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15:24, qui nov 21

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Revisão


Transições eletrônicas em α-Fe2O3: modelos teóricos e limitações
Electronic transitions in α-FE2O3: theoretical models and limitations

Isabela F. S. Santos*; Dalva L. A. de Faria

Departamento de Química Fundamental, Universidade de São Paulo, 05508-000 São Paulo – SP, Brasil

Recebido em 11/10/2022
Aceito em 01/02/2023
Publicado na web 31/03/2023

Endereço para correspondência

*e-mail: isafsodre@gmail.com

RESUMO

Addressing electronic transitions of hematite (α-Fe2O3) is still considered a topic in active debate, even though it is one of the most widely used compounds from ancient times to the present and also one of the most extensively investigated iron oxides. In this review, a general analysis of the approaches and theoretical models which had been used to explain the electronic absorption spectrum of α-Fe2O3, from the first proposal presented by Tandon and Gupta (1970) to the more recent results obtained by quantum mechanical calculations, is presented. The analysis of the already published studies is made pointing out the main factors that must be considered to allow a more reliable understanding of the UV-Vis-NIR spectra of α-Fe2O3. Furthermore, controversies in the calculated results are discussed, analysing the suitability of each of the approaches used. Reasons for differences observed in the experimental data reported in the literature are also discussed.

Palavras-chave: hematite; electronic absorption spectrum; band assignment.

INTRODUÇÃO

O uso de hematita (α-Fe2O3) ao longo da história da humanidade remonta a tempos remotos, destacando-se seu uso como pigmento desde a antiguidade até os dias atuais.1 Acompanhando o desenvolvimento tecnológico, a observação de suas propriedades eletrônicas,2 magnéticas3 e fotocatalíticas4 despertou o interesse científico em potenciais aplicações, principalmente pela descoberta do aprimoramento dessas propriedades quando sintetizada em escala nanométrica.5 Dentre os principais interesses em seu estudo, destacam-se as investigações desenvolvidas com fotoeletrodos6 e fotocatálise, o que se dá principalmente por se tratar de um semicondutor de baixo custo e alta estabilidade, com valores reportados para band gap indireto variando entre 1,38-2,09 eV, e band gap direto variando entre 1,95 e 2,35 eV,7 obtidos por diferentes métodos e para amostras com diferentes características cristalinas.

O band gap direto ocorre quando o máximo da banda de valência e o mínimo da banda de condução coincidem em relação ao valor do vetor de onda . Em outras palavras, há conservação de momentum e a transição eletrônica acontece diretamente. Quando o máximo da banda de valência e o mínimo da banda de condução se encontram a diferentes valores de , as transições são chamadas indiretas.8 Levando em conta que a conservação de momentum cristalino é observada em sistemas perfeitamente periódicos,8 a existência de transições via band gap indireto pode ser compreendido como favorecido pelo baixo grau de cristalinidade de um semicondutor.

Essa faixa de band gap torna a hematita capaz de absorver uma porção considerável do espectro visível, sendo interessante não somente para o uso em fotodegradação, mas também em células solares para geração de energia, ainda que seja um material limitado pela baixa fotoeficiência que apresenta.9 Nesse sentido, observa-se na literatura elevado número de trabalhos que apresentam tentativas para contornar essa limitação seja, por exemplo, na produção de filmes finos a partir de hematita nanocristalina,9 dopagem10 ou explorando efeitos sinérgicos da combinação com outros compostos.11 Mesmo no contexto de bens culturais, α-Fe2O3, enquanto pigmento, constitui um interessante objeto de estudo no que diz respeito às suas propriedades ópticas, pois a variação de cor apresentada (de vermelho a púrpura) ainda não se encontra completamente compreendida: apesar de pouca profundidade no tratamento do problema, verifica-se na literatura um argumento ainda bastante empregado para a explicação desse fenômeno, baseado em uma abordagem puramente morfológica,12 segundo a qual a cor púrpura apresentada pelo pigmento seria meramente uma consequência das dimensões micrométricas de suas partículas. Dessa forma, a ausência de uma explicação detalhada para as variações de cor observadas torna-se uma motivação para que maiores investigações das propriedades ópticas da hematita sejam realizadas.

De maneira geral, a busca pela compreensão das propriedades ópticas da hematita tem sido bastante atrativa para pesquisadores de diversos campos do conhecimento. Em Geologia, por exemplo, é de bastante interesse a busca pela correlação entre o conteúdo de hematita e a cor dos solos,13,14 levando em conta que a hematita é o pigmento dominante em rochas sedimentares. Nesse contexto, informações sobre a cristalinidade e capacidade de pigmentação da hematita são importantes tanto do ponto de vista da pedogênese (formação de solos), quanto de processos posteriores de modificação do solo por intervenção humana, como é o caso de queimadas e fogueiras.15

Outra área de estudo no qual o conhecimento das propriedades ópticas da hematita tem se mostrado relevante é a da exploração extraterrestre, especificamente nos estudos sobre o solo do planeta Marte. Esses estudos vêm sendo realizados por meio de análise remota e in situ, de experimentos em laboratório e simulações em ambientes terrestres análogos, com grande ênfase no desenvolvimento de instrumentação compacta para exploração extraterrestre.16,17 Dentre elas estão espectrômetros, capazes de trazer importantes pistas sobre os tipos e diversidade de processos de intemperismo no planeta,18 incluindo a possibilidade de processos que demandem a presença de água ou atividade biológica.19,20 As diferentes respostas espectrais nas regiões do visível, infravermelho próximo e infravermelho médio (Vis-NIR-MIR) do espectro eletromagnético dos diferentes tipos de hematita encontradas no solo marciano (vermelha finamente granulada, nanoparticulada e cinza cristalina) demonstraram a capacidade dos métodos espectroscópicos em diferenciar os tipos de formação mineral.21

Levando em conta a importância da compreensão das propriedades eletrônicas de α-Fe2O3 em investigações baseadas em técnicas espectroscópicas, o objetivo deste trabalho é apresentar a evolução dos diferentes modelos empregados na literatura para a atribuição das bandas de absorção no espectro eletrônico UV-Vis-NIR de hematita, incluindo discussões das limitações das abordagens adotadas quando comparadas a resultados experimentais.

Absorções no UV-Vis-NIR: aspectos gerais

A necessidade das Geociências de desenvolver métodos que pudessem predizer o conteúdo de hematita em baixas concentrações no solo, que não dependessem de equipamentos caros e de prolongado tempo de análise, resultou em grande contribuição para o entendimento das propriedades ópticas desse óxido de ferro, principalmente no que se refere à investigação da influência de impurezas metálicas na determinação da cor do mineral. Em estudo publicado por Barron e Torrent,22 é demonstrada a correlação linear entre a luminosidade (que varia de preto (0) a branco (100))23 de hematitas sintéticas e o conteúdo de alumínio. Nesse trabalho a luminosidade foi medida usando o sistema CIELab, que parametriza o espaço de cor a partir das coordenadas L*, a* e b*, sendo L* a luminosidade, a* a coordenada cromática que varia de vermelho a verde, e b* a coordenada cromática que varia de amarelo a azul.23

Esse mesmo sistema de parametrização foi usado mais tarde por Torrent e Schwertmann24 na comparação do comportamento óptico de hematitas sintéticas e de rochas sedimentares. Os autores verificaram que hematitas sintéticas tendiam à cor púrpura quanto maior o tamanho de suas partículas, mas não observaram a mesma tendência para hematitas provenientes de rochas sedimentares. Para explicar essas diferenças, eles consideraram a hipótese de que a existência de agregados de partículas de hematita em rochas sedimentares poderia ser a responsável pela alteração do comportamento óptico dessas amostras, o que havia sido sugerido anteriormente por Walker et al.25 Para verificar esse argumento, eles realizaram a moagem das amostras de hematitas de rochas sedimentares, na tentativa de destruir possíveis agregados de partícula e observar alterações nas cores apresentadas. De fato, as amostras de hematita foram se tornando mais amareladas após a moagem, adquirindo cores bastante similares às verificadas para hematitas sintéticas com aproximadamente o mesmo tamanho de partícula. Os resultados corroboraram o argumento de que a presença de agregados cristalinos com diferentes tamanhos e densidades contribuem para as diferenças no comportamento óptico da hematita, já que a destruição dos agregados levou à alteração da cor observada. A possibilidade de geração de defeitos durante a moagem influenciar as propriedades ópticas da hematita não foi discutida, apesar de ser plausível tendo em vista a esperada alteração na estrutura eletrônica de sólidos quando defeitos são gerados em sua estrutura cristalina.

Correlações entre a existência de defeitos naturalmente formados na estrutura cristalina da hematita e o tamanho de partícula foram estudadas por Chernyshova et al.26 A partir da síntese de nanopartículas de hematita com diferentes tamanhos, os autores observaram que a formação de defeitos estruturais é inversamente proporcional ao tamanho de partícula apenas quando nenhuma restrição cinética é imposta. Em outras palavras, o número de defeitos não dependia apenas do tamanho do cristal, mas também da cinética de crescimento dos grãos. Apesar dos autores não abordarem os impactos das alterações observadas nas propriedades eletrônicas da hematita, a demonstrada relação inversa entre tamanho de partícula e quantidade de defeitos de rede é corroborada pelo argumento dado por Fei et al.,27 segundo o qual a grande razão entre área superficial e volume, tipicamente apresentada por nanopartículas, favoreceria a formação de defeitos de rede e resultaria em mudanças na estrutura eletrônica de toda a partícula.

A respeito da influência de defeitos não superficiais nas propriedades ópticas de hematita, estudos teóricos sugerem que a ocorrência de defeitos intersticiais (íons em posições normalmente não ocupadas na estrutura cristalina de um composto) na estrutura cristalina de óxidos de ferro levaria à diminuição da simetria do cristal e consequente redistribuição de densidade eletrônica28,29 que, por sua vez, implicaria no surgimento de novos níveis de energia e diminuição de band gap, levando a alterações nas propriedades do sólido cristalino como um todo.

As absorções eletrônicas em sólidos formados por metais de transição são geralmente discutidas de acordo com três teorias principais: teoria do orbital molecular (1928), teoria do campo cristalino (1929) e teoria do campo ligante (1957). Resumidamente, as principais diferenças entre estas abordagens se concentram, essencialmente, nos seguintes pontos: a teoria do orbital molecular considera transições ocorrendo entre orbitais moleculares que são formados pela contribuição dos orbitais atômicos do metal e do ligante, envolvidos na ligação química;30 a teoria do campo cristalino31,32 trata a interação entre o íon metálico central e os ligantes como meramente eletrostática, com a consequente perda da degenerescência dos orbitais d do metal entre os quais ocorrem transições interatômicas; já a teoria do campo ligante33 introduz na teoria do campo cristalino o caráter covalente da ligação química entre o íon metálico e o ligante e, quando necessário, leva em consideração a sobreposição e orientação dos orbitais d de ambas as espécies envolvidas na ligação. Dependendo do caráter covalente de uma ligação, uma determinada abordagem pode vir a ser mais adequada do que outra. Outras abordagens são também discutidas neste texto.

Espectro no UV-Vis de hematita: abordagens iniciais

O espectro eletrônico (UV-Vis) da hematita foi pela primeira vez interpretado em 1970 por Tandon e Gupta,34 a partir de um estudo de espectroscopia de reflectância difusa de amostras puras e diluídas de hematita. Nessa publicação foi feita a simples correlação das bandas observadas com a atribuição previamente feita para transições de Fe3+ coordenado octaedricamente no mineral berilo Be3Al2(SiO3)6), uma vez que essa geometria de coordenação do íon Fe3+ também corresponde à unidade poliédrica básica do α-Fe2O3. A partir da comparação com o observado para o berilo, foi proposto que as bandas observadas em 11630 cm-1 (860 nm) e 21500 cm-1 (465 nm) no espectro eletrônico da hematita seriam devidas a transições de campo cristalino proibidas por spin (argumento corroborado pela baixa intensidade das bandas), enquanto bandas de maior intensidade em 28570 cm-1 (350 nm), 34480 cm-1 (290 nm) e 43290 cm-1 (231 nm) foram interpretadas como provavelmente decorrentes de transições de transferência de carga.34

 

 

Alguns anos mais tarde (1973 e 1974), Tossell et al.36,37 usaram cálculos do orbital molecular utilizando o método SCF-Xα-SW (self consistente fieldscattered-wave) para um cluster octaédrico (FeO69-). O SCF-Xα-SW é um método para calcular a estrutura eletrônica aproximada de sistemas de grandes dimensões (clusters ou moléculas).38 Para isso, parte do fracionamento do cluster ou da molécula em uma série de esferas, cada uma delas centrada em um átomo. Para cada uma dessas esferas atômicas, a equação de Schrödinger38 é resolvida para um elétron para os orbitais i e suas energias εi,38 sendo Vc o potencial de Coulomb e Vx o potencial de troca (Equação 1).

Vc e Vx são expressos em termos da densidade de carga elétrica (ρ = Σ(i)n11*1), onde ni é a ocupância do orbital i);38 Vc é dado pela equação de Poisson e Vx decorre da aproximação Xα de Slater, com , sendo α um fator de ajuste de escala.38

As soluções são então combinadas e o resultado é usado para derivar um novo potencial molecular. O processo é repetido iterativamente até um resultado autoconsistente ser obtido.38

O diagrama dos orbitais moleculares proposto por Tossell et al.36 para o cluster octaédrico FeO69-, usado para a interpretação do espectro eletrônico da hematita, é mostrado na Figura 1.

 


Figura 1. Energias (em eV) dos orbitais vazios de menor energia (7t1u, 7a1g, t1u, a1g, eg e t2g) e orbitais de valência ocupados para o cluster octaédrico FeO69-, calculados por Tossell et al.36 Adaptado da referência 36

 

De acordo com os autores,36 uma limitação do método SCF-Xα-SW é que para sistemas com elétrons desemparelhados (open-shell), como é o caso do FeO69-, uma descrição detalhada do sistema multieletrônico (multipleto) só é possível mediante combinações lineares das funções determinantes baseadas nos orbitais SCF-Xα (cada multipleto corresponde a 2S+1 estados degenerados com número quântico magnético MS (MS = S, S-1,...,-S) e, analiticamente, cada estado de um multipleto é dado pela combinação linear de determinantes de Slater);38 esse tipo de cálculo, porém, não pode ser realizado com este método, o que faz com que as transições de baixa energia não possam ser calculadas precisamente. Dessa forma, Tossell et al.37 foram capazes de obter com precisão apenas frequências maiores que 20000 cm-1 (500 nm), atribuindo-as a transições do campo ligante do tipo spin flip (inversão de spin) ou transferência de carga. As atribuições são apresentadas na Tabela 2.

 

 

Quando a energia das transições eletrônicas de hematita medidas experimentalmente em diferentes trabalhos é comparada, chama a atenção as diferenças significativas nos valores apresentados. Por exemplo, quando os espectros eletrônicos de hematita obtidos por Tandon e Gupta34 por reflectância difusa de amostras pulverizadas são comparados com os obtidos por Bailey40 utilizando espectroscopia de absorção e de reflectância em cristais orientados (111), verifica-se que as bandas observadas em 16000 cm-1 (625 nm), 18250 cm-1 (548 nm) e 24500 cm-1 (408 nm) não foram observadas por Tandon e Gupta. Por outro lado, essas e outras transições não observadas, foram detectadas experimentalmente por Marusak et al.,41 em 1980, a partir de medidas de espectroscopia de absorção para filmes cristalinos orientados (110).

Diferente de Tossel et al.36,37 que não obtiveram sucesso no cálculo das transições abaixo de 20000 cm-1 pelo método SCF-Xα-SW (ver Tabela 2), Marusak et al.,41 fazendo uso da teoria do campo ligante, foram capazes de calcular transições em 11560 cm-1, 12900 cm-1, 16670 cm-1 e 18690 cm-1, observadas no espectro eletrônico da hematita. Essa diferença sugere que a abordagem da teoria do campo ligante seria adequada para explicar tais transições uma vez que, como já foi discutido anteriormente, o método SCF-Xα-SW tem limitação no cálculo de transições de baixas energias quando se trata de sistemas com elétrons desemparelhados (open-shell), como é o caso do FeO69-. Essa conclusão está em consonância com a proposta apresentada mais tarde por Sherman e Waite42 em seus estudos do espectro eletrônico da hematita, onde os autores empregaram a teoria do campo ligante como primeira abordagem, reservando o uso da teoria do orbital molecular (aplicação do método SCF-Xα-SW) apenas para tratar as transições provavelmente atribuídas à transferência de carga; de acordo com esses autores as transições de transferência de carga seriam mais facilmente descritas em termos da teoria do orbital molecular, o que foi usado como argumento para justificar a abordagem utilizada.42 Os resultados obtidos por Sherman e Waite serão discutidos mais adiante.

Os resultados reportados por Marusak et al. estão sumarizados na Tabela 3, incluindo as atribuições para as bandas observadas entre 20000 a 45000 cm-1 obtidas pelos autores pelo método SCF-Xα-SW. É importante destacar que as transições devidas ao fenômeno de inversão de spin apresentadas por Marusak et al. (490 e 420 nm) encontram-se na ordem inversa do apresentado na publicação de Tossel et al. (ver Tabela 2), no entanto os autores não explicam o motivo da discordância.

 

 

Outro exemplo do uso da teoria do campo ligante na explicação do espectro eletrônico da hematita é o estudo apresentado por Morris et al.43 sobre de óxidos de ferro pulverizados em escala submicroscópica. Nesse estudo, os autores realizaram medidas de espectroscopia de reflectância difusa das amostras, observando para hematita bandas em aproximadamente 860 nm com ombro em 1030 nm, interpretadas como resultado da transição de campo cristalino 6A14T1, sendo o ombro resultado da separação do nível 4T1; um ombro em aproximadamente 630 nm acompanhando a borda de absorção em 550 nm também foi observado e interpretado como resultado da transição de campo cristalino 6A14T2, com a separação do nível 4T2.

De maneira geral, o fato dos experimentos, nos diversos estudos, terem sido realizados com amostras de hematitas de diferentes origens ou características poderia justificar, ao menos em parte, a discrepância na observação de bandas do espectro eletrônico de α-Fe2O3. Por outro lado, é preciso também levar em conta a influência de diferentes procedimentos de preparação das amostras. Um procedimento comum para obtenção do espectro eletrônico de óxidos de ferro por reflectância difusa é a mistura mecânica com substância diluente (como sulfato de bário, BaSO4). Pela similaridade com o processo de moagem, é possível argumentar que a mistura mecânica do óxido de ferro com a substância diluente pode levar à formação de defeitos na estrutura cristalina das partículas e consequentemente induzir mudanças em sua estrutura eletrônica e nesse caso, alterações no perfil espectral eletrônico das amostras de hematita poderiam ser observadas. A Figura 2 destaca as diferenças entre dois espectros obtidos por reflectância difusa no Vis-NIR de uma mesma amostra de hematita sintética por dois métodos diferentes: (a) mistura mecânica de hematita com BaSO4 por leve agitação dos sólidos e (b) traço de hematita feito sobre uma folha de papel branco usada como substrato para a análise. A comparação desses resultados experimentais evidencia diferenças acentuadas nas intensidades das bandas de acordo com o método de preparo de amostra (Figura 2), chamando a atenção para a importância desse procedimento que pode interferir sensivelmente na atribuição das transições eletrônicas e na investigação das propriedades ópticas dos materiais. No exemplo apresentado na Figura 2, o efeito abrasivo do papel na formação do traço de hematita pode ter causado danos na superfície das partículas, resultando em defeitos na estrutura cristalina que sabidamente podem levar a alterações em seu comportamento óptico.28,29

 


Figura 2. Espectros de reflectância difusa no Vis-NIR de hematita sintética: (a) mistura mecânica de hematita com BaSO4 e (b) espectro do traço feito sobre papel. Para maiores detalhes ver referência 44

 

Em trabalho publicado em 1979 por Strens e Wood,45 os autores apresentam uma revisão crítica da confiabilidade e utilidade do método de reflectância difusa para a obtenção de espectros de absorbância de óxidos metálicos. Nesse trabalho, eles apresentam dois possíveis fatores para variações observadas nas posições de banda: i) a presença de misturas físicas de duas fases de óxidos, ou ii) presença de cristais com absorções altamente anisotrópicas. A relevância deste último aspecto reside no fato de que o espectro de reflectância difusa é sempre dominado pela luz refletida pela fase menos absorvedora, podendo variar, portanto, de acordo com a orientação da amostra durante a medida. A anisotropia em cristais de hematita pode ser assim compreendida como de especial preocupação quando se trata da investigação de cristais altamente orientados. A possibilidade da existência de misturas físicas de fases de óxidos de ferro é também uma preocupação relevante principalmente nos casos em que as amostras são de origem natural, como as provenientes de solos ou rochas sedimentares, ou ainda no caso em que as sínteses de α-Fe2O3 falham na obtenção de uma fase pura. Esse fator, em geral, pode ser verificado pela caracterização prévia das amostras para determinar sua pureza. Ainda nesse trabalho, Strens e Wood45 realizaram atribuições dos espectros de reflectância difusa obtidos experimentalmente para diferentes óxidos de ferro. Para realizar sua atribuição, os autores tomaram como referência os diagramas de energia de orbitais moleculares derivados dos cálculos de SCF-Xα-SW apresentados previamente por Tossell et al.36,37 (Figura 1), porém, discutindo sua atribuição a partir das seguintes características dos orbitais: a ocupância (totalmente preenchido, parcialmente preenchido e vazio), energias, caráter (s, p, d) e simetria.45 De acordo com os autores, essas características são propriedades de maior importância espectroscópica em relação à natureza ligante, não ligante e antiligante dos orbitais, que geralmente eram levadas em conta, devendo receber especial atenção quando se objetiva a predição das transições eletrônicas. Para fornecer uma explicação genérica para os espectros eletrônicos de óxidos metálicos (Fe2+, Fe3+ e Ti2+) e oxi-hidróxidos, Strens e Wood optaram por agrupar os orbitais convenientemente de acordo com seu caráter, como mostrado no diagrama genérico para íons coordenados octaedricamente ao oxigênio construído pelos autores, na Figura 3.

 


Figura 3. Diagrama generalizado dos níveis de energia dos orbitais moleculares de íons coordenados octaedricamente ao oxigênio. As larguras de banda e energias relativas são as indicadas, mas variam de íon para íon. Adaptado da referência 45

 

De acordo com a análise apresentada, tem-se que os orbitais 1eg, 4t1u e 5a1g são próximos em energia e possuem pequeno caráter p ou d, todos sendo derivados dos orbitais atômicos 2s do oxigênio. Estes orbitais estão associados a um grupo de elétrons mais internos fortemente ligados e tem extensão radial pequena. Os orbitais difusos (raio médio maior) 7a1g e 7t1u ocorrem com energias de ligação baixa e provavelmente formam uma banda de condução. Entre estes extremos estão os orbitais de campo cristalino 3eg e 2t2g que são mais estreitos em energia e usualmente parcialmente preenchidos (vazios em íons d0 e preenchidos em d10). Os principais orbitais da banda de valência são formados a partir dos orbitais atômicos do oxigênio, mas tendo contribuição dos orbitais 4s e 3d do metal.

A intensidade das transições eletrônicas responsáveis pela cor é explicada de acordo com as regras de seleção previstas: o princípio de exclusão de Pauli proíbe transições entre níveis preenchidos e obviamente nenhuma transição pode ocorrer entre níveis vazios. A regra de seleção de Laporte permite apenas aquelas transições nas quais o número quântico l muda de 1, ou seja, s-p e p-d, mas nunca transições s-s, p-p, d-d ou s-d. A regra de seleção de spin proíbe transições nas quais ocorra mudança na multiplicidade de spin, e há também restrições de simetria nas probabilidades de transição e, consequentemente, nas intensidades das bandas, com transições g g e u u proibidas e g u permitidas.45 Aplicando essas considerações ao diagrama mostrado na Figura 3, os autores consideraram que na região do ultravioleta (entre 250 e 400 nm) ocorreriam as transições de transferência de carga entre a banda de valência (VB) e os níveis do campo cristalino (CF) e entre o campo cristalino e banda de condução (CB). A partir dessa explicação genérica, Strens e Wood45 propuseram uma atribuição para as transições eletrônicas do α-Fe2O3 sem, no entanto, especificar os orbitais moleculares envolvidos nas transições de transferência de carga, como é mostrado na Tabela 4: a forte absorção centrada em 370 nm, parcialmente resolvida em quatro componentes em 230, 280, 370 e 510 nm, seriam todas atribuídas à transição de transferência de carga O2- → Fe3+ (VB* para CF), com a fraca banda em 870 nm correspondendo à transição de campo cristalino 6A1g4T1g.

 

 

É importante destacar algumas comparações entre as atribuições apresentadas por Tossell et al.37 e Strens e Wood,45 uma vez que estes últimos fizeram uso dos diagramas de energia dos orbitais moleculares obtidos por Tossell et al.37 porém, introduzindo outros critérios para obter a energia das transições, como destacado anteriormente. Curiosamente, as bandas calculadas e atribuídas por Tossell et al.37 a transições de campo cristalino spin-flip (475 e 416 nm) não foram observadas por Strens e Wood,45 da mesma forma que a única banda observada e atribuída a uma transição do campo cristalino por Strens e Wood45 (870 nm, atribuída à transição 6A1g4T1g) não foi calculada por Tossell et al.37

 

 

As razões para as diferenças observadas, contudo, não foram esclarecidas, como também não é possível saber, a partir dos artigos,37,45 se tais diferenças se devem a aspectos teóricos ou experimentais.

Avanços com o modelo SCF-Xα-SW e novas abordagens teóricas

Em 1985, Sherman38 e Sherman e Waite42 apresentaram novos cálculos de SCF-Xα-SW para a estrutura eletrônica de clusters de Fe3+ coordenados octaedricamente incluindo aspectos de distorção da estrutura cristalina da hematita, como tentativa de melhorar a confiabilidade na predição das transições eletrônicas.38 Além disso, novas premissas teóricas foram incorporadas pelos pesquisadores, que contaram com os avanços implementados no método SCF-Xα-SW desde que as investigações de Tossell et al.36,37 foram publicadas como, por exemplo, a sobreposição de esferas atômicas para o potencial molecular38 como alternativa ao uso das médias do potencial nas esferas que circunscrevem os átomos e um potencial constante na região interatômica (muffin-tin).46

A opção de Sherman e Waite42 de incluir aspectos de distorção da estrutura cristalina da hematita nos cálculos realizados merece destaque, pois, como será mostrado mais adiante, isso levou a diferenças fundamentais na atribuição apresentada pelos autores em relação aos trabalhos que já haviam sido publicados, principalmente quanto às intensidades esperadas para as transições de campo ligante e regiões do espectro eletromagnético em que ocorrem.

Na estrutura cristalina da hematita, poliedros FeO6 encontram-se em arranjo face-sharing, como mostrado na Figura 4, que resulta em uma forte e característica distorção trigonal. Esses dímeros, por sua vez, estabelecem configuração edge-sharing e corner-sharing um com o outro, formando folhas de poliedros FeO6 no plano perpendicular ao eixo c.42,47

 


Figura 4. Configuração face-sharing de dímeros octaédricos Fe2 O9 . Adaptado da referência 47

 

A aproximação entre os átomos, gerada pela distorção, aumenta a polarização de spin do oxigênio que conecta as faces do poliedro, o que gera uma interação de supertroca (superexchange, polarização das funções de onda do oxigênio na presença de íons magnéticos Fe3+) que, por sua vez, leva a um acoplamento magnético consideravelmente mais forte do que seria esperado em outras geometrias.42 Como resultado, dependendo dos estados eletrônicos do íon Fe3+ em geometria face-sharing, algumas transições de campo ligante poderão ser muito intensificadas em relação a outras.42

A partir do tratamento teórico apresentado, os autores propuseram que o espectro eletrônico de óxidos de Fe3+ seria dominado por três tipos de transições: transições de campo ligante do íon Fe3+; transições de transferência de carga ligante-metal e, por último, transições que resultam de excitações simultâneas envolvendo orbitais do cátion Fe3+ de sítios adjacentes magneticamente acoplados.42 Como já mencionado anteriormente, Sherman e Waite42 partiram do modelo do campo cristalino para explicar as transições observadas, reservando a abordagem da teoria do orbital molecular (SCF-Xα-SW), para tratar as transições de transferência de carga que, de acordo com os autores, seriam mais facilmente descritas em termos dessa teoria.

Com o desdobramento do campo cristalino do íon Fe3+ em coordenação octaédrica, as diferentes possíveis configurações eletrônicas dos orbitais t2g e eg dão origem a diferentes estados entre os quais podem ocorrer transições eletrônicas.42 A Tabela 6 apresenta os estados para o Fe3+ em coordenação com simetria Oh (característica de α-Fe2O3), D3, C4v e C2v para o estado fundamental (6S) e primeiro estado excitado (4G). A notação que define os estados é baseada na combinação do termo espectroscópico 2S+1L com uma das diferentes simetrias possíveis para o campo cristalino dos orbitais atômicos 3d do metal, onde 2S+1 é o momento magnético do spin total e L corresponde ao momento angular nos sistemas multieletrônicos.

 

 

Na aproximação da teoria do campo ligante, as energias dos estados são expressas em termos de três parâmetros: 10Dq, B e C, onde os parâmetros Racah B e C de campo ligante são medidas da energia de repulsão envolvidas no desdobramento dos orbitais t2g e eg.42 As energias desses estados para o Fe3+ em coordenação octaédrica (Oh) são mostradas esquematicamente no diagrama de Tanabe-Sugano, na Figura 5, e foram calculadas pelos autores como uma função de 10Dq (considerando B e C constantes) a partir das expressões de Tanabe-Sugano42 (Tabela 7).

 


Figura 5. Diagrama de Tanabe-Sugano de Fe3+ alto spin coordenado octaedricamente (ou tetraedricamente). Adaptado da referência 42

 

 

 

Todas as transições que ocorrem do estado fundamental 6A1(6S) para os estados excitados do campo ligante são, em princípio, proibidas por spin e por paridade, entretanto, de acordo com os autores, se tornam permitidas com o acoplamento dos spins eletrônicos de cátions Fe3+ imediatamente vizinhos na estrutura cristalina.42 A explicação para esse fenômeno consiste no fato de que se dois cátions estão fortemente acoplados, as regras de seleção devem ser consideradas para pares Fe3+-Fe3+ e não mais para centros individuais Fe3+. Além deste efeito, o acoplamento de cátions Fe3+ adjacentes resultaria no surgimento de novas absorções, correspondendo à excitação simultânea de dois centros Fe3+. Essas absorções ocorreriam em energias que equivalem a aproximadamente duas transições de campo ligante para um único íon Fe3+, sendo chamadas de processo de dupla excitação, também permitidas por spin.42

A partir dos dados calculados e da comparação dos espectros eletrônicos dos compostos goethita, lepidocrocita, maghemita e hematita, Sherman e Waite42 estabeleceram que bandas de absorção próximas a 430 nm, 360-380 nm e 290-310 nm no espectro eletrônico desses óxidos corresponderiam às transições de campo ligante 6A1(6S) → 4E, 4A1(4G), 6A1(6S) → 4E(4D), e 6A1(6S) → 4T1(4P), respectivamente, e a estrutura entre 485-550 nm seria atribuída à excitação 6A1(6S) + 6A1(6S) → 4T1(4G) + 4T1(4G) de um par Fe3+-Fe3+. Ainda na região do visível e infravermelho próximo (NIR), duas bandas de absorção em aproximadamente 640 nm e 900 nm foram observadas para todos os óxidos de ferro e atribuídas às transições 6A14T2(4G) e 6A14T1(4G), respectivamente.42 Particularmente para hematita, além das bandas supracitadas observou-se ainda uma banda de absorção em 405 nm, que corresponderia à transição de campo ligante 6A1(6S) → 4T2(4D).

Os autores observaram maior intensidade da banda em 430 nm para hematita em relação aos demais óxidos de ferro e atribuíram essa absorção à transição de campo ligante 6A14E, 4A1(4G), cuja maior intensidade pode ser explicada como consequência do acoplamento magnético entre os íons Fe3+-Fe3+.42 A banda correspondente à transição de campo ligante da dupla excitação do par Fe3+-Fe3+ (6A1 + 6A14T1(4G) + 4T1(4G)) em 530 nm também apresentou, para hematita, intensidade muito maior em comparação com os demais óxidos de ferro investigados no estudo (Figura 6), o que também foi associado ao mesmo processo de intensificação.42 De acordo com os autores essas características seriam as responsáveis pela coloração vermelha intensa típica de amostras de hematita.

 


Figura 6. Espectro de absorção no visível e ultravioleta de (a) goethita, (b) lepidocrocita, (c) maghemita e (d) hematita. Adaptado da referência 42

 

No que diz respeito aos cálculos utilizando o método SCF-Xα-SW, os resultados apresentados permitiram a atribuição das transições de transferência de carga (LMCT) de mais alta energia, que ocorreriam a partir dos orbitais moleculares não ligantes (1t2u, 6t1u e 1t1g), localizados nos átomos de oxigênio, para os orbitais antiligantes t2g do Fe (3d). A partir disso, determinou-se que as energias das transições LMCT (6t1u → 2t2g e 1t1g → 2t2g) corresponderiam a 38100 e 43600 cm-1 (aproximadamente 262 e 229 nm), respectivamente.

Uma compilação das energias calculadas das transições LMCT e de campo ligante38 e das atribuições feitas a partir da interpretação dos espectros experimentais da hematita42 são mostradas na Tabela 8.

 

 

São notáveis as diferenças entre as atribuições realizadas por Sherman e Waite42 para as transições eletrônicas da hematita em relação às apresentadas em estudos anteriores, principalmente pelo fato de que segundo os estudos de Sherman e Waite as transições de campo ligante dominariam o espectro eletrônico da hematita, de aproximadamente 290 nm até o infravermelho próximo (NIR) sendo, portanto, as responsáveis pela cor característica do α-Fe2O3. Além disso, chama a atenção a previsão de que as transições LMCT estariam restritas à porção ultravioleta do espectro de absorção da hematita, abaixo de 280 nm.

Defeitos estruturais e o espectro de absorção no visível

Em 1999, Galvez et al.48 publicaram um estudo visando a investigação das propriedades da hematita contendo fósforo (P) estrutural. Tomando como referência as atribuições apresentadas por Sherman e Waite,42 os autores identificaram no espectro eletrônico de hematitas sintéticas novas bandas em 425-435 nm e em 488 nm, afirmando que estas seriam bandas típicas de goethita (α-FeOOH), em concordância com a atribuição da literatura para este mineral (transições 6A14E4A1(4G) e 2(6A1) → 2(4T1(4G)), respectivamente).42

Embora análises de difratometria de raios X (XRD) realizadas não tenham detectado a existência de fase α-FeOOH na estrutura cristalina das hematitas sintetizadas, os autores sustentaram a hipótese de que a presença de tais bandas seria devida à existência de sítios com geometria similar à do mineral goethita, interpretados como defeitos resultantes da presença de grupos OH no interior da estrutura cristalina das partículas e em sua superfície, incorporados durante a síntese.48 A presença de hidrogênio ligado ao oxigênio não permitiria que a ligação com Fe fosse estabelecida, gerando um defeito estrutural em relação à estrutura esperada para a hematita.

Para comprovar essa hipótese, os autores analisaram a variação na intensidade da banda em 488 nm em relação à intensidade de uma banda típica de hematita em aproximadamente 538-574 nm 2(6A1) → 2(4T1)43 conforme se aumentava o conteúdo de OH. O ganho de intensidade proporcional à incorporação de OH na estrutura verificado para a nova banda em 488 nm sustentou o argumento de que ela estaria relacionada a espécies OH e, portanto, ao aparecimento de uma componente óptica "do tipo goethita".48

Apesar de se tratar de hematitas sintéticas produzidas a partir de um protocolo específico de síntese que é planejado para gerar defeitos na estrutura cristalina, as observações relatadas por Galvez et al.48 chamaram a atenção para a complexidade do espectro eletrônico do α-Fe2O3, reforçando a hipótese de que as variações observadas nos espectros eletrônicos possam estar relacionadas à ocorrência de defeitos na estrutura cristalina e, principalmente, questionando em que grau a presença desses defeitos poderia contribuir para a cor da hematita.

Transições eletrônicas na hematita e contradições na abordagem da teoria do campo ligante

Pailhé et al.,49 em um estudo publicado em 2008, apontaram contradições na abordagem de campo ligante na descrição das transições eletrônicas da hematita.38,42 Para construir seus argumentos, os autores comparam o espectro Vis-NIR de α-Fe2O3 com óxidos AFe2O4 (A=Mg, Zn) com estrutura do tipo espinélio. Seus principais questionamentos são apresentados a seguir.

Primeiramente, o aumento da intensidade das transições de campo ligante devido ao acoplamento de spin magnético entre os íons Fe3+-Fe3+, conforme proposto por Sherman38 e Sherman e Waite,42 foi questionado a partir da comparação do espectro Vis-NIR da hematita com o de um composto anti-ferromagnético (MgFe2O4) e com um composto paramagnético (ZnFe2O4), verificando que as bandas de absorção intensas ocorrem com aproximadamente a mesma intensidade para todos os compostos analisados.49

O segundo argumento apresentado pelos autores consiste na conhecida maior probabilidade com que as transições de transferência de carga 2p(O2-) → 3d(Fe3+) tendem a ocorrer na região do visível em relação às transições interatômicas d-d,49 questionando a predominância das transições de campo ligante nessa região espectral, proposta por Sherman e Waite.42

Finalmente, como último argumento, os autores destacaram o fato, relatado na literatura, de que hematita exibe termocromismo reversível, variando do marrom avermelhado ao preto com o aumento da temperatura, um comportamento geralmente associado a transições de transferência de carga e não a transições d-d.49 Um esclarecimento importante é que o termocromismo reportado pelos autores não foi encontrado na literatura, apesar de busca cuidadosa ter sido realizada.

A partir desses argumentos, os autores alegaram que o espectro de absorção da hematita seria majoritariamente dominado por transições LMCT, com as posições de banda determinadas experimentalmente por meio de curvas derivadas do espectro de reflectância difusa Vis-NIR, em 587 e 709 nm.49 Apesar das discordâncias com a abordagem do campo ligante para a explicação das transições dominantes no espectro eletrônico da hematita, as demais bandas observadas em 640 nm e 860 nm foram atribuídas a transições de campo ligante em concordância com as atribuições realizadas por Sherman e Waite (1985),42 correspondendo às transições 6A1(6S) → 4T2(4G) e 6A1(6S) → 4T1(4G), respectivamente. Para todas as atribuições apresentadas os autores utilizaram resultados previamente observados na literatura,49 relacionando com os espectros de reflectância difusa na região do visível obtidos experimentalmente para os óxidos de ferro investigados.

Ainda questionando a predominância de transições de campo ligante no espectro de absorção da hematita, é relevante citar o estudo apresentado por Chernyshova et al.50 a partir de medidas de espectroscopia de absorção no UV-Vis e espectroscopia de fotoelétrons de raios X (XPS) de hematitas com tamanho de partícula variando de 7 a 150 nm. Examinando as derivadas segundas dos espectros de absorção, os autores determinaram a posição das bandas e interpretaram os espectros obtidos como resultado da contribuição de duas principais bandas intensas em aproximadamente 195 e 365 nm, somadas à contribuição de 7 bandas pouco intensas distribuídas por todo o espectro no UV-Vis (aproximadamente 220, 260, 320, 385, 425, 486 e 540 nm). Uma proposta de atribuição foi apresentada partindo de atribuições prévias existentes na literatura, porém levando em conta as variações de posição e intensidade das bandas, de modo que as bandas que apresentaram variação nula ou pequena (de 7-10 nm) com o aumento do tamanho de partícula foram atribuídas a transições de campo ligante, como é o caso do conjunto de bandas pouco intensas em aproximadamente 220, 260, 320, 385, 425, 486 e 540 nm. As bandas intensas dominantes no perfil espectral, em aproximadamente 195 e 365 nm, por sua vez, foram atribuídas a transições de transferência de carga, o que foi considerado uma característica típica de transições dessa natureza (alta intensidade), somando-se ao fato de que a energia com que se apresentam satisfazem resultados de espectroscopia de emissão na borda-K do oxigênio, obtidos anteriormente na literatura.50

Outras abordagens na interpretação do espectro de absorção no UV-Vis

Liao e Carter,51 em trabalho publicado em 2011, buscando maior acurácia na determinação da energia do estado excitado da hematita, empregaram um tratamento teórico para calcular as energias de excitação de clusters FeO69- usando métodos que utilizam vários determinantes de Slater: CASSCF (espaço ativo completo do campo autoconsistente) e CASPT2 (espaço ativo completo com a teoria de perturbação de segunda ordem).

Os métodos de espaço ativo completo envolvem a definição de um conjunto de orbitais moleculares com o qual serão construídas todas as configurações possíveis, ou seja, todas as excitações possíveis, compatíveis com a simetria do sistema, dentro do espaço ativo.52 Essa definição considera orbitais moleculares inativos, ativos e virtuais. Os orbitais classificados como orbitais ativos são os que apresentam ocupação eletrônica maior que zero e menor que dois; os orbitais virtuais são aqueles com ocupação muito próxima a zero (espaço virtual); por fim, os orbitais inativos (espaço inativo) são aqueles com ocupação próxima a dois.

No estudo realizado por Liao e Carter51 utilizando o método CASPT2, a energia encontrada para o estado excitado de mais baixa energia para a hematita foi 2,5 eV (496 nm), um valor superior ao observado nos espectros ópticos, em 1,5 eV (827 nm) e 1,9-2,3 eV (653-539 nm), esta última correspondendo ao band gap óptico e com melhor correlação com o valor teórico encontrado (Tabela 9). De acordo com os cálculos, o band gap corresponderia a transições Fe d-d do campo ligante dos orbitais eg para t2g, e os autores sugeriram que a banda em aproximadamente 827 nm seria possivelmente originada de defeitos e impurezas nas amostras de hematita.51 Também foi determinado que transições do campo ligante ocorreriam em 3,2 eV (387 nm, dos orbitais eg para t2g) e 3,7 eV (335 nm), esta última uma transição do campo ligante do tipo spin flip nos orbitais 3d, e que as transições de transferência de carga ocorreriam em 6,3 eV (197 nm). Além disso, foi sugerido que transições com caráter misto de transições de campo ligante Fe d-d e transições de transferência de carga ocorreriam em aproximadamente 4,0 eV (310 nm), 4,8 eV (258 nm) e 5,6 eV (221 nm), aproximadamente.51

 

 

Merecem destaque as similaridades nos resultados encontrados por Liao e Carter,51 utilizando os métodos CASSCF e CASPT2, com os resultados obtidos por Sherman e Waite42 a partir de cálculos do orbital molecular SCF-Xα, principalmente por ambos indicarem a contribuição dominante de transições do campo ligante para o espectro eletrônico da hematita, questionada por Pailhé et al.49 e Chernyshova et al.50 como mostrado anteriormente. Esses métodos baseados em clusters, entretanto, foram mais tarde (2019) criticados por Piccinin.53

No estudo apresentado por Piccinin,53 o autor utiliza a aproximação GW − baseada no tratamento interativo de funções de Green de muitos corpos (G) e a interação coulômbica blindada (W)54 − considerada o estado da arte na investigação das propriedades do estado excitado de sistemas constituídos por muitos corpos, apresentado uma proposta de descrição da estrutura de bandas (níveis de energia) e da absorção óptica da hematita. Como resultado, as primeiras transições ópticas permitidas para o α-Fe2O3, que correspondem ao seu band gap óptico, foram encontradas em torno de 2,3 eV (539 nm), em boa concordância com os valores experimentais (2,2 eV). Diferente do proposto por Liao e Carter,51 para Piccinin o band gap óptico apresenta caráter majoritariamente de transferência de carga ligante-metal. O autor ainda verificou a forte hibridização entre os estados O 2p e Fe 3d (com predominância do caráter O), que daria origem à banda de valência; a banda de condução, por sua vez, seria dominada por estados Fe t2g, caracterizando, portanto, a transferência de carga de orbitais 2p do oxigênio para orbitais 3d do ferro.

Quanto às potenciais limitações no uso da aproximação GW, utilizada por Piccinin53 é importante destacar que a escolha dos inputs para a realização dos cálculos (energias e funções de onda) influencia sensivelmente os resultados obtidos pela aproximação GW, podendo levar a erros na estimativa dos níveis de energia.55

O caráter predominante de transferência de carga do band gap óptico do α-Fe2O3 e a forte hibridização dos estados O 2p e Fe 3d também foram demonstrados experimentalmente por Ma et al.56 a partir de medidas de espectroscopia de fotoemissão, e também por Fujimori et al.57 utilizando espectroscopia de fotoemissão, espectroscopia Auger e cálculos de interação de configuração (CI) baseados no modelo de cluster FeO6 para obter as funções de onda eletrônicas.

Quando se trata de sólidos cristalinos, outro método frequentemente usado no cálculo de estrutura de banda é a teoria do funcional da densidade (DFT, density functional theory) que, apesar de ser essencialmente uma teoria do estado fundamental, possui também versões que incluem a dependência temporal possibilitando assim a descrição de estados excitados de moléculas e nanoestruturas finitas.55 Observa-se, no entanto, que o uso do DFT na investigação das propriedades de estado excitado de semicondutores nem sempre é considerado a melhor escolha, levando em conta o chamado erro de autointeração eletrônica (interação de um elétron consigo mesmo), qualquer que seja o funcional de densidade utilizado.58 Essa condição traz a necessidade de que correções de autointeração sejam feitas, representando uma dificuldade na modelagem teórica por esse método.53

Ivantsov et al.59 recentemente utilizaram espectroscopia magneto-óptica para investigar a estrutura dos estados excitados da hematita e verificar a origem de suas transições eletrônicas, lançando mão das técnicas de espectroscopia de dicroísmo circular magnético (MCD) e de rotação de Faraday (FR), comparando seus resultados com o espectro de absorção no UV-Vis no mesmo intervalo espectral, o que foi feito tanto para nanocristais de α-Fe2O3 como também para seu monocristal. Essa abordagem é justificada pela origem das transições observadas nos espectros magneto-ópticos ser a mesma das transições observadas no espectro de absorção no UV-Vis, e também pelo fato de que determinadas caraterísticas nos espectros MCD são particulares de determinados tipos de transições eletrônicas, o que auxilia na atribuição. Na comparação feita por Ivantsov et al.,59 a região em 2,1-2,4 eV (516-590 nm) coincide com uma banda pouco intensa no espectro de absorção no UV-Vis e também no espectro FR, o que, de acordo com os autores, ocorre quando dois elétrons são excitados por ondas eletromagnéticas de polarização circular opostas e com energias próximas, como é o caso da excitação simultânea dos íons Fe3+-Fe3+ acoplados magneticamente, descrito por Sherman e Waite.42

A confirmação da atribuição de Sherman e Waite42 para a transição eletrônica na região próxima a 516-590 nm levou Ivantsov et al.59 a apontarem inconsistências nos resultados apresentados por Piccinin,53 já que a alta atividade magnética comprovada para a hematita nesse intervalo espectral não é compatível com uma transição de transferência de carga da banda de valência para a banda de condução, como havia sido proposto. Para verificar a atribuição das demais transições presentes no espectro de absorção da hematita, Ivantsov et al.59 partiram da decomposição do espectro MCD em uma série de curvas gaussianas e verificaram boa correspondência com o diagrama de Tanabe-Sugano, o que confirmou as demais atribuições realizadas por Sherman (Tabela 10). Convém destacar que, por meio desse método, os autores observaram bandas em 3,23 e 3,95 eV (384 e 314 nm, respectivamente) não relatadas por Sherman e Waite,42 as quais foram também atribuídas a processos de dupla excitação Fe3+-Fe3+ (Tabela 10).

 

 

Abordagem similar, com a análise comparativa de resultados de espectroscopia de dicroísmo circular magnético (MCD) e de absorção no UV-Vis, foi usada por Mizuno e Yao60 para investigar a dependência das propriedades ópticas da hematita com o tamanho e forma de partícula. Nesse estudo, a observação da variação de intensidade das bandas nos espectros MCD e de absorção no UV-Vis permitiu aos autores correlacionarem a diminuição do tamanho de partícula com a diminuição do acoplamento magnético Fe3+-Fe3+. Os autores mostram, ainda, que a formação de agregados exerce um efeito similar ao aumento do tamanho de partícula, estando ambos relacionados à diminuição da intensidade da borda de absorção em torno de 450-470 nm. Essa observação corrobora os resultados apresentados anteriormente por Torrent e Schwertmann,24 e sugere que a presença de agregados seja um fator importante na avaliação das propriedades ópticas da hematita, o que ainda carece de investigações aprofundadas.

De maneira geral, nota-se que o maior interesse dos estudos acima discutidos se encontra centrado na discussão da natureza do band gap óptico da hematita. Chamam a atenção as atribuições a transições de transferência de carga apresentadas nos estudos que empregaram os métodos CASSCF, CASPT2, GW, fotoemissão, espectroscopia Auger e CI, as quais estão em desacordo com os resultados obtidos por espectroscopia magneto-óptica (Ivantsov et al.)59 que confirmam os resultados obtidos anteriormente pelo método SCF-Xα-SW42 em relação à predominância das transições de campo ligante em toda a região do espectro visível para a hematita.

As transições eletrônicas no NIR

Quanto à investigação das transições na região do infravermelho próximo (NIR) do espectro eletrônico da hematita, a atribuição de bandas observadas acima de 800 nm tem sido pouco discutida na literatura, possivelmente devido ao crescente interesse no estudo das propriedades de semicondutor desse óxido de ferro, o que faz com que as investigações tendam a se concentrar na região visível do espectro eletromagnético.

Convém recordar as atribuições das transições no espectro eletrônico do α-Fe2O3 na região do NIR dadas pelos diferentes autores aqui discutidos. Em todos os casos há concordância que correspondem a transições do campo ligante (ou campo cristalino, como nomeado por alguns autores), conforme apresentado na Tabela 11.

 

 

Em trabalho publicado em 1998, Galuza et al.61 avaliaram a dependência espectral do coeficiente de absorção α(λ) para monocristais de hematitas e hematitas naturais com a temperatura, realizando medidas a 10 K, 25 K e 300 K. O abaixamento da temperatura possibilitou a observação de novas estruturas na banda observada em aproximadamente 860 nm em temperatura ambiente: um ombro entre 1018 e 1020 nm, a 10 K e 25 K, e outro ombro em 965 nm, observado somente em 10 K.

De acordo com a proposta apresentada pelos autores para explicar a largura da banda em aproximadamente 860 nm, o ombro observado entre 1018-1020 nm (denominada banda A0) corresponderia à transição pura 6A1g4T1g(4Gg). Essa atribuição foi feita levando em conta as energias da transição d-d para outros compostos de Fe3+ em simetria octaédrica. Já a banda em 965 nm (denominada naquele estudo como A1), por se encontrar a 693 cm-1 da banda A0 (1018-1020 nm), foi associada à contribuição de um magnon, o que foi proposto baseado no estudo de espectroscopia Raman publicado por Hart et al.62 (1975), segundo o qual o modo vibracional em aproximadamente 1320 cm-1 seria devido ao espalhamento produzido por dois magnons, o que permitiria supor que 693 cm-1 corresponderia a um magnon.61 Convém destacar, entretanto, que a atribuição dada por Hart et al.62 ao modo vibracional em aproximadamente 1320 cm-1, foi mais tarde contestada e atribuída a um sobretom do fônon óptico longitudinal (LO) proibido por Raman, em aproximadamente 660 cm-1,63,64 o que coloca em dúvida a atibuição de Galuza et al.61 para a banda de absorção em 965 nm. Por fim, a banda em 860 nm foi interpretada como resultado da contribuição de três fônons (305, 435 e 525 cm-1) que geralmente são detectadas por espectroscopia de absorção no infravermelho, para hematitas cristalinas.

 

CONCLUSÕES

A discussão dos diferentes modelos apresentados na literatura, ao longo do tempo, para a atribuição do espectro eletrônico da hematita mostrou que a explicação da origem das transições eletrônicas desse óxido de ferro é um tema complexo. Esse panorama foi demonstrado nesta revisão sob diferentes perspectivas, tanto do ponto de vista teórico como experimental, chamando a atenção o fato de que mesmo nos anos mais recentes, estudos realizados com métodos teóricos e experimentais sofisticados ainda têm apresentado resultados discordantes entre si.

O fato de que determinada abordagem teórica pode vir a ser menos ou mais conveniente que outra para descrever determinada transição eletrônica do α-Fe2O3 estabelece que os cálculos e atribuições dependam fortemente das premissas teóricas impostas ao sistema em investigação, como a existência de distorção de rede e defeitos na estrutura cristalina. Esse aspecto se mostra bastante sensível não apenas para a obtenção de cálculos mais acurados, mas também para a compreensão das variações observadas em espectros de absorção de hematitas de diferentes origens/características (por exemplo, a presença de defeitos na estrutura cristalina e formação de agregados) que tem contribuído significativamente para que o debate acerca da confiabilidade das atribuições que vem sendo apresentadas. Além disso, a qualidade dos espectros obtidos é também crucial nos métodos de atribuição. Foi demonstrado que dependendo do método de preparação da amostra mudanças no perfil espectral podem ser observadas (Figura 2), o que pode estar ligado, por exemplo, à criação de defeitos na superfície das partículas que presumivelmente influenciam no comportamento das transições eletrônicas. A observação ou não de bandas de absorção no espectro eletrônico da hematita, por diferentes autores, tem levado a diferenças fundamentais nas propostas de atribuição apresentadas.

Apesar do intenso debate observado na atribuição das transições eletrônicas da hematita, que se estende até os dias atuais, há grande concordância quanto às absorções na região do visível serem provenientes de transições do campo ligante, corroborando os resultados apresentados por Sherman e Waite.42

A Tabela 12 apresenta uma compilação das bandas observadas, energias das transições calculadas e atribuições realizadas nos diferentes estudos aqui discutidos.

 

 

O maior foco nas propriedades fotocatalíticas da hematita nos últimos anos resulta em poucas publicações explorando as demais regiões do espectro eletromagnético além do visível, havendo a necessidade de que estudos aprofundados sejam realizados para esclarecer as divergências no entendimento das propriedades ópticas da hematita, principalmente nas regiões do UV e NIR.

 

AGRADECIMENTOS

As autoras agradecem à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) pelo suporte financeiro (projeto temático nº 2016/21070-5) e aos professores doutores Vera Regina Leopoldo Constantino (Instituto de Química da Universidade de São Paulo) e Italo Odone Mazali (Instituto de Química da Universidade Estadual de Campinas) pela sugestão de redação desta Revisão. I. F. S. S. é grata ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pela bolsa de doutorado (processo nº 159176/2013-1) e doutorado sanduíche (processo nº 249499/2013-4).

 

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