JBCS



15:16, qui nov 21

Acesso Aberto/TP




Educação


A propagação do erro do pKa da água nos livros de química orgânica
The propagation of the error in the pKa of water in organic chemistry textbooks

Leonardo AntonelliI; Rodrigo De PaulaIII,IV; Silvio CunhaI,II,*

I. Instituto de Química, Universidade Federal da Bahia, 40170-115 Salvador - BA, Brasil
II. INCT de Energia e Ambiente, Universidade Federal da Bahia, 40170-290 Salvador - BA, Brasil
III. Centro de Formação de Professores, Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, 45300-000 Amargosa - BA, Brasil
IV. Universidade Federal do Oeste da Bahia, 47810-059 Barreiras - BA, Brasil

Recebido em: 30/04/2023
Aceito em: 15/06/2023
Publicado em: 31/08/2023

 

Endereço para correspondência

*e-mail: silvioddc@ufba.br

RESUMO

In organic chemistry, the pKa is a property used to compare the acidity behavior for many substances, and to locate the position of equilibria in acid-base reactions and to provide information about structure and reactivity. Evidence in the literature shows that the values of pKa for water and hydronium ion, commonly cited in organic chemistry textbooks, are incorrect. The values of 15.74 for H2O and -1.74 for H3O+ are due to a propagated misconception in the equilibrium calculations while the correct values are 14.0 for H2O and 0.0 for H3O+. This subtle difference of 1.74 units on the pKa scale between both values reflects an error greater than 55 times in the level of acidity for these chemical species. An immediate correction of these values is necessary for the adequate teaching of organic chemistry. A literature search was conducted on the most used organic chemistry books in graduate and undergraduate courses in Brazil, revealing that almost all values cited were inadequate. The textbook Chemistry of Organic Compounds, 3rd edition (1965), by Carl Robert Noller is suggested as possible source of this misinformation in organic chemistry textbooks.

Palavras-chave: acid dissociation constant; water chemistry; acids/bases; organic chemistry; misconceptions.

INTRODUÇÃO

No ensino de ciências exatas, de modo muito característico nos cursos básicos da graduação, os livros didáticos cumprem um papel basilar na formação profissional. Constituem o que Kuhn1 caracterizou como "manuais" cuja função é proporcionar o ensino da ciência "normal" às novas gerações de estudantes. Os livros reproduzem e reforçam o aprendizado do conjunto de teorias que explicam dados experimentais que são consagrados como corretos por uma dada comunidade de praticantes dessa ciência, até que uma revolução científica (na nomenclatura de Kuhn) substitua o fato e/ou teoria por uma nova elaboração não incremental.

Dois artigos publicados no Journal of Chemical Education (JCE) descrevem o erro dos valores do pKa da água e do cátion hidrônio, presentes nos livros de química orgânica, e esclarecem de forma irrefutável a natureza conceitual do erro, conclamando os químicos orgânicos a usarem os valores corretos, Figura 1.2,3

 


Figura 1. Valores corretos e errados do pKa da água e do cátion hidrônio presentes nos livros2,3

 

A prevalência do erro é tão grande, e didaticamente tão deletéria ao ensino de química orgânica, que levou o atual Editor Chefe do Journal of the American Chemical Society, o eminente químico orgânico sintético Erick M. Carreira, a gravar um vídeo sobre o assunto junto com os dois autores para correspondência dos dois artigos do JCE aqui mencionados, de forma a popularizar os valores corretos entre os químicos orgânicos.4

A publicação dos artigos afirmando os valores corretos, espaçados por seis anos (2017 e 2023), e o reforço da divulgação através de um vídeo da American Chemical Society sumariando os conteúdos das duas publicações, indicam que a comunidade de químicos orgânicos ainda não fez a adesão à correção dos erros. Dessa forma, nosso primeiro objetivo é alertar os professores de química orgânica de língua portuguesa, de todos os níveis, a aderirem aos valores corretos do pKa da água e do cátion hidrônio, mesmo que os valores errados estejam presentes no livro texto adotado no seu curso.

Os artigos do JCE esclarecem a natureza conceitual do erro e oferecem uma provável explicação para a origem da propagação do erro nos livros de química orgânica em língua inglesa.2,3 Contudo, a origem proposta parece incompleta, e apresentamos aqui dados que sugerem mais de uma origem para a propagação do erro. Adicionalmente, investigamos o cenário nos livros didáticos de autoria de pesquisadores atuando no Brasil.

O ensino da acidez da água no curso de química geral no Brasil

Nos cursos introdutórios de Química Geral das instituições de ensino superior brasileiras, são trabalhadas as definições de ácidos e bases, pois este é um assunto que abrange todas as áreas da Química. No entanto, alguns livros didáticos adotados para esta disciplina abordam de diferentes formas o assunto, o que pode causar divergência no ensino.

Dentro das diferentes teorias sobre classificação de substâncias com caráter ácido ou básico, é fundamental que se discuta a reação de autoionização ou autoprotólise da água, Equação 1:

A exemplo, na obra Química: A Ciência Central, Brown et al.,5 explicam - no capítulo correspondente ao Equilíbrio Químico - que sólidos puros e líquidos puros possuem concentração constante, por isso, são excluídos da expressão matemática que descreve o equilíbrio. O argumento usado pelo autor faz jus ao fato de que, para substâncias puras (sólidas ou líquidas), a massa é proporcional ao volume e, por isso, a relação m/V é sempre constante, uma vez que a expressão é dependente da concentração molar. Posteriormente, em um único parágrafo, os autores mencionam sobre a atividade (ai) que possui o valor 1 para substâncias puras. Já na obra Química Geral e Reações Químicas de Kotz et al.,6 os autores creditam a análise da reação apresentada na Equação 1 a Friedrich Kohlrausch e, ao apresentar o valor consagrado da constante de autoionização da água (Kw), os autores remetem o estudante ao capítulo de "Equilíbrio Químico", onde há caixas de texto com breve explicação sobre o fato de Kw ser adimensional, justificando a explicação na Termodinâmica e mencionando sobre o uso da atividade (a) ao invés da concentração (C).

Outra obra adotada é Princípios de Química: Questionando a Vida Moderna e o Meio Ambiente, de Atkins e Jones.7 Neste livro, os autores são mais cuidadosos e apresentam Kw com o rigor exigido pela Termodinâmica (Equação 2):

e, em uma breve explicação, justificam o motivo pelo qual essa expressão se torna:

Considerando a divergência de abordagem entre os diferentes livros, torna-se fundamental que o docente amplie a discussão, apresentado os argumentos corretos, com os formalismos matemáticos e conceituais adequados para que o estudante compreenda a importância dessa informação.

A Equação 2 é a expressão mais acertada para representar o equilíbrio químico. Para tanto, é importante definir o que é atividade, que é a quantidade real de entidades químicas efetivamente em solução, sem sofrer interações com outras entidades químicas (somente com o solvente).8,9 Em soluções diluídas (ou seja, com concentração molar inferior a 0,1 mol dm-3), a Lei de Henry10 pode ser escrita como:

onde μi e μiº são os potenciais químicos da entidade i em solução e em condição padrão, respectivamente.

A condição padrão é dada pela temperatura de 25 ºC e pressão de 1,0 bar,8-10 e a atividade ai → χi em soluções infinitamente diluídas (sendo χi a fração molar da entidade i). Porém, tecnicamente, a atividade ai é dada como:4

onde γi é o coeficiente de atividade e mi é a molalidade das substâncias i e, miº é a molalidade padrão da substância i. Molalidade é uma medida de concentração dada em quantidade de soluto (em mol) dividido pela massa do solvente (em quilograma). A molalidade no estado padrão para substâncias puras é igual a 1,0. Portanto, a Equação 5, pode ser reescrita como:

e para soluções infinitamente diluídas, γi → 1 e a atividade, por sua vez, se torna a própria molalidade e, assim, chegamos à Equação 2. Por este mesmo motivo, justifica-se o fato de Kw ser adimensional.

A partir das considerações de diluição do sistema, pode-se aproximar as molalidades à concentração molar. Daí, a Equação 2 poderá ser reescrita na forma da Equação 3.

O valor de Kw = 1,0 × 10-14 é, portanto, um valor atribuído na condição padrão e para a água pura. No entanto, pelo rigor da Termodinâmica, o equilíbio químico é um ponto onde a energia livre do sistema é nula; para o caso da energia livre de Gibbs, dG = VdP-SdT = 0.5 Assim, qualquer variação na pressão e na temperatura acarretarão alterações na posição de equilíbrio. A exemplo, para 10 e 60 ºC, os valores de Kw são 0,31 × 10-14 (pKw = 14,51) e 11,04 × 10-14 (pKw = 12,96), respectivamente.7 Para a água do mar padrão, o valor de Kw é de 1,74 × 10-14 (pKw = 13,76).6 Porém, assumir qualquer valor fora da condição-padrão, perde-se os efeitos de comparação com os demais trabalhos publicados. Como veremos adiante, o cálculo realizado que produz o valor do pKa da água como sendo 15,74 não leva em consideração os argumentos termodinâmicos aqui apresentados.

Ainda que o valor de 1,0 × 10-14 esteja correto dentro dos argumentos termodinâmicos, vale ressaltar que é imprescindível que o docente explore para além das aplicações que fazem parte do cotidiano das pessoas, da Química e da indústria; mas também, que apresente os fatos históricos e cientistas envolvidos nas medidas de acidez, na criação das escalas de pH e, sempre que possível, do formalismo matemático que fundamenta a Termodinâmica.

Dentre os diversos nomes associados aos estudos termodinâmicos de soluções durante os séculos XIX e XX, é de se destacar as contribuições científicas dos estudos conduzidos por François-Marie Raoult, que possibilitou avanços nos estudos de Jacobus H. Van't Hoff e outros, incluindo Svante Arrhenius. Os trabalhos de Arrhenius permitiram que, mais tarde, Friederich Kohlrausch e Adolf Heydweiller determinassem o valor de Kw a partir de medidas de condutância, alcançando valores próximos a 1,0 × 10-14 a 25 ºC.11 Para além dos aspectos termodinâmicos, não se pode subestimar o impacto da contribuição de Lewis para o tema ácidos e bases.12

Considerando o equilíbrio dado pela Equação 01, pode-se aplicar os conceitos da Termodinâmica (DrG = 0), que resulta na Equação 7:

O que demonstra a dependência de Keq (nesse casso, Kw) com a temperatura. Na prática, a constante sofre variação, também, da pressão, ainda que em menor extensão. A Figura 2 apresenta as variações observadas em Kw com a temperatura (a) e pressão (b). Além da pressão e da temperatura, o efeito da força iônica também exerce papel na acidez da água. Esta discussão está fora do escopo deste artigo, que se encontra detalhada no trabalho de Hawkes.10

 


Figura 2. Variação do pKw da água pura com: (a) temperatura e; (b) em diferentes temperaturas e pressões. Dados obtidos a partir da literatura6

 

O cenário do erro no pKa da água e do cátion hidrônio nos livros traduzidos ou escritos por pesquisadores no Brasil

Em A Importância do Ato de Ler, Paulo Freire13 enfatiza que "linguagem e realidade se predem dinamicamente. A compreensão do texto a ser alcançada por sua leitura crítica implica a percepção das relações entre o texto e o contexto" e enfatiza a participação ativa do leitor com "reflexões em torno da importância do ato de ler, que implica sempre percepção crítica, interpretação e reescrita do lido".

Com a premissa de a leitura crítica prover a compreensão do texto descritivo da realidade através da linguagem científica, foi analisada uma amostra representativa de livros de química orgânica para a graduação, traduzidos do inglês, bem como um conjunto de livros que não foram traduzidos, mas que são empregados em cursos de pós-graduação e em cursos avançados da graduação em química.

A Figura 3 apresenta os valores dos pKa da água e do cátion hidrônio (quando disponível) nos livros consultados, tanto dos traduzidos quanto dos escritos por pesquisadores no Brasil.14-42 A tradição brasileira de escrever livro didático para o ensino de química orgânica é recente, quando comparada à de nações produtoras de ciência a mais tempo, com universidades bem mais antigas. Até onde conseguimos rastrear em bibliotecas públicas e privadas, o número de livros de química orgânica originais do Brasil é muito pequeno.16,18,23-26

 


Figura 3. Valores de pKa da água (acima) e do cátion hidrônio (abaixo) nos livros de química orgânica traduzidos do inglês (azul) e empregados no Brasil, não traduzidos e empregados em cursos básicos ou avançados (preto), e nos escritos por pesquisadores no Brasil (rosa)14-42

 

Como se pode verificar, o erro é recorrente e os valores errados das constantes pKa(H2O) 15,74/pKa (H3O+) -1,74 prosperaram como válidos e verdadeiros no ensino de química orgânica. Apenas 15% (4 de 29 livros) dos livros consultados informam o valor correto do pKa da água e 11% (3 de 29) do cátion hidrônio, sendo que apenas um destes livros, traduzido do inglês (o Carey), é dedicado ao ensino básico de química orgânica, Figura 3.19

Os valores das constantes pKa(H2O) e pKa(H3O+) são amplamente ensinados e empregados na racionalização de fatos químicos. Por exemplo, o julgamento da acidez ou basicidade (grandezas termodinâmicas) relativas de duas espécies é também correlacionado com a reatividade relativa delas, como no julgamento do poder nucleofílico (grandeza cinética) entre duas espécies.

As origens da propagação do erro nos livros e a necessidade da correção do pKa da água e do cátion hidrônio

O livro texto ocupa um lugar de destaque no imaginário da comunidade escolar. Nas ciências exatas assume, segundo Kuhn,1 uma situação singular, pois "quando falo de fonte de autoridade, penso sobretudo nos principais manuais científicos... Referem-se a um corpo já articulado de problemas, dados, teorias e muito frequentemente ao conjunto particular de paradigmas aceitos pela comunidade científica na época em que esses textos foram escritos." Em função do papel que precisa cumprir, não é adequado que o livro didático apresente dados experimentais errados ou teorias obsoletas.

A dualidade de valores para uma mesma constante gera insegurança no educando, ainda mais quando livros didáticos da mesma ciência explicitam valores díspares. Não vamos aqui analisar amiúde as consequências pedagógicas desse erro, pois esta reflexão foi realizada pelos mesmos autores dos dois artigos mencionados do JCE, em um manuscrito em construção que será publicado em breve.3 Bastam aqui dois exemplos. A dedução do valor errado 15,74 do pKa da água é explicitada em alguns livros de química orgânica e, na Figura 4a, fazemos a reprodução. Os motivos que conduzem a esta dedução aparentemente tão convincente do ponto de vista matemático, mas desprovida de real sentido químico, foram detalhadas nas publicações do JCE e não necessitam ser aqui repetidas.2,3

 


Figura 4. (a) Dedução errada do pKa da água; (b) equação para o cálculo de Keq empregando valores de pKa; (c) e (d) exemplos de conclusões desconectadas da realidade experimental quando são empregados os valores errados do pKa da água e do cátion hidrônio encontrados nos livros de química orgânica, em comparação aos valores corretos do pKa

 

Para exemplificar como o emprego dos valores errados leva a conclusões desconectadas da realidade experimental, são analisados os comportamentos de HNO3 e CH3OH, Figura 4. Se o estudante usar o valor errado -1,74 para o pKa do cátion hidrônio e prever a posição do equilíbrio para a equação química que representa o comportamento do HNO3 em água, chegará à conclusão (errada) de que o HNO3 (pKa -1,3) se dissocia em água formando um ácido mais forte (o H3O+ de pKa -1,74), o que não faz sentido pois, experimentalmente, o HNO3 se dissocia completamente em água (na Figura 4c, compare os valores da Keq da equação direta e inversa calculada empregando os valores errados e corretos dos pKa)! Os livros silenciam quanto a esta inconsistência de formar um ácido mais forte com o valor errado do pKa do cátion hidrônio, mesmo que a argumentação de formação de um ácido mais fraco seja empregada como critério para decidir a posição do equilíbrio de várias reações ácido-base.

Na formação de metóxido de sódio por meio da reação de CH3OH com NaOH, o valor errado 15,74 sugere ser possível formar uma quantidade significativa de metóxido de sódio, quando o Keq para a reação inversa é, de fato, 35! Se os valores da constante para as reações direta e inversa fossem 1,58 e 0,63, como sugerem os valores errados do pKa da água empregado para seus cálculos, Figura 4d, seria possível usar metóxido de sódio em solventes não anidros e sem a necessidade de atmosfera inerte, situação que todo químico que já empregou este reagente sabe que são necessárias para o sucesso do experimento (e como explicam os reais valores das constantes diretas e inversa 0,03 e 34,67, respectivamente).

Outra forma de se verificar a inadequação do valor do 15,74 para o pKa da água é através do cálculo da constante de equilíbrio para a reação entre o metanol e o hidróxido através do método termodinâmico, Figura 5, onde o valor 0,0288 é encontrado, em concordância com o valor obtido na Figura 4 (que aproximamos para 0,03) ao ser empregado o valor correto do pKa da água para o cálculo de Keq empregando os valores de pKa do ácido produto e do ácido reagente, Figura 4b.

 


Figura 5. Dedução da constante de equilíbrio pelo método termodinâmico para a reação que representa o comportamento de metanol com hidróxidos dos metais alcalinos

 

Os exemplos da Figura 4c-4d revelam que o emprego dos valores errados (15,74 e -1,74) desconectam as conclusões obtidas da realidade experimental, uma situação inapropriada para o ensino de química, uma vez que a simbiose fato reforçando teoria/teoria explicando fato é uma premissa pedagógica que, de acordo com Kuhn,1 contempla a "natureza da educação científica. A esta altura deveria estar claro que os cientistas nunca aprendem conceitos, leis e teorias de forma abstrata e isoladamente. Em lugar disso, esses instrumentos intelectuais são, desde o início, encontrados numa unidade histórica e pedagogicamente anterior, onde são apresentados juntamente com suas aplicações e através delas. Depois de aceitas, essas aplicações (ou mesmo outras) acompanharam a teoria nos manuais onde futuros cientistas aprenderão seu ofício. As aplicações não estão lá simplesmente como um adorno ou mesmo como documentação. Ao contrário, o processo de aprendizado de uma teoria depende do estudo de suas aplicações, incluindo-se aí a prática na resolução de problemas, seja com lápis e papel, seja com instrumentos num laboratório."

Os artigos científicos que foram apontados como origem do erro estão discutidos nos trabalhos recentes.2,3 Quanto a origem da propagação do erro nos livros de química orgânica, Silverstein sugere a monografia de Donald James Cram (prêmio Nobel de Química de 1987), Fundamentals of Carbanion Chemistry, de 1965,43 que contagiou a 3ª edição (1970) do livro Organic Chemistry de autoria de Hendrickson, Cram e Hammond,28 que foi muito popular até o final do século 20, e muito mais dedicado ao ensino geral de química orgânica que o primeiro livro de Cram. A influência do March's Advanced Organic Chemistry na disseminação do erro também é apontada pois, desde a 1ª edição (1968)32 até a 7ª (2013),37 são indicados os valores errados, só sendo corrigidos na 8ª edição (2020).38

Contudo, entendemos que é muito importante levar em consideração a influência de Carl Robert Noller35 no cenário geral. Ele foi professor da Universidade de Stanford, e seu mais importante livro Chemistry of Organic Compouds foi publicado em 1951 (885 páginas) e teve três edições, a última em 1965 (1115 páginas), ensinando assuntos extremamente modernos para a época, o que justifica o incremento de número de páginas. Foi um livro muito influente, sendo adotado como livro texto em diversas universidades dos Estados Unidos.44-46 Alcançou fama mundial e foi traduzido para o alemão, chinês e espanhol, entre outras línguas, mas não foi traduzido para o português. Contudo, há registros do uso da terceira edição em cursos no Instituto de Química da USP. Um dos autores do presente artigo (S. C.) herdou, de professores aposentados do Departamento de Química Orgânica do Instituto de Química da UFBA, a primeira e a terceira edições, cujas aquisições são datadas de 1954 e 1971, respectivamente, o que sugere a familiaridade da comunidade de professores brasileiros de química orgânica com esse livro.

Apenas na 3ª edição (1965) é que se encontram os valores do pKa da água e do cátion hidrônio, e no prefácio há a informação que o capítulo "Chemical Reactivity", que apresenta esses dados, não existia nas edições anteriores, nas quais não encontramos informações sobre valores de pKa.

Apesar do ano de publicação do primeiro livro de Cram43 ser o mesmo da 3ª edição do Noller,35 a monografia de Cram teve apenas uma edição e é destinada a um público especializado e de circulação mais restrita (e cita apenas a constante pKa(H2O) 15,7 sem fazer menção ao hidrônio), enquanto o livro do Noller é um livro deliberadamente concebido para ser um livro de formação geral de química orgânica (que cita os dois valores errados das constantes pKa(H2O) 15,74/ pKa(H3O+) -1,74), cujo sucesso editorial mundial é bem conhecido. A influência do livro do Noller é significativamente maior e deve ter impactado na concepção dos livros destinados ao ensino geral de química orgânica, concebidos posteriormente nos Estados Unidos, inclusive do próprio livro Organic Chemistry de Hendrickson, Cram e Hammond. Contudo, face a popularidade alcançada por este último livro,47 não se pode subestimar a sua contribuição na propagação do erro. Neste caso, ser o livro pioneiro é menos importante, pois o prestígio e alcance dos dois livros contribuíram para a popularização dos valores e propagação do erro.

No Brasil, os livros americanos traduzidos são a fonte majoritária dos livros para o ensino da química orgânica, e a origem na propagação do erro parece se iniciar nas traduções. A correção do erro poderia ter sido executada pelo tradutor, desde que detectasse o erro através de uma tradução crítica. Todavia, como todos os químicos orgânicos atuando no Brasil, desde 1965, foram educados estudando em algum desses livros de química orgânica originalmente escrito em língua inglesa (mesmo que traduzido para o português), ou em livros em português escritos por pesquisadores atuando no Brasil que foram formados estudando nos livros mencionados, os tradutores e os autores dos livros em português deveriam estar convertidos aos valores errados. Ou seja, com as raras exceções apontadas na Figura 3, estamos ainda no círculo vicioso do erro. Este artigo intenciona contribuir para mudar este cenário.

 

CONCLUSÕES

Os valores pKa(H2O) = 15,74 e pKa(H3O+) = -1,74 presentes nos livros textos de química orgânica atualmente empregados no Brasil são inadequados e o emprego destes valores leva a conclusões desconectadas da realidade experimental, pois são 55 vezes diferentes dos valores corretos da acidez. Os valores pKa(H2O) = 14,0 e pKa(H3O+) = 0,0 devem ser ensinados na graduação e na pós-graduação. Uma coleção interessante de tabelas com valores de pKa já corrigidos pode ser encontrada na Divisão de Química Orgânica da ACS.48

A necessidade de os livros de química orgânica atuais corrigirem o erro deriva da função pedagógica que estes manuais exercem, pois, "os conhecimentos científicos dos profissionais, bem como os dos leigos, estão baseados nos manuais e em alguns outros tipos de literatura deles derivada. Entretanto, sendo os manuais veículos pedagógicos destinados a perpetuar a ciência normal, devem ser parcial ou totalmente reescritos toda vez que a linguagem, a estrutura dos problemas ou as normas se modifiquem."1

 

MATERIAL SUPLEMENTAR

A Tabela 1S contendo a relação dos livros consultados com a indicação da página onde a valor do pKa está descrito está disponível em http://quimicanova.sbq.org.br, na forma de arquivo PDF, com acesso livre.

 

AGRADECIMENTOS

Os autores agradecem o suporte financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq, da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia - FAPESB e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. Agradecemos as bolsas de pós-graduação do CNPq para L. A. e a bolsa de produtividade em pesquisa de S. C.

 

REFERÊNCIAS

1. Kuhn, T. S.; A Estrutura das Revoluções Científica, 1ª ed.; Editora Perspectivas: São Paulo, 2001, p. 71, 174 e 175.

2. Silverstein, T. P.; Heller, S. T.; J. Chem. Educ. 2017, 94, 690. [Crossref]

3. Neils, T. L.; Silverstein, T. P.; Schaertel, S.; J. Chem. Educ. 2023, 100, 1676. [Crossref]

4. https://www.youtube.com/watch?v=u5Nyzs3CSc8&t=12s, acessada em julho 2023.

5. Brown, T. L.; Lemay Junior, H. E.; Bursten, B. E.; Burdge, J. R.; Química - A Ciência Central, 9a ed.; Pearson Education do Brasil: São Paulo, 2005.

6. Kotz, J. C.; Treichel, P. M.; Townsend, J. R.; Treichel, D. A.; Química Geral e Reações Químicas, 3a ed.; Cengage Learning: São Paulo, 2016.

7. Atkins, P. W.; Jones, L.; Laverman, L.; Princípios de Química - Questionando a Vida Moderna e o Meio Ambiente, 7a ed.; Bookman: Porto Alegre, 2018.

8. Housecroft, C. E.; Sharpe, A. G.; Inorganic Chemistry, 2nd ed.; Pearson Prentice Hall: London, 2005.

9. Atkins, P. W.; de Paula, J.; Physical Chemistry, 9th ed.; Oxford University Press: New Jersey, 2010.

10. Hawkes, S. J.; J. Chem. Educ. 1995, 72, 799. [Crossref]

11. Gama, M. S.; Afonso, J. C.; Quim. Nova 2007, 30, 232. [Crossref]

12. dos Santos, R. L.; de Queirós, W. P.; Damasceno, F. C.; Batista, L. N.; Quim. Nova 2023, 46, 755. [Crossref]

13. Freire, P.; A Importância do Ato de Ler, 51a ed.; Cortez: São Paulo, 1981, p.12 e 24.

14. Allinger, N. L.; Cava, M. P.; de Jongh, D. C.; Jonhson, C. R.; Lebel, N. A.; Stevens, C. L.; Química Orgânica, 2a ed.; Guanabara Dois: Rio de Janeiro, 1978.

15. Anslyn, E. V.; Dougherty, D. A.; Modern Physical Organic Chemistry, Illustrated ed.; University Science Books: New York, 2005.

16. Barbosa, L. C. A.; Introdução à Química Orgânica, 1ª ed.; Pearson: São Paulo, 2011.

17. Bruice, P. Y.; Química Orgânica, vol. 2, 4a ed.; Prentice Hall: São Paulo, 2006.

18. Campos, M. M.; Química Orgânica, vol. 1, 1ª ed.; Edgard Blücher: São Paulo, 1976.

19. Carey, F. A.; Química Orgânica, vol. 1, 7a ed.; McGraw-Hill-Bookmann: São Paulo, 2011.

20. Carey, F. A.; Sundberg, R. J.; Advanced Organic Chemistry Part A: Structure and Mechanisms, 5th ed.; Springer: New York, 2007.

21. Carroll, F. A.; Perspectives on Structure and Mechanism in Organic Chemistry, 2nd ed.; Wiley: New Jersey, 2010.

22. Clayden, J.; Greeves, N.; Warren, S.; Organic Chemistry, 2nd ed.; Oxford University Press: Oxford, 2012.

23. Constantino, M. G.; Química Orgânica: Curso Básico Universitário, vol. 1, 1ª ed.; LTC: Rio de Janeiro, 2008.

24. Costa, P. R. R.; Ferreira, V. F.; Esteves, P. M.; Vasconcellos, M.; Ácidos e Bases em Química Orgânica, 1ª ed.; Bookman: Porto Alegre, 2005.

25. Costa, P. R. R.; Pinheiro, S.; Pilli, R. A.; Bakuzis, P.; The Chemistry of Carbonyl Compounds and Derivatives, 2nd ed.; Royal Society of Chemistry: London, 2022.

26. Costa, P. R. R.; Pinheiro, S.; Pilli, R. A.; Substâncias Carboniladas e Derivados, 2ª ed.; EditSBQ: São Paulo, 2019.

27. Cox, B. G.; Acids and Bases: Solvent Effects on Acid-Base Strength, Illustrated ed.; Oxford University Press: Oxford, 2013.

28. Hendrickson, J. B.; Cram, D. J.; Hammond, G. S.; Organic Chemistry, 3rd ed.; McGraw-Hill: New York, 1970.

29. Isaacs, N. S.; Physical Organic Chemistry, 2nd ed.; Wiley-Blackwell: New Jersey, 1975.

30. Klein, D.; Química Orgânica, vol. 1, 2a ed.; LTC: Rio de Janeiro, 2016.

31. Lowry, T. H.; Richardson, K. S.; Mechanism and Theory in Organic Chemistry, 3rd ed.; Harper & Row: New York, 1987.

32. March, J.; Advanced Organic Chemistry: Reactions, Mechanisms and Structure, 1st ed.; McGraw-Hill: New York, 1968.

33. McMurry, J.; Química Orgânica, 3a ed.; Cengage Learning: São Paulo, 2016.

34. Morrison, R. T.; Boyd, R. N.; Organic Chemistry, 6th ed.; Prentice Hall International, Inc.: New Jersey, 1992.

35. Noller, C. R.; Chemistry of Organic Compounds, 3rd ed.; W. B. Saunders Company: Philadelphia, 1965.

36. Pine, S. H.; Organic Chemistry, 5th ed.; McGraw-Hill International: Singapore, 1987.

37. Smith, M. B.; March's Advanced Organic Chemistry: Reactions, Mechanisms and Structure, 7th ed.; Wiley: New Jersey, 2013.

38. Smith, M. B.; March's Advanced Organic Chemistry: Reactions, Mechanisms and Structure, 8th ed.; Wiley: New Jersey, 2020.

39. Smith, M. B.; Organic Chemistry: An Acid-Base Approach, 1st ed.; CRC Press: Boca Raton, 2011.

40. Solomons, T. W. G.; Fryhle, C. B.; Snyder, S. A.; Química Orgânica, vol. 1, 12a ed.; LTC: Rio de Janeiro, 2018.

41. Streitwieser, A.; Heathcock, C. H.; Kosover, E. M.; Introduction to Organic Chemistry, 4th ed.; Macmillan Publishing Company: New York, 1992.

42. Vollhardt, K. P. C.; Schore, N. E.; Química Orgânica: Estrutura e Função, 6a ed.; Bookman: Porto Alegre, 2013.

43. Cram, D. J.; Fundamentals of Carbanion Chemistry, 1st ed.; Academic Press: New York, 1965.

44. Nelson, B. A.; J. Chem. Educ. 1967, 44, 181. [Crossref]

45. https://chemistry.stanford.edu/people/carl-robert-noller, acessada em julho 2023.

46. https://www.orgsyn.org/content/pdfs/bios/noller.pdf, acessada em julho 2023.

47. Bowman, B. G.; Karty, J. M.; Gooch, G.; J. Chem. Educ. 2007, 84, 1209. [Crossref] acessado em julho 2023

48. https://organicchemistrydata.org/hansreich/resources/pka/, acessada em julho 2023.

On-line version ISSN 1678-7064 Printed version ISSN 0100-4042
Qu�mica Nova
Publica��es da Sociedade Brasileira de Qu�mica
Caixa Postal: 26037 05513-970 S�o Paulo - SP
Tel/Fax: +55.11.3032.2299/+55.11.3814.3602
Free access

GN1