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15:54, qui nov 21

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Educação


Uma tradução comentada do artigo "Ácidos e Bases" de Gilbert Newton Lewis
A commented translation of Acids and Bases by Gilbert Newton Lewis

Regiane Lopes dos SantosI,*; Wellington Pereira de QueirósII; Fernando Cruvinel DamascenoIII; Leandro Nogueira BatistaIV

I. Instituto Federal do Tocantins, 77600-000 Paraíso do Tocantins – TO, Brasil
II. Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, 79070-900 Campo Grande – MS, Brasil
III. Universidade Federal do Vale do São Francisco, 64770-000 São Raimundo Nonato – PI, Brasil
IV. Universidade Federal do Amazonas, 69097-000 Manaus – AM, Brasil

Recebido em 14/10/2022
Aceito em 04/01/2023
Publicado na web 31/03/2023

Endereço para correspondência

*e-mail: regianels@ifto.edu.br

RESUMO

Gilbert Newton Lewis was a distinguished scientist in 20th century History of Chemistry. His work remains relevant for physical chemistry, organic chemistry and coordination chemistry nowadays. Lewis is well known by his propose for chemical bond, based on electron sharing. In 1923 he published two theoretical explanations for acids and bases: the former collaborating with Bronsted and Lowry and the later in his book Valence and the Structure of Atoms and Molecules (1923). In this book, the role of electron pairs in acid base reactions was highlighted decentering explanations from detachment/transfer of hydrogen ion. As a result, more substances could be classified as acids and bases. Also, in the context of organic and coordination chemistry new interpretations for reaction mechanisms showed up. The paper translated here, Acids and Bases (1938), makes a strong empirical description of acids and bases behavior. Lewis designed phenomenological criteria as speed of neutralization reactions, strength of the species acid-base titrations, and its applications as catalysts. In this manuscript, we carried out a commented translation of Lewis Acids and Bases published in 1938, considering it an inspiring source for research and educational applications for Portuguese speaking countries.

Palavras-chave: history of chemistry; conceptual revolution; pair of electrons.

INTRODUÇÃO

Sob a perspectiva da racionalidade técnica1 − epistemologia da prática derivada da filosofia positivista – químicas e químicos são capazes de, por exemplo, reconhecer propriedades e comportamentos de diversas substâncias e materiais, aplicar adequadamente conceitos, escolher as melhores técnicas de análise/síntese/extração e ter a capacidade de resolver problemas típicos de seus contextos laborais. Apesar de concepções ligadas ao positivismo e à racionalidade técnica ainda terem lugar nos currículos das graduações em ciências da natureza, nos tempos atuais, algumas escolhas a serem feitas por profissionais da área têm requerido reflexões que consideram não apenas o campo e seu objeto de estudos, mas também aquelas que são relacionadas à sociedade, ao ambiente e à consciência das implicações históricas de cada decisão tomada no presente.

A superação de posturas profissionais acríticas demanda tanto conhecimentos teóricos e técnicos da Química quanto a capacidade de enxergá-la como um conjunto de conhecimentos corporificado, dependente de condições econômicas, políticas, históricas e sociais dos personagens envolvidos no campo e de suas intencionalidades, sendo não-neutro. O mergulho em elementos da História e natureza da Ciência pode subsidiar discussões acerca da gênese do conhecimento científico e dos fatores internos e externos que a influenciam.2

Diversos paradigmas científicos pelos quais orientamos nossas ações e escolhas mereceriam ter seus percursos, histórico e social, melhor compreendidos. Um interessante exemplo reside na química de ácidos e bases, substâncias presentes desde tempos imemoriais no cotidiano de leigos e, nos dias atuais, também nas atividades de profissionais ligados à química onde quer que trabalhem.

O uso dos termos ácidos e álcalis, respectivamente, remete às antiguidades Ocidental e Oriental. Para os ácidos, sua nomenclatura originou-se de uma propriedade sensorial, o fato de apresentarem sabor azedo (do latim acidus). Já os álcalis (do árabe al qaliy) receberam tal denominação a partir de uma fonte de obtenção – as cinzas de vegetais.3,4 O termo base data do século XVIII, proposto por H. L. Duhamel du Moncea.3,5

Entre o final do século XIX e o início do século XX, parte da sociedade acadêmica debruçou-se sobre o problema associado à proposição de uma definição mais abrangente.6 Souza e Aricó3 e Chagas5 demarcam a contribuição de Boyle (1664) como uma das discussões mais antigas acerca do assunto. Chagas5 também menciona as investigações de Boyle sobre uso de indicadores. Apesar de existirem informações sobre a ocorrência de pesquisas sobre ácidos e bases em outros séculos, o século XX se sobressai.4-6

Neste trabalho, destacamos um dos inúmeros investigadores do tema no século XX, Gilbert N. Lewis (1875-1946). Sua primeira publicação a lidar com o assunto é Valence and the Structure of Atoms.7 Segundo o autor, nela é proposta "uma definição muito geral de ácido e bases"8 de caráter teórico. Já em Acids and Bases,8 o autor busca elencar comportamentos de ácidos e bases inferidos a partir de um grande conjunto de experimentos.

Propomos aqui uma tradução comentada do artigo Acids and Bases, de Gilbert Newton Lewis. A tradução desta fonte primária ganha valor por conferir maior acesso de leitores de língua portuguesa à uma obra cujos conceitos ainda têm lugar na Química do século XXI. Acreditamos que dar maior visibilidade ao texto supracitado tem valências múltiplas: pode ser parte de uma formação histórica e cultural mais ampla de profissionais da química, bem como ter usos explicitamente pedagógicos como a elaboração de sequências didáticas para aulas de química, e ainda servir como fonte bibliográfica para docentes. Assim, na seção seguinte apresentamos uma breve biografia de Gilbert Newton Lewis. Em seguida, fazemos breves comentários à obra. No coração deste manuscrito encontra-se a tradução do artigo Acids and Bases e, por fim, discutimos possíveis implicações de seu conhecimento para profissionais da área.

Breve biografia de Gilbert Newton Lewis (1875-1946)

No mês de outubro de 1875 em Weymouth, Massachusetts, nasceu o segundo de três filhos do casal Frank Wesley Lewis e Mary Burr White, Gilbert Newton Lewis, que se tornaria um dos mais célebres químicos do século XX. Seu percurso formativo começou informalmente em casa, sob influência da mãe, que tivera uma zelosa educação,9 e do pai, advogado especialista em seguros.5,10 Enquanto garoto, aprendeu diversas línguas e estudou temas variados como antropologia, ciências da natureza e economia. Sua escolarização formal iniciou-se aos catorze anos, em um curso preparatório para o ingresso no ensino superior oferecido pela Universidade de Nebraska.

Lewis entrou para o curso de química em Harvard (1892) e formou-se bacharel aos vinte e um anos. No ano seguinte, foi professor na Philips Andover Academy. Em 1898, concluiu o mestrado em Artes com a dissertação intitulada O Elétron e a Molécula e em 1889 defendeu a tese Algumas Relações Eletroquímicas e Termoquímicas de Amálgamas de Zinco e Cádmio, que deu origem ao primeiro de seus futuros 166 artigos. Tornou-se Doutor em filosofia sob a orientação do pioneiro da isotopia, Theodore William Richards (1868-1928), prêmio Nobel de Química em 1914.

Na química ensinada é frequente o uso da notação de Lewis para ilustrar combinações eletrônicas nas ligações químicas assim como indicar interações entre nucleófilos e eletrófilos. Contudo, a relevância da obra de Lewis para a história da química recente vai além dessa simbologia. De acordo com uma de suas mais importantes biógrafas em língua portuguesa, Raquel Gonçalves-Maia, os ramos de pesquisa nos quais Lewis destacou-se foram a termodinâmica, as ligações químicas e os isótopos.9

Ao concluir a pós-graduação, Lewis passou o período entre 1900-1901 como bolsista na Alemanha. Lá pôde pesquisar com Wilhem Ostwald (1853-1932), com quem estabeleceu uma relação amistosa e com Walther H. Nernst (1864-1941), com quem teve alguns atritos. Retornou para os EUA e lecionou no Departamento de Química em Harvard entre 1901 e 1904. Já em 1904, assumiu em Manila, Filipinas, o cargo de Superintendente de Pesos e Medidas.

Lewis voltou aos EUA em 1905 e participou de um grupo de físico-químicos no Massachussets Institute of Technology (MIT), até 1912, local em que desenvolveu os conceitos de atividade e fugacidade.10 A partir de 1912, ocupou o cargo que teria até seu último dia de vida − diretor do College of Chemistry da Universidade de Berkeley.10-12

No mesmo ano de publicação de Valence and the Structure of Atoms em conjunto com Merle Randall, Lewis escreveu Thermodynamics and the Free Energy of Chemical Substances (1923), livro que tornou-se referência para disseminação da termodinâmica em cursos de química, permanecendo como material didático até os anos 1960.10-12 Foi responsável pelo uso em ciência do termo fóton.12 O isótopo de hidrogênio foi tema de 26 de seus artigos, publicados na década de 1930.13 Na década seguinte, envolveu-se em estudos sobre a espectroscopia molecular e fotoquímica.11

As relações interpessoais vivenciadas ao longo de toda sua carreira ajudam a compreender seus sucessos e insucessos, uma vez que, como coloca Pierre Bourdieu,14 a taxa de reconhecimento do pesquisador está intimamente ligada ao seu capital social. Quando começou a trabalhar, menciona-se que tempo em que esteve no MIT com Arthur Noyes foi bastante produtivo e desembocou nos conceitos de atividade e fugacidade. Já em Berkeley, enquanto gestor e orientador, as fontes históricas sinalizam que Lewis estabeleceu um ambiente de pesquisa com poucas fronteiras (principalmente teóricas). Isso pode ter lhe proporcionado um trabalho agradável com muitos alunos, que investigaram sobre diferentes temas, reverberando em uma atuação bastante abrangente.

Contudo, mesmo com relações interinstitucionais positivas, Lewis foi tido um homem introvertido, que pouco desenvolveu habilidades relacionadas à convivência social, colecionando inimizades entre cientistas eminentes de sua época. Por exemplo, suas relações com Nernst, Ahrrenius e Langmuir não foram muito simpáticas. Os dois últimos são frequentemente citados como politicamente influentes.3,9 Assim, apesar de sua ampla contribuição para a Química, Lewis nunca recebeu um prêmio Nobel, ainda que tenha sido indicado 35 vezes.9 O químico estadunidense morreu em atividade no laboratório de química aos 71 anos vitimado por um ataque cardíaco enquanto conduzia um experimento no laboratório.12

O texto Acids and Bases surge como decorrência das homenagens que o Franklin Institute faria a Lewis em 1938. Para elaborar a comunicação que faria no evento, o professor retornou ao tema ácidos e bases, segundo ele mesmo, como será possível acompanhar pela leitura da tradução, explorado de maneira bastante geral no livro Valence and the Structure of Atoms and Molecules de 1929. O autor buscou "discutir e definir ácidos e bases meramente do seu comportamento em reações químicas sem qualquer teoria de estrutura molecular".8 Dessa forma, na primavera de 1938, experimentos descomplicados, mas muito significativos, foram desenvolvidos em conjunto com seu aluno de doutoramento Glenn T. Seaborg para "encontrar uma base experimental ampla para esse conceito"15 que subsidiaram a escrita de Acids and Bases.

Comentários à Acids and Bases

O texto Acids and Bases vem como uma resposta para a questionabilidade de uma definição teórica sugerida a partir de estruturas hipotéticas como pares de elétrons. Dessa forma, o interesse da publicação feita no Journal of Franklin Institute estava em levantar, a partir do comportamento químico de ácidos e bases, quais características fenomenológicas, i. e., macroscópicas, poderiam ser atribuídas a estas duas grandes classes de substâncias.

Lewis aponta em Acids and Bases que as preocupações acadêmicas do início do século XX sobre o tema concentravam-se em torno de nomenclaturas. Seu argumento é desenvolvido através da crítica à proposição de Ahrrenius, dependente da água como solvente, centrada na liberação de íons hidrônio ou hidróxido e ao que ele denomina "culto moderno do próton",8 referindo-se à teoria protônica.

As evidências experimentais já conhecidas naquele momento − como as propriedades básicas da amônia e de seus derivados – permitiam mostrar a fragilidade e a limitação da proposição de Ahrrenius. Por sua vez, através de um diálogo endereçado aos autores da teoria protônica, Lewis enfatiza que seu trabalho se volta para espécies químicas neutras, a partir da premissa de que o comportamento de bases e ácidos ocorreria em função das interações entre espécies químicas via pares de elétrons livres em moléculas, contrariamente à tendência da literatura da época em enfocar espécies carregadas.

Como as fronteiras foram estendidas, a teoria de ácidos e bases de Lewis contemplou a explicação ou a previsão de comportamentos de mais espécies que, anteriormente, não poderiam ser caracterizadas como tal em razão do limite que o enfoque no íon hidrogênio impôs a teorias anteriores. Contudo, a utilização desse corpo teórico não se restringiu à sistematização dos compostos isoladamente. A publicação de Acids and Bases feita no Journal of the Franklin Institute8 deu luz à interpretação de uma série de mecanismos de reações, implicando em mudanças no cenário da química orgânica, da química de coordenação e da catálise.

A força de um ácido ou uma base também recebeu novo tratamento: em Acids and Bases, a propriedade saiu de um caráter fixo para relacional. A força dos ácidos e das bases é relativa, dependendo, não apenas da escolha do solvente, mas da espécie que se torna referência: "impossível é organizar nossos ácidos em uma única ordem monotônica qualquer."8

Lewis, em Acids and Bases, aproxima características macroscópicas, fenomenológicas (i. e., associadas "ao estudo puramente descritivo do fenômeno tal qual este se apresenta à nossa experiência")16 com as subatômicas propostas teoricamente no livro Valence and the Structure of Atoms and Molecules.7 Além disso, detalha experimentos nos quais indicadores dissolvidos em solventes incapazes de gerar íons hidrogênio sofriam mudanças de cor na presença de ácidos e bases neutras, o que contribuiu para elucidação do caráter ácido-base destas espécies químicas e fortaleceu sua teoria eletrônica. Por fim, informamos que as notas do autor (Gilbert Newton Lewis) contidas originalmente no texto estão presentes na lista final de referências denotadas pela abreviatura [N.A.] e as notas de tradução dos pesquisadores do presente estudo recebem a abreviatura [N.T.].

 

ÁCIDOS E BASES17

Por Gilbert N. Lewis, Ph.D., D.Sc.

Departamento de Química, Universidade da Califórnia, Berkeley, Califórnia

"Nos últimos anos ressurgiu o interesse em ácidos e bases e sua nomenclatura. Os nomes são eles próprios de pouca importância, exceto na medida em que implicam em alguma classificação sistemática que pode ser de importância vital no desenvolvimento de uma ciência. Lavoisier, o maior de todos aqueles que trabalharam com sistematização em química, usou palavra ácido em um sentido amplo. O dióxido de carbono era conhecido como ácido carbônico gasoso e ácido sulfuroso significava, como ainda o faz em algumas línguas, o anidrido SO2. No entanto, durante o século dezenove tornou-se comum considerar hidrogênio como indispensável constituinte de um ácido, e, finalmente, o conceito de ácidos e bases ficou muito restrito a isso nas mentes de alguns dos primeiros defensores da teoria iônica em que uma solução aquosa somente seria ácida se contivesse íons hidrogênio, e básica somente uma solução aquosa contendo íons hidróxido.

Tal ideia não poderia ser aceita por químicos orgânicos, que reconhecem na amônia e seus derivados substâncias que são genuinamente bases, e não apenas porque eles produzem íons hidróxido quando dissolvidos em água. Assim, além disso, a descoberta de compostos oxônio levou a uma maior generalização e este processo tem continuado até o presente.

É possível, como tentarei mostrar neste artigo, discutir e definir ácidos e bases meramente do seu comportamento em reações químicas sem qualquer teoria de estrutura molecular. No entanto, o desenvolvimento do olhar eletrônico sobre a valência tornou mais fácil compreender as características essenciais destas duas classes. Em meu livro "Valência",18 depois de discutir vários métodos pelos quais a ideia de ácidos e bases poderia ser estendida, propus uma definição muito geral de ácido e bases. De acordo com essa definição, uma molécula básica é aquela que possui um par de elétrons que pode entrar na camada de valência de outro átomo a fim de estabelecer uma ligação por par de elétrons; uma molécula ácida é a que é capaz de receber um par de elétrons na camada de valência de um dos seus átomos. Professor Sidgwick,19 que tem feito uma cuidadosa e extensa investigação das consequências de nossa concepção eletrônica de valência, chama a molécula que oferece um par de elétrons de uma molécula doadora e a outra uma molécula receptora. Esta nomenclatura expressiva eu deveria adotar prontamente se eu não esperasse mostrar que sua classificação coincide absolutamente com a classificação de ácidos e bases, de modo que a necessidade de novos nomes desaparece.

Quando a ideia de emparelhamento de elétrons foi desenvolvida foi necessário desenhar a partir apenas do comportamento químico das substâncias algumas conclusões a respeito da estrutura eletrônica. A física teórica da época não fez contribuições, exceto em relação à hipótese de que meras forças de Coulomb eram incompatíveis com a existência de qualquer átomo ou molécula estáveis que fossem compostos de núcleos positivos e elétrons.

Mais recentemente, e, amplamente desde a última vez que escrevi sobre este assunto há quinze anos, as condições mudaram radicalmente. De um lado, o desenvolvimento de numerosos métodos precisos de medida forneceu informações muito exatas sobre a forma e o tamanho de muitas moléculas.20 Por outro lado, a mecânica quântica revolucionou a nossa ideia das interações de partículas materiais, especialmente em sistemas de tamanho diminuto. É interessante, por sua vez, perceber que as conclusões que foram baseadas puramente na química, sobretudo a partir de observações qualitativas, mantiveram sua validade, e, em muitos casos, foram reforçadas pelas descobertas mais recentes.

O princípio de Pauli deu a primeira interpretação física do emparelhamento de elétrons, e Heitler e London puderam deduzir da mecânica quântica a ligação eletrônica.

É verdade que a antiga ideia da localização exata de elétrons numa molécula teve de ser abandonada. Em vez disso, temos a bastante difusa "nuvem eletrônica". No entanto, a parte mais densa desta nuvem, que representa a região em que mais provavelmente o elétron estaria, coincide, no caso de todos os compostos mais próximos do tipo saturado, com posições de elétrons exigidas pelas fórmulas químicas. Em moléculas insaturadas em que a "nuvem eletrônica" é menos localizada, percebemos muitas vezes que as propriedades não podem ser bem representadas por uma única fórmula química.

Embora finalmente se provou possível reconciliar a mecânica quântica com o requisito químico da completa simetria entre as quatro ligações do metano, há uma questão da química que o desenvolvimento da mecânica quântica ainda não satisfez. Um elemento essencial na teoria original do octeto foi o fato de que não apenas um átomo ligado a quatro outros teria os pares de elétrons em posições tetraédricas, mas que isto ainda seria verdadeiro mesmo se um ou dois dos pares de elétrons não fossem utilizados em ligações. A partir disto foi deduzido que a água não teria uma estrutura linear, nem amônia uma estrutura plana, e que a posição de um par não-ligante estaria situada em um dos ângulos de um tetraedro bem como para produzir o isomerismo ótico, tal como tem sido realmente encontrado em compostos sulfônio. Mesmo para molécula mais simples, a aplicação da mecânica quântica é muito difícil para nada mais do que o tratamento aproximado. No entanto, se um tratamento exato um dia se tornar possível, poderíamos estar certos de que ele mostrará no caso de uma molécula tal como a amônia não só a concentração da "nuvem eletrônica", representando cada uma das ligações para os três átomos de hidrogênio, mas também uma quarta concentração sob a forma de uma protuberância na quarta posição tetraédrica, e que esta projeção devido ao par de elétrons não ligado, é a entidade característica de moléculas básicas.

É sempre interessante descobrir que algumas de nossas mais modernas ideias científicas foram vagamente antecipadas por cientistas dos séculos anteriores. Uma das ideias de Lémery, um contemporâneo de Robert Boyle, é divertidamente discutida em uma bem conhecida história da química, como segue:21 "Ainda que uma das suas concepções teóricas fosse muito estranha, e mostre o quão longe um homem capaz pode divagar, quando se troca fatos observados por especulações filosóficas. Ele pensou que a combinação química de duas substâncias, tais como um ácido e uma base, pudesse ser considerada a partir da suposição de que as partículas de uma substância fossem pontiagudas, e as outras porosas, e que a combinação fosse feita pelo encaixe da ponta nos buracos!"

Antes de prosseguir com a defesa de minha definição geral de ácidos e bases, posso dizer uma palavra a respeito de uma noção ainda mais geral que, ocasionalmente, foi sugerida, ou seja, que uma molécula de ácido é simplesmente aquela em que há alguma região eletricamente positiva, e que uma molécula de base é aquela que em alguma parte há um excesso de eletricidade negativa, e que o processo de neutralização é aproximação da parte positiva da uma molécula e a parte negativa do outro por meio de forças de Coulomb. De fato, descobriu-se muitos casos em que é possível calcular, com boa aproximação, o calor de formação de um composto por um simples e antiquado método. Isto é devido ao fato que a lei de Coulomb é aproximadamente válida a partir de grandes distâncias até a vizinhança imediata da molécula. No entanto, nesta vizinhança é necessário substituir aquela lei pelos novos princípios da mecânica quântica, e é nesta vizinhança que ocorrem a maioria dos fenômenos que são de particular interesse para os químicos. De nenhuma maneira é possível por considerações coulômbicas compreender a limitação do carbono e dos seus vizinhos para uma valência quatro. Quando nós consideramos a valência, ou número de coordenação, de elementos mais pesados, a visão coulômbica prevê corretamente que o número coordenação de um íon metálico será maior quanto maior a carga positiva do íon, mas não pode de modo algum prever que estes números coordenação são quase sempre pares nem poderia prever moléculas que em uma zona de coordenação de moléculas neutras pode ser substituída por íons de carga um ou por íons duplamente carregados sem afetar as propriedades essenciais da molécula.

Uma vez que o método de Coulomb muitas vezes leva a resultados aproximadamente corretos, não é surpreendente descobrir que, como H+ é o nosso ácido típico, então a maioria dos ânions têm propriedades básicas definidas. No entanto, um íon como ClO4- dificilmente é sempre uma base, e, ao mesmo tempo, em nosso sistema generalizado de ácidos, a maior parte dos íons positivos são definitivamente acídicos, um íon como NR4+, não pode ser considerado como um ácido qualquer sentido que seja. É em parte porque os íons como ácidos e bases têm sido de alguma forma superenfatizados que deveríamos lidar em grande parte neste trabalho com ácidos e bases compostos de moléculas neutras.

O reconhecimento por Brönsted e sua escola, de íons tais como os íons haleto e o íon acetato como bases verdadeiras, juntamente com o desenvolvimento do conceito de bases orgânicas, tende a tornar a presente lista conhecida de bases idênticas com as que propus. Por outro lado, qualquer extensão valiosa semelhante e instrutiva da ideia de ácidos tem sido evitada pelo que estou tentado a chamar de culto moderno do próton. Restringir o grupo de ácidos àquelas substâncias que contém hidrogênio interfere com a mesma seriedade com a sistemática compreensão da química como o faria a restrição do termo agente oxidante às substâncias que contêm oxigênio. É verdade que o termo ácido compreende atualmente não só o íon hidrogênio22 mas também ácidos não dissociados, e corretamente então, desde que o H+, em função do fenômeno conhecido como a formação da ligação hidrogênio, é um ácido dibásico. Se, por exemplo, ele combinar com a base OH-, ele pode ainda combinar com o NH3 para formar a molécula não dissociada NH4OH. Como esse comportamento difere essencialmente daquele do íon prata para o qual atribuímos usualmente número coordenação dois? Ag+ pode primeiro combinar com a base OH-, e posteriormente com a segunda base NH3, formando a molécula NH3AgOH. Claro que pode se supor que o hidrogênio, devido à sua elevada mobilidade ou ao seu local único na tabela periódica, deveria formar hidrogenoácidos, ou, como podemos chamá-los para encurtar, H-ácidos, propriedades que os distinguiriam grandemente de outras substâncias ácidas, mas à medida que prosseguirmos descobriremos em vez disso uma semelhança surpreendente entre H-ácidos e todos os outros membros do grupo ácido geral.

Antes de começar uma reflexão aprofundada sobre os critérios de ácidos e bases, podemos tomar provisoriamente como bases todas as substâncias que, como o íon hidróxido, "neutralizam" íons hidrogênio ou qualquer um dos outros membros do nosso grupo de ácidos; e que podemos tomar como ácidos qualquer das substâncias que "neutralizam" íons hidróxido ou qualquer uma de nossas outras bases. Nós então achamos que existe apenas um pequeno número de elementos cujos átomos podem contribuir para as propriedades básicas de uma molécula. Estes estão limitados às famílias do nitrogênio, oxigênio e flúor, ocasionalmente de carbono, e em um caso relatado um gás nobre.23 Escolhendo para o nosso presente propósito bases não-iônicas que não contêm nem hidróxido nem hidrogênio lábil, podemos adotar como exemplos de bases generalizadas a trietilamina, a piridina, a acetona e o éter. Estes provavelmente estariam elencados em ordem decrescente de força básica, mas esta é uma questão que devemos mais tarde considerar mais cuidadosamente.

Por outro lado, quase todos os elementos podem atuar como ácidos; as únicas exceções são os gases nobres e provavelmente os membros mais pesados dos metais alcalinos e alcalino-terrosos.24 Escolhendo a partir do grande número de ácidos à nossa disposição, mencionaremos, para ilustrar, o trióxido de enxofre, o tricloreto de boro, o cloreto estânico, o perclorato de prata, o dióxido de enxofre, e dióxido de carbono. Eles estão dispostos aproximadamente em ordem decrescente da força do ácido. As propriedades ácidas do boro são devidas à sua tendência de completar seu octeto, ou o grupo estável de quatro pares de elétrons; as propriedades ácidas do estanho e da prata devidas à tendência de completar grupos estáveis de seis e dois pares de elétrons, respectivamente. Se falamos de valência ou número de coordenação, devemos reconhecer que em todos os casos, o fenômeno é o mesmo. A neutralização de um ácido consiste sempre em completar o número estável de par de elétrons que é característico do átomo ao qual as propriedades ácidas são devidas.

Os ácidos mais fortes combinam-se com as bases mais fortes para formar compostos estáveis, enquanto os ácidos mais fracos geralmente não formam compostos com as bases mais fracas. Declarações pouco refinadas sobre as forças relativas de ácidos e bases são úteis, mas são, no entanto, suscetíveis de serem falsas. Ao estudar o fenômeno de oxidação e redução é conveniente dizer que o zinco é um agente redutor mais forte do que cobre, mas na pilha de Daniel a direção da corrente pode ser revertida quando um pouco de cianeto for introduzido no eletrodo de cobre. Assim, ao estudar ácidos e bases descobrimos que a força relativa não depende apenas do solvente escolhido, mas também da base ou do ácido particular utilizado como referência. Assim, em solução aquosa o íon prata mostra pouca tendência de combinar com íon hidróxido, e, consequentemente, no que diz respeito a esta base dizemos que o íon prata é um ácido fraco, mas se um pouco de amônia for adicionada na solução, o íon prata age para esta nova base como um ácido comparável em força com o íon hidrogênio em concentração semelhante. Em geral quando os sais metálicos, ou outros compostos que pertencem ao nosso conjunto de ácidos, são dissolvidos em água, geralmente estimamos suas forças relativas enquanto ácidos pela concentração de íons de hidrogênio que se libertam, mas estamos apenas determinando a força do ácido relativa à base particular OH-, no solvente particular água.

Posso citar neste momento vários casos de ação específica entre certos ácidos e certas bases, todos os quais são observáveis em soluções aquosas, e que mostram o quão impossível é organizar nossos ácidos em uma única ordem monotônica qualquer. Muitos íons metálicos pesados, como o íon prata, são ácidos relativamente mais fortes comparados à amônia do que à água ou ao OH-. SO2 é um ácido fraco e I- e SCN- são bases fracas, mas ambos os ânions formam complexos relativamente estáveis com o SO2 em solução aquosa, como pode ser notado pela coloração amarela que estes complexos conferem à solução. A molécula B(OH)3 pode agir como um ácido (1) pela liberação de um ou mais íons hidrogênio, (2) como um típico H-ácido através da formação de ligação hidrogênio, e (3) por oferecer ao boro sua quarta ligação, e completando assim o seu octeto. Este último tipo de comportamento ácido, que é mostrado muito claramente pela capacidade do éster B(OR)3 de agir como um ácido,25 é especialmente evidente na capacidade do ácido bórico de deslocar hidrogênio de um álcool simples para formar a ligação simples B−O−C, e se torna extremamente pronunciada quando a molécula orgânica possui dois átomos básicos situados de forma que ambos possam combinar com um único átomo de boro para formar um anel de cinco ou de seis membros. Este fenômeno não se limita ao boro somente, mas é uma propriedade de muitos elementos, e teremos um momento posterior para mencionar o comportamento notável do gálio.

De uma maneira pouco elaborada podemos entender e algumas vezes prever esta especificidade de ação entre ácidos e bases, parcialmente a partir de uma consideração do volume atômico e da polarizabilidade, em parte pelas propriedades de anéis, e em parte por meio de um estudo de mesomerismo ou ressonância,26 mas para qualquer formulação exata muito mais dados são necessários do que estão agora disponíveis.

As soluções aquosas garantem um pequeno intervalo de força de ácidos e bases. Um ácido muito forte como o trióxido de enxofre ou uma base realmente forte como o nitreto de sódio são quase completamente hidrolisados em água. Este fenômeno, o qual tem sido chamado por Hantsch o "efeito de nivelamento", ocorre em duas etapas. Como a água é tanto um ácido quanto uma base e combina diretamente com qualquer base forte ou ácido e, além disso, o íon hidróxido ou íon hidrogênio é liberado. Assim como ao considerar o problema de oxidação e redução descobrimos que não podemos ter na água agentes redutores rápidos mais fortes do que H2 nem quaisquer agentes oxidantes rápidos mais fortes do que O2, portanto, na água não podemos ter ácido mais forte do que H+ e nenhuma base mais forte do que OH-, exceto para efeitos específicos tais como os que foram mencionados.

Muitos solventes são anfotéricos no sentido em que eles possam servir tanto como ácidos ou bases. Suas moléculas podem assim combinar-se umas com as outras e então explicamos o alto grau de associação em líquidos tais como água e álcool ou amônia e aminas primárias e secundárias. Tal associação desaparece no caso de éteres e trialquilaminas, que agem apenas como bases.

Este caráter anfotérico é apresentado por muitos dos nossos generalizados ácidos fortes. O oxigênio no trióxido de enxofre tem propriedades básicas extremamente fracas, mas o SO3 é um ácido tão poderoso que é capaz de se ligar ao oxigênio de outra molécula, formando-se assim pares de moléculas ou moléculas contínuas características dessa classe de substâncias. Logo também os haletos de alumínio ou férricos são anfóteros e quando dissolvidos numa solução inerte formam pares de moléculas,27 mas em uma solução mesmo fracamente básica como o éter elas se separam em moléculas individuais, que agora estão ligadas ao solvente em vez de uma com a outra.

Sempre que duas moléculas neutras, uma das quais for um ácido e a outra uma base, se combinam uma com a outra, uma condição de tensão elétrica é produzida, devido ao fato de o par de elétron, que anteriormente pertencia somente à base é agora partilhado pelas duas moléculas. Assim, um momento de dipolo alto é estabelecido a menos que possa ser amenizado por algum rearranjo molecular. Assim, quando uma molécula de dióxido de carbono combina-se com uma molécula de amônia, nenhuma molécula estável seria formada se não fosse pela transferência simultânea de um átomo de hidrogênio a partir de nitrogênio para o oxigênio, produzindo assim uma molécula de ácido carbâmico, e amenizando a tensão elétrica.

Nos ácidos e bases listados acima, nos quais tal rearranjo é impossível, não encontramos compostos entre os ácidos mais fracos e as bases mais fracas. No entanto, usando os ácidos ou bases mais fortes, um enorme número desses compostos pode ser formado, possuindo fórmulas muito simples em termos de interações de pares de elétrons. Contudo, poucos destes foram descritos e ainda menos foram nomeados. Eles são os excluídos do nosso sistema químico atual. Poderia chamá-los pseudossais,28 embora incapazes de ionizar, eles provavelmente serão encontrados, especialmente em solventes de baixa constante dielétrica, com propriedades análogas às de um sal desconhecido ou de um sal verdadeiro dissolvido no mesmo tipo de meio.29

Os critérios fenomenológicos de Ácidos e Bases

Uma vez que possa parecer questionável definir termos tão importantes como ácidos e bases por meio de nossa estrutura ainda um pouco hipotética envolvendo pares de elétrons, vamos tentar determinar apenas do comportamento químico que características vamos atribuir a estas duas grandes classes de substâncias. Os seguintes traços parecem ser mais importantes.

I. Quando um ácido e uma base podem combinar, o processo de combinação, ou neutralização, é rápido.

II. Um ácido ou base irá substituir um ácido fraco ou uma base fraca de seus compostos.

III. Ácidos e bases podem ser titulados um contra o outro pela utilização de substâncias, normalmente coloridas, conhecida como indicadores.

IV. Tanto os ácidos quanto as bases desempenham um papel extremamente importante na promoção de processos químicos através da sua ação como catalisadores.

Será nossa tarefa examinar, com relação a estes critérios, nossos ácidos e bases mais comuns e apontar a semelhança, e certamente a identidade quase completa entre o comportamento destas substâncias e os ácidos e bases mais restritos de uso comum.

Na água, um ácido e uma base neutralizam um ao outro com extrema rapidez, e também em álcool em todas as temperaturas abaixo do ponto de congelamento deste solvente. Tanto quanto sou capaz de observar isso é verdadeiro também para nosso sistema geral de ácidos e bases. Estou inclinado, portanto, a sugerir a tese de que todas as moléculas cujas fórmulas eletrônicas conformam minha definição generalizada de ácidos e bases combinam sem impedimento. Em outras palavras, a neutralização de um ácido primário e uma base não requer qualquer calor de ativação. Este comportamento é ainda mais surpreendente na medida em que existe apenas outro tipo de reação química que pode ocorrer sem ativação. É a união de uma molécula ímpar com uma molécula ímpar. (Não precisamos considerar aqui o caso raro mencionado em uma nota anterior de rodapé na qual duas moléculas de cargas opostas são desenhadas e mantidas juntas por forças puramente coulômbicas).

Frequentemente a fórmula simples não representa o estado real das moléculas. Às vezes, como vimos na discussão de substâncias anfotéricas, as moléculas parcialmente, ou mesmo totalmente, neutralizam umas às outras. Mais frequentemente são neutralizadas pelo solvente em que são colocadas. Podem ser chamados ácidos ou bases secundárias. Por exemplo, a base B pode ser dissolvida no ácido fraco A, e completamente neutralizada, no sentido de que todos os seus pares de elétrons básicos sejam agora usados na formação da ligação. Se agora adicionarmos outro ácido mais forte A', o processo,

A' + AB = A'B + A,

irá normalmente exigir ativação, mas o calor de ativação não deve ser maior do que o calor de formação do composto AB. Se este calor de formação não constituir mais do que alguns milhares de calorias, o que não é fácil de detectar, pode para muitas finalidades ser ignorado.

Um tipo muito mais interessante de ácidos e bases secundárias consiste naqueles que não são ácidos ou bases em seu estado normal de mais baixa energia, mas tornam-se, por meio de alguma excitação interna. Tal excitação pode consistir na quebra de uma ligação existente. Um caso típico é ilustrado pelo dióxido de carbono que, se representado com a dupla ligação entre o carbono e cada oxigênio, ou se representado pelas outras fórmulas que Pauling acredita que ressonam com esta, sempre tem quatro ligações acopladas ao carbono, que, por sua vez, não é ácido. Em alguns dos seus estados excitados, no entanto, uma destas ligações pode ser quebrada. Na verdade, é percebido, experimentalmente, que a neutralização de dióxido de carbono é uma reação mensuravelmente mais lenta e, provavelmente, se tornaria muito lenta em baixas temperaturas. Outros ácidos secundários do mesmo tipo são substâncias como os cloretos de ácidos orgânicos e anidridos. Há alguma razão para se acreditar que o dióxido de enxofre também é somente um ácido secundário. Afirma-se que o dióxido de enxofre e a amônia não se combinam enquanto gases, exceto na presença de vapor de água. Devemos ser cautelosos em chegar nessa conclusão, no estado gasoso uma reação pode não ocorrer porque exige não ativação, mas desativação (como por um terceiro corpo).

Uma substância que não é nem ácido nem base pode se tornar anfotérica em estados excitados. Assim, um composto contendo uma ligação dupla típica do etileno pode, quando possuir suficiente energia, quebrar uma ligação para que o par de elétron deixe um dos átomos de carbono e pertença apenas ao outro. O primeiro átomo agora se tornou um ácido primário, e, o último átomo, uma base primária. Este caráter anfotérico resulta muitas vezes em polimerização.

Voltando agora para o segundo critério, isto é, a substituição de um ácido fraco ou base por um(a) mais forte, encontramos apenas os mesmos fenômenos que ocorrem com nossos ácidos e bases gerais como são familiares em solução aquosa, assim o carbonato de sódio, na presença de um ácido aquoso de carbono evolui dióxido de carbono. Quando nos voltamos para solventes que não contêm hidrogênio lábil a reação é mais lenta, devido à pequena solubilidade do carbonato, mas percebi que, por exemplo, quando Na2CO3 finamente dividido é aquecido com BCl3 ou SnCl4, numa mistura de partes de iguais de tetracloreto de carbono e acetona, o dióxido de carbono logo evoluiu, deixando um composto que no primeiro caso é insolúvel, neste último caso, solúvel no solvente. Encontraremos inúmeros exemplos de tal substituição nos nossos experimentos com indicadores, e às vezes um número de sucessivas substituições pode ser mostrado. Por exemplo, o tricloreto de boro, recentemente dissolvido em acetona, é neutralizado por este solvente fracamente básico. Se agora um corante básico for adicionado, este substituirá a acetona, e, finalmente, uma base ainda mais forte como a piridina ou uma amina terciária expulsa o corante e forma seu próprio composto com o tricloreto de boro.

Experimentos com indicadores

Muitos químicos levaram a cabo titulações de ácidos e bases com indicadores em solventes não-aquosos, mas eles usaram H-ácidos e, geralmente, solventes contendo hidrogênio lábil. Realizei, portanto, um grande número de experimentos, principalmente de caráter qualitativo, com outros membros do grupo generalizado de ácidos, e em solventes cuja constituição não permite a formação de íon hidrogênio ou de H-ácidos. (Isto não seja talvez bastante verdadeiro para um dos solventes empregados, a acetona, que tem uma pequena tendência para assumir uma forma enólica). Eu esperava que essas experiências mostrassem as mudanças na cor do indicador fossem bem exatas e as titulações tão precisas quanto nas neutralizações correspondentes em água. Eu estava, no entanto, despreparado para as semelhanças realmente surpreendentes entre os efeitos produzidos pelos H-ácidos e outros ácidos mais comuns. Atrevo-me a dizer que qualquer um que tenha realizado por si mesmo algumas destas titulações nunca mais pensará em ácidos na forma restrita presente.

Eu não posso descrever aqui todos estes experimentos, mas alguns deles podem ser sintetizados. Primeiro, uma variedade de indicadores foi dissolvida em dioxano e em acetona. Como bases, piridina e trietilamina foram usadas, e como ácidos, dióxido de enxofre, soluções de tricloreto de boro e de cloreto estânico em tetracloreto de carbono, e perclorato de prata dissolvido em benzeno. As cores observadas são diferentes em diferentes solventes. Contudo, com um solvente e um indicador, as cores obtidas parecem ser dependentes apenas da condição ácida ou básica da solução e não do ácido ou base em particular. As únicas exceções são que com alguns indicadores o dióxido de enxofre revela-se bastante fraco para dar a cor com o ácido, e que algumas vezes, um dos ácidos forma um precipitado insolúvel30 com o indicador, que, no entanto, se redissolve com excesso de base. Por meio da mudança de cor as soluções podem ser tituladas e retrotituladas tão prontamente quanto em solução aquosa. Como um exemplo, podemos considerar azul de timol dissolvido em acetona. Com ambas as bases a cor é amarela, enquanto os ácidos, AgClO4, SO2, SnCl4 e BCl3, dão uma cor aparentemente idêntica vermelha brilhante.

A mesma cor vermelha também foi obtida com HCl, e isso, em conjunto com o fato de que nenhum dos reagentes havia sido especialmente seco, deu origem à suspeita de que algumas das similaridades surpreendentes31 na cor produzida pelos diferentes ácidos eram devidas à existência de pequenas impurezas de H-ácidos nos reagentes. Por esta razão, os experimentos foram continuados com uma série de solventes muito secos, que foram gentilmente colocados à minha disposição pelo Dr. C. H. Li, com indicadores que em si não contêm hidrogênio lábil, tal como amarelo manteiga, cianina, e violeta de cristal. Finalmente, um número de experimentos foi realizado a vácuo com a assistência do Dr. G. T. Seaborg, a quem gostaria de agradecer a ajuda valiosa nestes e em outros ensaios. Tais precauções foram tomadas de forma a reduzir a água e H-ácidos no sistema a valores insignificantes mesmo em comparação com a pequena quantidade de indicador usada. No entanto, estas experiências deram resultados idênticos aos da série anterior.

Amarelo manteiga, que é amarelo em tolueno seco, fica vermelho quando é adicionada uma pequena quantidade de cloreto estânico e em seguida ocorre a formação de um precipitado vermelho. Sob a adição de uma pequena quantidade de trietilamina o precipitado é dissolvido e a cor amarela original é restaurada. Dióxido de enxofre comporta-se como um ácido muito mais fraco. Quando é gradualmente adicionado à solução de amarelo manteiga em tolueno, a solução torna-se mais e mais vermelha, mas o vermelho completo que corresponde à neutralização total do indicador não foi obtido mesmo quando a pressão parcial do dióxido de enxofre atingiu uma atmosfera.

O violeta de cristal é um indicador que exibe as mesmas cores em água e em muitos solventes amplamente diferentes. Na água, conforme aumenta a concentração de ácido, a cor muda de violeta para verde e depois para amarelo. Foi mostrado neste laboratório por Rosenstein e Adams32 que cada mudança é devida à formação de uma nova substância, conforme o H+ é adicionado sucessivamente nos grupos N(CH3)2. Quando se dissolve violeta de cristal em clorobenzeno seco, ele mostra a sua cor violeta característica. Com adição gradual de cloreto estânico, ele passa por um verde e, em seguida, torna-se amarelo; depois a cor violeta original pode ser restaurada por um excesso de trietilamina. A menos que o ácido seja adicionado cuidadosamente, é fácil passar pela fase verde sem observá-la. Se um fenômeno semelhante acontecesse na água nós deveríamos dizer que a solução verde só existe em uma pequena faixa de pH!

No caso do violeta de cristal, não é difícil de compreender por que as mesmas cores são produzidas por diferentes ácidos. No íon original, que tem um grupo N(CH3)2 na posição para de cada anel benzênico, ocorre ressonância em todo o sistema de três anéis idênticos. Quando um dos nitrogênios, entretanto, é neutralizado por qualquer ácido, um anel é em grande parte removido do sistema de ressonância e temos as mesmas condições que no corante verde conhecido como verde malaquita, que tem apenas dois grupos para N(CH3)2. Quando um segundo nitrogênio é neutralizado, seja por H+ ou qualquer outro ácido, somente um anel é deixado, no qual a ressonância principal ocorre.

Numerosos indicadores podem ser utilizados em tais solventes − como nós empregamos − que não podem ser utilizados em solventes como a água. Dessa forma o cloreto de trifenilmetila dissolvido em clorobenzeno reage com BCl3, SnCl4 e AgClO4 produzindo a cor amarelo brilhante característica do cátion trifenilmetila. Tudo o que cada ácido faz é remover o Cl- do indicador. No último caso, cloreto de prata é precipitado e a cor é devida ao altamente ionizado perclorato de trifenilmetila.

O trabalho com solventes incomuns possui não só interesse intrínseco, mas muitas vezes nos permite obter uma compreensão mais clara das soluções aquosas. Se um indicador é dissolvido em água e a solução não contém outros ácidos ou bases mais importantes que os derivados a partir do indicador ou da água, podemos esperar encontrar uma relação simples entre a cor e o pH da solução. Isto é o que se assume normalmente ser verdadeiro em todos os casos, mesmo na presença de outras substâncias as quais chamo ácidos e bases. No entanto, assim que nos tornamos familiarizados com a alta especificidade na ação mútua de ácidos e bases, nós dificilmente esperaríamos encontrar um comportamento tão simples. Na verdade, tão logo começamos a olhar para os casos em que o pH não pode ser determinado diretamente a partir da cor, vamos encontrá-los frequentemente. A curcumina vira para marrom na presença do íon borato e este costumava ser um importante método de análise qualitativa. Da mesma forma a alizarina e vários outros indicadores que têm dois pontos básicos, localizadas de modo a que possam ser ligados ao boro para formar um anel de cinco ou seis membros, comporta-se em ácido bórico e boratos da mesma maneira. É interessante notar que enquanto na maioria dos casos vários ácidos dão a mesma cor com um corante, isto não parece ser verdadeiro se um ácido forma um composto cíclico com o indicador. O anel, sem dúvida, oferece novas oportunidades de ressonância, de modo que, por vezes, a cor do composto cíclico está mais próxima ao que é produzido por uma base do que a cor produzida por um ácido comum.

O íon sulfeto, como o íon iodeto, atua como uma base forte com alguns ácidos. Por esta razão, eu esperava descobrir que a cor de fenolftaleína desapareceria com a adição de íon sulfeto. Foi o caso. A descoloração não é instantânea e é inteiramente análoga à produzida pelo OH- sozinho em concentração elevada. Um caso mais interessante de tipo semelhante foi estudado por Bouchard,33 que descobriu que a fluorescência da fluoresceína, embora não muito afetada pela maioria dos íons, é muito diminuída pelo I-, e ainda em um maior grau pelo S--. É evidente que uma pessoa que utilize este indicador e não tenha conhecimento destes fatos possa cometer erros graves na determinação da acidez das soluções.

Encontrei inúmeros casos em que as regras comuns para a determinação de pH a partir das cores dos indicadores falharam completamente. Eu mencionarei apenas um, que é muito marcante. Purpurina,34 em soluções aquosas de ácido, tem uma cor amarela que muda de laranja para uma cor rosa em pH = 8. Se, no entanto, soluções ácidas de cloreto de gálio forem adicionadas, mesmo em concentrações baixíssimas como 0,00001 M, o indicador dá um cor-de-rosa característico de soluções alcalinas. Numa solução que contenha traços mínimos de gálio, uma pessoa que utilize esse indicador pode cometer um erro de cinco unidades no pH. O íon gálio parece combinar mesmo em soluções diluídas quase quantitativamente com o indicador e, provavelmente, na proporção de três moléculas de corante para uma de gálio. O gálio atua como um ácido forte, e, não obstante, por formar um anel de seis membros, proporciona uma cor que imita a de uma solução básica. O indicador em solução básica passa para uma forma mais altamente ressonante. A diminuição desta ressonância por um ácido parece ser compensada em parte pela ressonância adicional do novo anel.

Radicais ácidos e Radicais básicos. Antes de deixar o assunto de corantes orgânicos, em que as propriedades óticas e químicas são conhecidas por serem marcadamente influenciadas por substituições na molécula, gostaria de chamar a atenção brevemente para uma extensão óbvia e efetivamente necessária da ideia de ácidos e bases. Nós tratamos até agora com os casos em que uma molécula, um ácido, combina-se com outra molécula, uma base; mas o mesmo tipo de neutralização pode ocorrer em nível intramolecular. Fomos levados a crer na ideia de radicais ácidos e radicais básicos. Qualquer substituição em um anel benzênico pode produzir alterações na ressonância existente no sistema, mas há determinados grupos que têm um enorme efeito porque eles são capazes de adicionar novos tipos da ressonância. Estes são os grupos que podem compartilhar um par de elétrons não ligantes com um átomo vizinho e, portanto, são grupos básicos, e aqueles que podem compartilhar um par de elétrons pertencentes a um átomo vizinho e, portanto, são grupos ácidos. Estas duas classes correspondem inteiramente aos grupos orto-para dirigentes e os grupos meta dirigentes. Eles também correspondem inteiramente aos auxocromos e antiauxocromos de Wizinger.35 Os radicais NR2 e NO2 tipificam estas duas classes. O primeiro pode formar uma dupla ligação com um átomo de carbono adjacente e fornece o par de elétrons necessário. O último também pode formar uma ligação dupla com um átomo de carbono adjacente, mas o par de elétrons deve vir do restante da molécula. Mesmo que tal dupla ligação não seja completamente formada, no sentido de fórmulas estruturais mais antigas, sua formação pode constituir um membro de um grupo de estruturas ditas como ressonantes com uma outra, e, assim, profundamente influencia o carácter da molécula.

Ácidos Secundários e Ressonância no Grupo Trifenilmetil. O cloreto de trifenilmetila em solventes inertes é parcialmente ionizado, e esta ionização é grandemente favorecida pela substituição do N(CH3)2, de modo que violeta de cristal, que tem um desses grupos em cada posição para se comporta como um típico sal forte em solução aquosa. O íon é anfótero na medida em que pode atuar como uma base primária e como um ácido secundário. Na presença de ácido, o íon hidrogênio adiciona instantaneamente ao nitrogênio básico até que o equilíbrio seja estabelecido. Por outro lado, a adição de íon hidróxido ao carbono central, que é o processo que causa descoloração em álcali forte, é lenta e requer, de acordo com as medidas de Biddle e Porter,36 uma energia de ativação da ordem de 14.000 calorias. Um processo inteiramente semelhante ocorre na descoloração de fenolftaleína por OH- e S--, que discutimos há pouco.

Wizinger afirma que o cloreto de trifenilmetila, que se dissolve em clorobenzeno para originar uma solução amarelo pálido, transforma-se em um amarelo brilhante, devido à ionização, quando aquecido a temperatura de ebulição do solvente, e que retorna para a sua cor original por resfriamento. Repeti este experimento e descobri que quando a solução em ebulição é resfriada, ela não retornará imediatamente à cor pálida original. De fato, se a solução em ebulição for rapidamente arrefecida, ela pode ser mantida durante horas a temperatura do gelo, sem perda apreciável da cor. Todos esses fatos mostram que os cátions trifenilmetila substituídos são, não ácidos primários, mas secundários.

Na formulação dada por Pauling para a possibilidade de "ressonância entre duas ou mais fórmulas de Lewis", ele mostra que é não apenas necessário que as energias de várias formas sejam quase iguais a fim de tornar a ressonância significativa, mas também que as várias fórmulas devem pertencer ao que pode ser chamado o mesmo tipo de quantum.37 No entanto, é evidente que, nas moléculas complexas, a questão de saber se duas fórmulas pertencentes ao mesmo tipo podem dificilmente ser resolvidas pelas poucas regras que foram satisfatoriamente interpretadas por simples espectroscopia atômica. Em vez disso, pode ser necessário algumas vezes obter tais informações empiricamente a partir de observações de comportamento químico.

Parece óbvio que a ressonância não poderia ocorrer entre uma forma paramagnética e uma diamagnética. Parece também improvável que ressonância possa existir entre duas fórmulas, uma de que contenha elétrons desemparelhados e outra com somente elétrons emparelhados. Assim, parece-me que as fórmulas com ligação de um elétron para o B2H6, discutidas por Sidgwick e por Pauling, não podem ser incluídas no sistema de ressonância característico dessa substância em seu estado normal. Que outras restrições devem ser colocadas sobre o tipo de estruturas que possam ressonar uma com a outra? Gostaria de sugerir provisoriamente, e como tópico de uma investigação posterior, que, pelo menos na série de trifenilmetila, não há ressonância entre as fórmulas correspondentes a um ácido primário e aquelas correspondentes a um ácido secundário.

Se considerarmos o cátion de trifenilmetila e seus vários derivados, nós anteriormente tivemos de escolher entre as fórmulas que podem ser indicadas por

Em que I mostra carbono trivalente e a carga positiva situada na vizinhança desse carbono central, enquanto II mostra uma forma quinóide com a carga positiva transferida para alguma outra parte da molécula. Em termos da teoria presente, I representa um grupo de condições de ressonância, enquanto II representa um grupo muito mais amplo, para que a dupla ligação possa pertencer a qualquer um dos três anéis e em que ambos os anéis de fórmulas orto e para quinóides sejam possíveis. Agora minha crença é que não há nenhuma ressonância entre as fórmulas do grupo I e as fórmulas do grupo II, e que o sistema de ressonância II pode sofrer uma excitação antes que ele possa passar para o sistema I.

Um futuro estudo experimental de velocidade de reação em tais sistemas será interessante.

Ácidos e Bases como catalisadores

Tem sido apontado que em soluções aquosas podemos estudar apenas uma pequena parte do intervalo das forças de ácidos e de bases. Então nós descobrimos que em água, enquanto ácidos e bases mostram pronunciados efeitos catalíticos, eles geralmente só aceleram reações que ocorrem em certa medida sem catálise. Quando nos voltamos para os ácidos mais fortes do nosso sistema generalizado nós descobrimos que eles são capazes de produzir um grande número de reações que não poderiam ocorrer sem sua intervenção. Quando consideramos as diversas sínteses orgânicas que são causadas por ácidos fortes, tais como os haletos de muitos metais e de boro, vemos mais plenamente o âmbito da ação catalítica. É verdade que, em muitos casos, a substância que promove a reação é consumida durante o seu curso, mas existem muitos casos em que estas substâncias atuam como verdadeiros catalisadores.

Neste vasto campo quase nenhuma medição quantitativa de velocidades de reação foi feita, mas algumas observações qualitativas são pertinentes para o nosso propósito. Nós vimos que I- e SCN- agem como bases fortes com SO2. É interessante, portanto, recordar algumas observações de Rosenhelm.38 Ele descobriu que o dióxido de enxofre reage com etóxido de sódio em solução alcoólica para dar íons ROSO2-, que pode, então, ir para o íon sulfonato, RSO3- esta reação é especificamente catalisada por I- e CNS-. Este é evidentemente um caso claro de catálise básica, devido à formação de intermediários temporários entre ROSO2- e os íons básicos.

Quando nos voltamos para a consideração de soluções aquosas, podemos esperar encontrar muitos casos semelhantes de ampla ação catalítica específica de vários ácidos e bases. Tal fenômeno ainda não foi encontrado. Tem sido muito aceito que reações são promovidas por íons hidrogênio e por H-ácidos não dissociados, e que a eficácia dos H-ácidos para com todas as reações é uma função monotônica simples das forças dos ácidos. Esta conclusão pareceu ser confirmada por uma grande quantidade de trabalho cuidadoso por parte de Brönsted e seus colaboradores. Ainda a partir das ideias desenvolvidas neste trabalho devemos julgar tal conclusão como totalmente errônea. A razão que a forte catálise específica por certos ácidos e bases não foi observada não é difícil de encontrar. Se olharmos para as reações resumidas por Schwab39 vemos que todas as reações que foram estudadas e utilizadas em apoio à hipótese monotônica têm sido reações que envolvem a hidrólise, a adição de água a uma molécula, a subtração de água de uma molécula, ou a transferência de hidrogênio lábil a partir de uma molécula para outra. Tão logo que as reações de tipos bastante diferentes foram cuidadosamente estudadas em água e em outros solventes, podemos olhar para amplos desvios da regra que os ácidos e bases podem ser dispostos numa ordem definida com relação à força".

A tradução de Acids and Bases como contribuição para a formação de profissionais da área da Química

Lewis, na abertura de Acids and Bases, demonstra que era um pesquisador conhecedor da história da ciência, quando aponta o fluxo teórico da temática acidez. Seus argumentos são postos em diálogo (de modo nem sempre pacífico) com pesquisadores de seu tempo, como Ahrrenius, Brönsted e Lowry, com os físicos pesquisadores da mecânica quântica e consigo mesmo, retomando teórica e empiricamente uma proposição feita por si mesmo quinze anos antes.

Conhecer o texto escrito por Lewis e seus subjacentes textos críticos e comentários traz mais informações para a exposição escolar/acadêmica sobre a emergência da proposta de acidez feita pelo autor que enalteça o contexto de produção em vez de concentrar-se apenas no fato e em um nome de destaque.40 Nenhum cientista tira suas teorias de cartolas, como fazem os ilusionistas.

O papel da história da ciência na educação é de possibilitar uma visão mais humanizada das alterações sofridas pela criação de novas teorias científicas e que essas não são absolutas e ateóricas. Além disso, os estudos históricos da ciência no processo educativo contribuem também para apresentar uma visão de ciência mais próxima da epistemologia contemporânea em que a gênese do conhecimento científico não é neutra desconectada de condições políticas, históricas, sociais e econômicas de cada contexto.2,41,42

Antes da massificação da internet, o acesso a documentos históricos era bastante difícil e geralmente dependia da possibilidade de viajar até bibliotecas especializadas, localizadas principalmente fora do país, pois grande parte da produção científica dos séculos anteriores foi eurocentrada.43,44 Apesar do aumento da difusão de materiais sobre história, filosofia e sociologia da ciência, pela publicação de artigos e pela disponibilização por grandes bibliotecas virtuais e sites especializados, a maior parte da produção deriva de países anglófonos45 e a língua pode tornar-se uma barreira.

Nesse sentido, a fim de contribuir para o campo em crescimento, concordamos com Kisfaludy e Queirós46 que indicam a relevância das traduções de fontes primárias47 para a área da educação em ciências. Assim, buscamos nesse artigo tornar mais acessível, para leitores de língua portuguesa, parte do trabalho de um dos químicos mais proeminentes do século XX, a fim de localizar uma das etapas de sua proposição teórica sobre ácidos e bases. Vale marcar que apesar de profícuas, a tradução de fontes primárias por si só não gera nem objetos didáticos nem consciência sobre a ciência como atividade humana. Na verdade, as traduções enriquecem o trajeto a ser percorrido por profissionais em busca de navegar em águas mais profundas no processo educativo de Ciências, em específico no Ensino de Química.

 

MATERIAL SUPLEMENTAR

O artigo original, traduzido e comentado nesse trabalho está disponível em http://quimicanova.sbq.org.br, com acesso livre.

 

REFERÊNCIAS

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17. [N.A.] Apresentado na manhã de quinta-feira, 20 de maio de 1938.

18. [N.A.] "Valence and the Structure of Atoms and Molecules", Chemical Catalog Company, New York, 1923.

19. [N.A.] Sidgwick, "The Electronic Theory of Valency", Oxford University Press, 1929

20. [N.A.] Ver a interessante monografia de A. Stuart, "Molekülstructur", J. Springer, Berlim, 1934.

21. [N.A.] James Campbell Brown, "History of Chemistry", 1913.

22. [N.A.] Percebi que está em desuso falar íon hidrogênio. Era uma ideia familiar, mesmo nos últimos anos do século dezenove, que o íon hidrogênio em água estivesse altamente hidratado. Deveriam haver diversas espécies moleculares em solução tais como H+, H3O+ e H5O2+. Se desejarmos nos referir especialmente a um destes, como o íon hidrônio, H3O+, poderíamos, mas parece melhor manter o nome íon hidrogênio, e usar o símbolo H+ como designações curtas para o grupo todo.

23. [N.A.] Booth e Wilson (J. Am. Chem. Soc., 57, 2273 (1937) obtiveram, a partir de um estudo de pontos de congelamento, a evidência da existência de compostos entre o argônio e o trifluoreto de boro. Eles sugerem que compostos mais estáveis deveriam ser obtidos com criptônio e xenônio. Desde que o trióxido de enxofre seja consideravelmente um ácido mais forte que o trifluoreto de boro a partir da maior parte das bases, pode ser descoberto gerando compostos mais estáveis com os gases nobres.

24. [N.A.] Pode não haver um caso em que o íon lítio e o íon berílio ajam como ácidos verdadeiros e liguem-se a si mesmos, formando ligações de considerável força, a pares de elétrons situados em um ânion típico tal como o Cl-. Da mesma forma como lidamos com os membros mais altos dessas duas famílias, as forças de tais ligações tornaram-se menores até, no caso do césio, estar indubitavelmente no estado gasoso, ou em uma solução em algum solvente de baixa constante dielétrica, o íon césio está ligado a um par de elétrons definido do ânion. Em vez disso podemos considerar o cátion e o ânion postos juntos simplesmente por forças coulômbicas e comportando-se essencialmente como duas esferas opostamente carregadas. Diz-se frequentemente que tal molécula possui uma "ligação polar", mas pessoalmente eu prefiro restringir a palavra "ligação" para os casos em que dois átomos estão unidos por um par de elétrons, ou, no tipo extremamente raro de íon molecular de hidrogênio, por um único elétron.

25. [N.A.] B(OR)3 forma compostos com álcalis e também com alcoolatos (Copaux, Comp. Rend., 127, 721 (1898)). O boro age aqui da mesma forma como faz na amplamente diferente classe de compostos entre os trialquiboro e a amônia ou aminas.

26. [N.A.] Para uma introdução a ideia de ressonância, uma ideia que está se tornando cada vez mais importante na química, e à qual teremos frequentes ocasiões para nos referir, veja o capítulo de Pauling no "Organic Chemistry" de Gilman, Jonh Willey and Sons, 1938.

27. [N.T.] Lewis utiliza o termo polimerização na pág. 304 do texto original, o que nos faz acreditar que ele de fato não optou por dímeros (ao falar de pares de moléculas) ou polímeros (para falar de macromoléculas com repetição de uma unidade monomérica).

28. [N.A.] Estes pseudossais são do mesmo tipo que o óxido de amina, o qual, na verdade, cai nesta classe se consideramos que é composta pela base, trialquilamina, e o ácido, oxigênio atômico.

29. [N.A.] Pfeiffer ("Organiche Molekülverbindungen", 2nd ed., Ferdinand Enke, Stuttgart, 1927) fez uma revisão muito extensa e valiosa da literatura referente a compostos entre substâncias orgânicas e sais metálicos. Ele mostra em numerosos casos as grandes semelhanças entre estes e os compostos das mesmas substâncias orgânicas com H-ácidos. Infelizmente, tanto quanto eu sei, não houve nenhuma tentativa semelhante para reunir os fatos relativos os compostos semelhantes e igualmente importantes entre substâncias orgânicas e nossos outros ácidos generalizadas, tais como os óxidos de enxofre e os halogenetos de boro. Pfeiffer faz muitas de suas conclusões a partir da existência e composição dos compostos sólidos. Parece-me, contudo, que, em virtude das leis especiais de empacotamento compacto e estabilidade em cristais, nossas ideias de estrutura molecular devem ser obtidas principalmente a partir de moléculas que podem ser provadas a existir no estado gasoso ou dissolvido. Resta salientar que as substâncias que Pfeiffer e outros chamam de compostos moleculares são produzidos pela união de um ácido e uma base, e que a ligação que os une não é diferente de qualquer uma das outras ligações com que os químicos estejam familiarizados.

30. [N.A.] Compostos insolúveis entre indicadores e sais metálicos, conhecidos como lagos têm sido conhecidos e usados por séculos na indústria de tingimento.

31. [N.A.] Eu ficaria menos surpreso pelas cores idênticas produzidas por diversos ácidos se eu tivesse conhecido o trabalho feito trinta anos antes por K. H. Meyer (Berichte deut. Chem. Ges., 41, 2568 (1908)). Meyer mostrou que a cor da fuchsina é a mesma em clorofórmio contendo cloreto estânico como em ácido sulfúrico concentrado. Não somente é a cor visual a mesma, mas medidas espectroscópicas de absorção de luz deram curvas quase idênticas nos dois casos. O mesmo resultado foi também obtido com benzaurina nas mesmas duas soluções. Meyer concluiu que uma molécula de cloreto estânhico, adicionada a um indicador, dá uma molécula que é extremamente similar a alguma entre o indicador e o H-ácido. Esta conclusão poderia ser firmemente justificada por este experimento isolado, uma vez que em ácido sulfúrico concentrado as cores brilhantes obtidas com muitos indicadores são provavelmente devidas a compostos com ácido sulfúrico parcialmente desidratado, ou mesmo com SO3.

32. [N.A.] Rosenstein and Adams, J. Am. Chem. Soc., 36, 1452 (1914).

33. [N.A.] Bouchard, Comp. Rend., 196, 485 (1933).

34. [N. T.] 1,2,4-tri-hidroxiantroquinona

35. [N.A.] Wizinger, "Indicadores orgânicos," Ferd. Dümmlers, Berlin and Bonn, 1933. Achei neste livro uma descrição muito interessante e útil do estado da química das cores até a data quando a ideia de ressonância foi apresentada.

36. [N.A.] Biddle and Porter, J. Am. Chem. Soc., 37, 1571 (1915).

37. [N.A.] Pauling, J. Am. Chem. Soc., 54, 988 (1932).

38. [N.A.] Rosenheim, Berichte deut. Chem. Ges., 31, 405 (1898) e 38, 1303 (1905).

39. [N.A.] Schwab, "Catalysts." English translation by Taylor and Spence. Van Nostrand, New York, 1937.

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