Contudo, a descoberta dos potenciais impactos crônicos à saúde associados ao consumo de água desinfetada trouxe uma nova face do desafio da qualidade da água tratada. Atualmente, o Brasil ainda se defronta com as dificuldades no fornecimento de água microbiologicamente segura e esgotamento sanitário adequado. Embora o objetivo principal do país deva ser a universalização do saneamento básico, os DBPs representam um risco químico que exigirá medidas para garantir a segurança geral da água tratada em um futuro próximo. No entanto, na busca do equilíbrio entre o risco microbiológico e o risco químico, o risco comparativo da água não desinfetada deve sustentar qualquer iniciativa de controle de DBPs. As soluções atuais para os riscos relacionados à exposição aos DBPs parecem seguir um paradigma ultrapassado. As regulações atuais limitam compostos específicos que não justificam adequadamente os impactos à saúde observados e, ao mesmo tempo, não são capazes de auxiliar no controle de possíveis agentes direcionadores de toxicidade. Atualmente, existe uma resistência na adoção de novos conceitos ou tecnologias para melhorar a qualidade da água em relação aos DBPs, pois os parâmetros atuais são adequados para fins de conformidade regulatória. Porém, dados os potenciais riscos adversos a longo prazo para a saúde pública, é necessário que futuras regulações utilizem cada vez mais ferramentas regulatórias inovadoras com o objetivo de reduzir efetivamente o risco químico, em vez de atingir a conformidade regulatória determinada por poucos parâmetros. As últimas décadas trouxeram incontestáveis avanços nos estudos da área. Entretanto, o futuro exige a resolução de questões complexas como: i) quais são os verdadeiros impactos da exposição aos DBPs na saúde pública?; ii) quais DBPs ou classes de DBPs são agentes direcionadores de toxicidade?; iii) qual a identidade de DBPs desconhecidos e quais são seus efeitos adversos?; iv) como avaliar e controlar o efeito de misturas?; v) é possível prever os riscos à saúde humana através de ensaios toxicológicos alternativos?; vi) como integrar pesquisas em química e biologia para melhorar a resolução de estudos epidemiológicos sobre os efeitos adversos à saúde relacionados à exposição aos DBPs?; vii) como melhorar a integração entre a pesquisa e o desenvolvimento regulatório? Estas e outras questões vitais surgem à medida em que a pesquisa em DBPs é aprofundada, e serão oportunamente respondidas através de estudos interdisciplinares para a identificação e formação de DBPs, desenvolvimento de novos métodos analíticos e processos de tratamento de água para controle e remoção de DBPs, estudos toxicológicos e epidemiológicos para a identificação de agentes direcionadores de toxicidade, e avaliação e gerenciamento de risco adequados para garantir uma água efetivamente segura. MATERIAL SUPLEMENTAREstá disponível em http://quimicanova.sbq.org.br, na forma de arquivo PDF, com acesso livre, a Tabela S1, que apresenta uma lista de abreviaturas e acrônimos.
AGRADECIMENTOS Os autores agradecem ao Instituto Nacional de Ciências e Tecnologias Analíticas Avançadas - INCTAA (FAPESP Proc. 2014/50951-4 e CNPq Proc. 465768/2014-8) pelo auxílio financeiro e a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pela bolsa de doutorado de B. C. V.
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