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Fármacos na pandemia da COVID-19: uma temática para a educação ambiental crítica no ensino de química analítica Pharmaceuticals in the COVID-19 pandemic: a theme to critical environmental education on analytical chemistry teaching |
Mariana S. CecilioI; Camila G. PassosI; Maurícius S. PazinatoI,*; Carla SirtoriI,II
I. Instituto de Química, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 90650-001 Porto Alegre - RS, Brasil Recebido em 18/07/2023 *e-mail: mauricius.pazinato@ufrgs.br During the COVID-19 pandemic, the pursuit of a cure for the disease resulted in an excessive consumption of various pharmaceuticals, even after their inefficacy had been scientifically demonstrated. This scenario highlights the urgency of educational initiatives that improve students' critical thinking and promote awareness of indiscriminate use of pharmaceuticals and its environmental and social implications. This research described the educational initiative "Pharmaceuticals in the COVID-19 pandemic" based on the study case method, implemented at an analytical chemistry class, and analyzed its potential on promoting Critical Environmental Education through a content analysis guided by the indicators proposed by Luz and Tonso. Students were divided into groups and studied different cases about pharmaceuticals featured in the media during the pandemic. They were expected to gather relevant data regarding the case scenario; to take a position on a socio-environmental dilemma; propose an analytical chromatographic methodology for the pharmaceutical in the case and present their results in a final report. The educational initiative was considered aligned with Critical Environmental Education principals due to the presence of six out of the seven indicators. As a future perspective, we aim to optimize the educational initiative in order to include all the indicators and students' suggestions. INTRODUÇÃO Durante a pandemia da COVID-19 no Brasil, a busca pela cura ou tratamento da doença promoveu um consumo exacerbado de diferentes medicamentos, mesmo após terem sua ineficácia comprovada.1 O elevado consumo de fármacos tem consequências negativas já bem conhecidas pela comunidade científica, tais como o aumento da resistência microbiana e a contaminação ambiental,2,3 porém, esse cenário foi incentivado pela ampla propagação de informações falsas presentes nas redes sociais, característica da era da pós-verdade em que vivemos.4 Essa conjuntura evidencia a urgência de ações educativas no Ensino de Química que promovam a compreensão das consequências sociais e ambientais do uso indiscriminado de fármacos, bem como o desenvolvimento do senso crítico dos estudantes frente às informações às quais são expostos. Um exemplo,5 recentemente relatado nesta revista, empregou a ferramenta webQuest em uma disciplina fundamental de Química Orgânica e Bioquímica de Macromoléculas, a qual mostrou-se viável para subsidiar as aulas no ensino remoto emergencial imposto pela pandemia de COVID-19 e para promover as competências previstas pela alfabetização informacional e midiática (AMI). A disciplina de Química Analítica é um ambiente oportuno para a discussão dessa problemática, uma vez que está intimamente relacionada à obtenção de medidas e hoje sabemos que, além da qualidade das medições, a interpretação adequada dos dados gerados é essencial em processos de tomada de decisão cientificamente embasados.6 Todavia, os estudantes são apresentados às incertezas de medição e métodos de validação por meio, muitas vezes, de metodologias simplificadas ou ultrapassadas que não condizem com sua futura atuação profissional. Especialmente, no caso de cursos de graduação correlatos à Química,7 em que várias horas do curso são dedicadas à realização de análises clássicas e à operação de instrumentos em detrimento do estímulo à avaliação crítica dos resultados obtidos e de suas implicações em âmbito social e ambiental. Nesse sentido, a Educação Ambiental Crítica (EAC) pode fomentar processos de ensino e aprendizagem que favoreçam a ressignificação de saberes e paradigmas em âmbito pessoal, acadêmico e profissional, quanto à inter-relação dos conhecimentos científicos com os aspectos econômicos, ambientais, políticos e sociais de determinado período histórico.8 A partir desses pressupostos, verifica-se a pertinência da implementação de práticas docentes que visem a reflexão e o posicionamento crítico dos indivíduos frente às questões e problemáticas socioambientais, de forma integrada aos aspectos científicos, por meio da inserção, principalmente, de temas relevantes ao contexto de formação acadêmica e da futura prática profissional dos graduandos. Queiroz e Sacchi9 descrevem as potencialidades dos estudos de caso para a discussão de questões socioambientais no contexto do ensino de Ciências. No presente trabalho, esse método foi escolhido com o objetivo de enriquecer o ensino de Química Analítica e proporcionar a abordagem da temática "Fármacos na pandemia da COVID-19", conforme será detalhado a seguir. Em busca de um instrumento de análise para as práticas docentes desenvolvidas sobre Educação Ambiental, Luz e Tonso10 elaboraram sete indicadores e parâmetros que sinalizam para a convergência das ações docentes quanto aos princípios da EAC. Os autores realizaram ampla pesquisa bibliográfica e entrevistas com pesquisadores da área para delimitarem os elementos constituintes de uma práxis docente no campo da EAC. Os indicadores permitem obter informações sobre algo que não pode ser diretamente observado ou quantificado, atuando como indicativos que revelam aspectos de uma determinada realidade. A proposta de análise a partir dos sete indicadores e parâmetros de Luz e Tonso foi considerada em estudos anteriores para avaliar a aproximação de estudos de caso com os princípios da EAC por Queiroz e Sacchi,9 assim como por Sudan e Zuin,11 para identificar as potencialidades e desafios de uma ação formativa de cunho socioambiental e por Ponzoni et al.12 para classificar as Unidades Temáticas produzidas em um curso de extensão de formação de professores quanto aos princípios da EAC. Dessa forma, este trabalho buscou descrever uma ação educativa, desenvolvida em uma disciplina de Química Analítica, com a temática "Fármacos na pandemia da COVID-19" e avaliar seu potencial como promotora de uma EAC. Educação ambiental crítica As instituições de ensino superior são espaços que preparam estudantes para a futura atuação profissional, instruindo-os quanto a técnicas avançadas de modificação da natureza, mas, nem sempre, convidando-os a refletir criticamente sobre seus impactos. De acordo com as atuais Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Ambiental,13 a Educação Ambiental (EA) deve estar presente em todos os níveis de ensino e superar a visão despolitizada e acrítica ainda muito presente na prática pedagógica das instituições; contudo, a promoção dessas ações educativas enfrenta resistência no âmbito universitário devido a uma visão naturalista e a crença no tecnicismo predominante.14 A EA é muito diversa, sendo marcada por diferentes vertentes de pensamento e propostas pedagógicas. Assim, Guimarães15 a categoriza em uma EA conservadora ou crítica. Pode-se entender que uma ação educativa conservadora é aquela que entende que educação é, por si só, capaz de resolver os problemas da sociedade, tendo a transformação social como consequência da transformação de cada indivíduo. Já na visão da EAC, o ensino busca no contexto, na comunidade, com seus problemas sociais e ambientais, o conteúdo do trabalho pedagógico. O processo de ensino e aprendizagem deve ter como objetivo central a (re)construção de novos conhecimentos, a reflexão de ideias e o posicionamento crítico dos indivíduos,8 tendo o educador e os educandos como agentes de transformação social. Considerando que a classificação das propostas de EA não constituem um esquema conceitual rígido e polarizado, bem como que existem diversas possibilidades de ações educativas entre ambas, Luz e Tonso10 apresentaram sete indicadores de uma EAC, conforme exposto na Tabela 1.
Sendo assim, diferentes estratégias metodológicas podem ser selecionadas e adaptadas para viabilizar a promoção de uma EAC, visando contemplar os indicadores propostos por esses autores. No contexto em discussão, as metodologias ativas de ensino são alternativas pedagógicas por colocarem o estudante no centro do processo de aprendizagem e instigarem sua autonomia e senso crítico. Dentre essas metodologias, pode-se destacar a metodologia de estudos de caso (EC), a qual vem sendo aplicada de diferentes formas no ensino superior de Química,16,17 inclusive em disciplinas de química analítica, e demonstra ser uma ferramenta compatível à promoção de uma ação educativa alinhada à EA crítica.9 Metodologia de estudos de caso A metodologia de estudos de caso (EC) é uma variante da Aprendizagem Baseada em Problemas, que foi desenvolvida com o objetivo de possibilitar o contato dos estudantes com problemas reais durante a sua formação e oferecer-lhes a oportunidade de direcionar a sua própria aprendizagem.18 Nessa metodologia, são estudados casos que descrevem cenários relativamente complexos na forma de narrativas, reais ou fictícias, que contêm um dilema e estimulam o estudante a se familiarizar com seu contexto e com conceitos científicos necessários para entendê-las e solucioná-las. Dessa forma, é importante que os casos sejam de interesse dos estudantes, que contemplem os conteúdos a serem desenvolvidos em uma determinada disciplina e que apresentem situações que os aproximem de sua futura atuação profissional.18 O papel do professor na aplicação dessa metodologia é orientar os educandos a analisar o caso, os fatos apresentados, as diferentes possibilidades de posicionamento quanto ao dilema proposto e as consequências de suas ações, encorajando a discussão para que sejam capazes de desenvolver o senso crítico em processos de decisão.18 Assim, é possível estudar esses casos em diversas disciplinas e utilizando diferentes estratégias, como em tarefas individuais, discussões em turma, pequenos grupos, aulas expositivas ou de forma mista, utilizando mais de um formato em uma mesma ação educativa.16
METODOLOGIA Este trabalho compõe uma das etapas de uma pesquisa de cunho qualitativo,19 realizada a nível de mestrado, que desenvolveu uma ação educativa baseada na metodologia de ensino e aprendizagem de EC com a temática "Fármacos na pandemia da COVID-19" e analisou suas contribuições no ensino de química analítica em cursos de graduação correlatos à Química. Neste artigo, busca-se descrever as atividades desenvolvidas ao longo dessa ação educativa, a partir da perspectiva dos seus participantes,20 e avaliar seu potencial como promotora de uma EAC. Para tal, as produções escritas dos estudantes (relatório final contendo o estudo e resolução dos casos) e os registros realizados em um diário de campo20 quanto ao planejamento e implementação da ação educativa foram submetidos a uma análise de conteúdo,21 sendo agrupadas as citações pertinentes contidas em cada uma dessas fontes de dados em categorias referentes aos sete indicadores propostos por Luz e Tonso.10 Além disso, foram coletados dados do perfil dos discentes participantes através de um questionário inicial, contendo questões de múltipla escolha, e consideradas as impressões dos estudantes quanto à ação educativa proposta por meio de um questionário final com um campo de resposta livre para comentários e críticas.
RESULTADOS E DISCUSSÃO Descrição da ação educativa A ação educativa foi elaborada a fim de ser aplicada na disciplina "Química Analítica Quantitativa e Instrumental - A" da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Essa disciplina, no segundo semestre letivo de 2021, é ministrada para estudantes do segundo e terceiro períodos dos cursos de graduação em Farmácia, Biotecnologia e Engenharia Ambiental, contando com um encontro semanal de duas horas-aula teórico-expositivas e outro encontro semanal de três horas-aula práticas em laboratório. Sendo a única disciplina destinada ao ensino química analítica no currículo obrigatório dos três cursos citados, contempla o ensino da introdução à química analítica, técnicas volumétricas, potenciometria, espectrometria UV-Vis, espectrometria de absorção atômica, cromatografia a gás e cromatografia a líquido. Uma atividade com a temática "Fármacos na pandemia da COVID-19", baseada na metodologia de EC, foi proposta aos estudantes como alternativa às quatro semanas tradicionalmente destinadas ao estudo de métodos cromatográficos de análise. As quatro aulas teórico-expositivas referentes a esse período (técnicas de preparo de amostra, fundamentos dos métodos cromatográficos, cromatografia a gás e cromatografia a líquido) foram disponibilizadas de forma assíncrona, através da plataforma Moodle, já no primeiro encontro a fim de facilitar a consulta dos estudantes aos conceitos introdutórios durante toda a atividade. Assim, a condução da ação educativa se deu durante os encontros anteriormente destinados às aulas práticas de laboratório, conforme esquematizado na Figura 1.
Figura 1. Fluxograma da atividade de EC proposta
No encontro 1, os estudantes preencheram um questionário inicial para que pudéssemos conhecer o perfil dos mesmos quanto à idade, ao curso de graduação e ao contato prévio com metodologias ativas de aprendizagem. Eles receberam instruções detalhadas sobre as próximas etapas da atividade e foram divididos em até quatro grupos de três a cinco integrantes e, a cada grupo, foi designado um caso a ser estudado. Nos encontros 2 e 3, os grupos trouxeram seus avanços no estudo e resolução dos casos na forma de um "relatório parcial", a fim de elucidar suas dúvidas e receber mais orientações quando necessário. Também, visitaram os laboratórios de cromatografia da UFRGS, onde foram explicados detalhes de cada um dos sistemas cromatográficos presentes. Nessa visita foram detalhadas as particularidades de cada sistema e de cada detector/analisador. No total foram apresentados aos estudantes os sistemas de GC-FID, GC-ECD, GC-MS, HPLC-UV-IR, HPLC-ELSD, HPLC-MS/MS e UHPLC-QTOF MS. Além disso, foram apresentadas colunas capilares, colunas analíticas, pré-colunas e consumíveis comumente empregados na área (vials, seringas de injeção, liners, entre outros). Já no encontro 4, os grupos entregaram seu relatório final e apresentaram a resolução do seu caso para os demais colegas, de forma resumida em um vídeo de 15 min, promovendo discussões coletivas. Além disso, com o objetivo de registrar suas impressões sobre a ação educativa proposta, preencheram um questionário final contendo um campo de resposta livre para comentários e críticas. Elaboração dos casos Para essa atividade de EC, foram elaborados quatro casos inéditos alinhados à temática "Fármacos na pandemia da COVID-19" e atendendo às características de um bom caso.22 Suas narrativas têm como foco alguns dos fármacos e suplementos vitamínicos frequentemente mencionados na mídia durante o período mais severo da pandemia (2020-2021) e convidam os estudantes a se posicionar quanto a um dilema socioambiental e a propor uma metodologia analítica cromatográfica para cada um desses compostos conforme resumido na Tabela 2. Os enunciados dos quatro casos constam no material suplementar deste artigo.
Os analitos foram inseridos na narrativa de forma que, em cada caso: diferentes métodos de preparo de amostras fossem discutidos durante a atividade devido à diversidade de matrizes; referências bibliográficas de metodologias analíticas baseadas em técnicas cromatográficas já realizadas em condições similares fossem facilmente encontradas pelos estudantes; a escolha de diferentes técnicas cromatográficas (cromatografia a líquido ou gás) e seus respectivos detectores fosse possível para uma mesma amostra; o posicionamento favorável ou desfavorável em relação ao dilema fosse adequado mediante a apresentação de argumentos embasados em dados científicos de fontes confiáveis. Assim, ao estudar os casos, esperava-se que os estudantes fossem capazes de atingir quatro objetivos: (i) relacionar o caso com a atualidade, citando reportagens, legislação e/ou dados oficiais; (ii) posicionar-se em relação ao dilema proposto ao final da narrativa, argumentando com as informações compiladas; (iii) propor uma metodologia analítica, indicando o método de preparo de amostra e a técnica cromatográfica adequada, justificando as condições de análise, escolha do detector e do método de validação; (iv) comunicar sua resolução do estudo de caso de forma oral e escrita, utilizando referências bibliográficas adequadas. Ao final da narrativa de cada um dos casos, foram anexados os objetivos a serem atingidos e questões norteadoras para auxiliar no seu estudo e resolução, estratégias já utilizadas anteriormente23,24 a fim de facilitar a compreensão da metodologia ativa de aprendizagem. Além disso, os casos foram validados por três professores doutores com experiência prévia em EAC e metodologia de EC como aptos à proposta desta ação educativa. Durante o processo de validação, os casos foram aperfeiçoados quanto à linguagem e para atender as características de um bom caso.22 Contexto da aplicação A ação educativa foi conduzida em oito turmas da disciplina "Química Analítica Quantitativa e Instrumental - A" durante o segundo semestre letivo de 2021, contando com a participação completa de 80 discentes dos cursos de graduação em Farmácia (54 estudantes), Biotecnologia (22 estudantes) e Engenharia Ambiental (4 estudantes) com idade média de 21 anos. Em sua maioria, estavam cursando a disciplina pela primeira vez (95%) e não entraram em contato com a metodologia de EC ou similares anteriormente (69%). Para a realização da atividade, os estudantes formaram um total de 28 grupos distribuídos em oito turmas, conforme resumido na Tabela 3 onde constam os grupos formados, o número de integrantes e o caso estudado.
Avaliação da ação educativa enquanto promotora de uma EAC O Indicador 1 de uma ação de EAC sugere a promoção da compreensão sobre as origens ou as causas dos problemas ambientais, relacionando-os com o modo de produção e consumo. As narrativas dos quatro casos foram elaboradas a fim de instigar essa compreensão dentro de diferentes cenários, principalmente ao convidar os estudantes a se posicionarem quanto a um dilema socioambiental (Tabela 2). Esse viés contido na atividade foi considerado bem-sucedido, tendo o Indicador 1 contemplado, uma vez que 24 dos 28 grupos participantes foram capazes de atingir satisfatoriamente os dois primeiros objetivos propostos: (i) relacionar o caso com a atualidade, citando reportagens, legislação e/ou dados oficiais e (ii) posicionar-se em relação ao dilema proposto ao final da narrativa, argumentando com base nas informações compiladas. Como por exemplo, o grupo G28, que após citar dados da ANVISA sobre possíveis contribuições do consumo exacerbado de antibióticos na pandemia para a resistência microbiana;25 um estudo da UFRGS que encontrou diferentes antibióticos em amostras de corpos hídricos;26 e descrever o processo de tratamento de água e esgoto na cidade de Porto Alegre,27 posicionam-se: "A legislação vigente sobre a qualidade da água potável, Portaria No. 2.914, de 12 de dezembro de 2011, prevê características aceitáveis de substâncias químicas que comprovadamente causam risco à saúde humana, como agrotóxicos e pesticidas. No entanto, nada consta sobre fármacos. (...) Portanto, não consideramos o tratamento de água realizado em Porto Alegre suficiente para prevenir o aumento da resistência microbiana em decorrência da presença de antibióticos ativos nas águas residuais. Dessa forma, se faz necessário que as esferas do governo se atentem ao problema iminente em que nos encontramos." Ou ainda, conforme o grupo G7, que reuniu reportagens relacionadas ao aumento de ingestão de suplementos vitamínicos durante a pandemia e dados sobre os limites de ingestão diário de acordo com a ANVISA28 e concluiu que as intoxicações por vitamina D seriam mais prováveis por erros na produção dos suplementos, citando um caso ocorrido na cidade de Porto Alegre:29 "Por conseguinte, nota-se que há sim a necessidade de medidas mais rígidas na venda de suplementos vitamínicos e na fiscalização da produção desses produtos disponíveis no mercado (...). Os órgãos fiscalizadores como agência sanitárias dos estados e municípios, e seus respectivos laboratórios devem garantir o controle e qualidade dos suplementos distribuídos na sociedade, conforme a legislação e orientações de órgãos fiscalizadores como ANVISA." Relaciona-se o Indicador 2, da articulação da dimensão técnica com a dimensão social, com o convite feito aos estudantes através do objetivo (iii) propor uma metodologia analítica, indicando o método de preparo de amostra e a técnica cromatográfica adequada, justificando as condições de análise, escolha do detector e do método de validação. Considera-se que perceber a utilidade de dados obtidos através de uma metodologia analítica para a discussão dos dilemas propostos é fundamental para tomadas de decisão cientificamente embasadas, conforme registrado pelos grupos G12 e G3, respectivamente: "É de extrema importância verificar as consequências [na resistência microbiana] geradas a partir do descarte incorreto desses medicamentos. Para isso, pode-se utilizar metodologias analíticas para quantificação do fármaco em questão, principalmente em amostras de solo coletadas próximas a aterros sanitários." "(...) o acúmulo causado por antibióticos de uso excessivo em redes de tratamento de água pode ser extremamente danoso, não apenas à saúde humana, mas também à fauna e flora. Assim, ao realizar a metodologia previamente apresentada, poderemos concluir, de forma quantitativa, quão urgente é a tomada de ações em prol da resolução deste problema em Porto Alegre" Inclusive, a ausência de um resultado proveniente de uma metodologia analítica tornava inviável um posicionamento assertivo quanto aos dilemas, em especial no contexto do EC2, conforme ilustrado pelo posicionamento do grupo G15: "Já existem evidências de que corpos hídricos estão sendo contaminados por poluentes, entretanto, para a afirmação definitiva da relação entre o medicamento e desaparecimento dos peixes necessita-se do procedimento analítico para verificar os resultados, já que podem existir outros contribuintes além da proxalutamida." A deliberação a respeito da relevância das análises químicas no contexto dos casos foi reforçada durante as discussões coletivas do último encontro, considerando-se, assim, agraciados os parâmetros do Indicador 2. O Indicador 3 está relacionado com a participação dos acadêmicos na escolha dos saberes e conteúdos prioritários da ação educativa. Durante a atividade de EC descrita, os estudantes tiveram a liberdade de focar seus estudos e busca de dados no que lhes pareciam pertinentes para compreender o contexto da narrativa e posicionar-se, desde que utilizassem referências confiáveis. O grupo G20, por exemplo, espontaneamente discutiu aspectos geográficos da incidência da Malária, bem como o contraste na oferta do medicamento Cloroquina quando comparadas a alta produção pelo exército durante a pandemia30 e a escassez para a população indígena, citando também falas de missionários que trabalham com indígenas Yanomami,31 mesmo esse não sendo o enfoque dado na narrativa caso EC3: "O missionário católico Carlos Zacquini, que trabalha com os yanomamis, afirma que a quantidade de medicamentos não é condizente com o número de indígenas que necessitam do mesmo para o tratamento de malária (...) Ou seja, por um lado, há uma grande produção de medicamentos, e por outro, há a falta em locais realmente necessitados." O EC1, por sua vez, contou com uma diversidade de posicionamentos e justificativas: três grupos posicionaram-se a favor de medidas mais rígidas para a venda de suplementos vitamínicos, enquanto os outros três não. Os grupos favoráveis, G11 e G14, focaram sua discussão sobre como a facilidade em adquirir esses suplementos fora das farmácias, por exemplo em lojas on-line ou supermercados, é um problema, dificultando a atenção farmacêutica; já o grupo G7 propôs medidas mais rígidas no controle de qualidade dos suplementos, comparando a legislação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) com a de outros países, devido aos casos de superdosagem noticiados em Porto Alegre. Dois grupos de posicionamento desfavorável a essas medidas, G18 e G25, focaram na questão social, citando dados da dificuldade de acesso às consultas médicas em alguns locais do país. O grupo G22, contrário a medidas mais rígidas, discorreu sobre como campanhas de conscientização social sobre os suplementos vitamínicos e o empoderamento do papel do farmacêutico seriam suficientes para evitar o uso indiscriminado dessas mercadorias. Porém, apesar da flexibilidade na escolha dos dados pertinentes e posicionamento, bem como a livre escolha do método de preparo de amostra, equipamento de análise e detector, os grupos ficaram restritos aos métodos cromatográficos e aos fármacos propostos pela atividade, podendo-se considerar que o Indicador 3 foi parcialmente contemplado nesta ação educativa. O Indicador 4 refere-se à presença de conteúdos no trabalho pedagógico que dialoguem com a realidade socioambiental local. A escolha da temática "Fármacos na pandemia da COVID-19" mostrou-se adequada para afirmar a presença desse indicador, dado que todos os participantes da atividade vivenciaram a pandemia e foram expostos a diversas informações a respeito de fármacos no decorrer desse período. Além disso, durante os encontros de orientação, os estudantes compartilharam experiências pessoais relacionadas a esse contexto, tais como o aumento no consumo de medicamentos por familiares e o uso indiscriminado de antibióticos por moradores de sua comunidade. Quanto ao Indicador 5, a identificação com a comunidade a que pertencem foi constatada pela espontânea percepção dos estudantes da importância de sua futura profissão na prevenção dos diferentes problemas ambientais apresentados. Essa percepção pôde ser observada tanto nos diálogos presentes nos encontros de orientação, quanto nos relatórios finais. Além de se posicionarem quanto ao dilema, 18 grupos propuseram diferentes formas de intervenção nos cenários presentes nas narrativas envolvendo maior atenção farmacêutica, conscientização social e/ou fiscalização ambiental, ações estas relacionadas ao seu exercício de cidadania e futura área de atuação. Como por exemplo, apresenta-se o trecho presente no relatório final do grupo G22: "Os medicamentos não tarjados apresentam riscos associados ao seu uso, embora de menor gravidade quando bem administrados. Logo, como não há a necessidade de receituário médico ou de demais profissionais da saúde, a orientação do farmacêutico se torna indispensável no momento da dispensação do produto, ponderando riscos e benefícios, além de revisar a farmacoterapia, a fim de evitar erros relacionados à medicação." O Indicador 6 de uma EAC concerne à ação coletiva, um mecanismo pedagógico que permite aumentar a capacidade de criação solidária do conhecimento através, muitas vezes, do diálogo e multiplicação dos saberes nas comunidades. A ação educativa em questão contou com discussões coletivas ao final da atividade, porém restritas aos seus participantes em contexto acadêmico. Dessa forma, não se considera que este indicador foi contemplado. Os encontros de orientação foram um dos diferenciais da ação educativa, podendo ser relacionados ao papel da avaliação processual, pertinente ao Indicador 7. Em dois momentos, os grupos se encontraram, um por vez, com as professoras responsáveis pela atividade. A maior proximidade com os estudantes proporcionada por esses encontros permitiu uma observação clara das diferentes dificuldades encontradas por eles no decorrer da atividade: inicialmente, notou-se uma compreensão vaga da metodologia de EC por parte dos discentes, o que já foi apontado como um empecilho na implementação de metodologias ativas em sala de aula.24 Porém, essa dificuldade pôde ser satisfatoriamente contornada através dos encontros de orientação, proporcionando um melhor aproveitamento da atividade segundo os próprios estudantes: 19 respostas no campo de comentário livre do questionário final citaram os encontros de orientação como positivos no processo de aprendizagem. Durante esses encontros, também foi possível observar dificuldades quanto ao uso adequado de referências bibliográficas, relacionadas ao objetivo (iv) da atividade. Dos 28 relatórios parciais produzidos pelos grupos, discutidos nos encontros de orientação, 25 continham pelo menos uma afirmação ou definição conceitual não referenciadas e 19 utilizaram pelo menos uma referência inadequada, como sites com dados sem indicação de procedência ou colunas de opinião. Diferentes estudantes expressaram verbalmente, durante as orientações, que referências bibliográficas eram frequentemente exigidas em demais trabalhos da graduação, mas não tinham conhecimento desses pontos corrigidos durante os encontros. Outrossim, os encontros de orientação oportunizaram o recolhimento de informações pertinentes para a melhora da ação educativa proposta, também relacionados aos parâmetros do Indicador 7. Durante os diálogos nesse espaço, o contato mais próximo favoreceu uma interação mais espontânea e muitos estudantes se sentiram confortáveis em expressar suas dúvidas e percepções quanto à atividade. Foram frequentes os comentários sobre o tempo limitado sugerido e o desejo de executar a metodologia analítica proposta em seus relatórios de forma prática. Essas percepções também foram registradas no campo de comentários livres do questionário final, em que 16 estudantes citaram o tempo como aspecto negativo e sete sugeriram a realização da metodologia analítica em aulas no laboratório. Apesar desses pontos, os estudantes relataram uma experiência proveitosa com a atividade, citando, principalmente, a relação da temática com problemáticas atuais e com sua futura atuação profissional: "Foi um dos trabalhos que mais gostei de fazer da faculdade até então, é uma forma muito mais divertida de estudar analítica do que através de apenas vídeos ou explicações, pois vemos a aplicação e importância real da disciplina."
CONCLUSÃO Com o conjunto de dados analisados, foi possível observar que as etapas utilizadas no desenvolvimento da ação educativa com a temática "Fármacos na pandemia da COVID-19" possibilitaram momentos de reflexão crítica entre os estudantes e docentes, pois demandaram a elaboração de propostas de resolução interligando técnicas de análise cromatográficas juntamente com questões sociais, econômicas, ambientais e políticas. Assim, constatou-se o potencial desta ação educativa enquanto promotora de uma EAC através da presença de cinco dos sete indicadores (1, 2, 4, 5 e 7) sugeridos por Luz e Tonso10 para uma ação alinhada à EAC. Considera-se que a vivência de atividades formativas desta natureza possa contribuir para o desenvolvimento de uma cultura de participação ética e responsável, para o enfrentamento das problemáticas socioambientais de forma mais efetiva. Como perspectiva futura, essa ação educativa pode ser otimizada dispondo de um maior número de horas-aula. Dessa forma, seria possível a inclusão de diferentes técnicas analíticas e mais tempo para o estudo dos casos, possibilitando uma participação mais relevante dos educandos na escolha dos saberes e conteúdos prioritários (contemplando-se de forma plena o Indicador 3) e oportunizando a execução em laboratório da metodologia analítica proposta pelos estudantes. Além disso, a fim de contemplar o Indicador 6, incluir-se-ia um objetivo (v) elaborar uma ação capaz de promover a tomada de consciência coletiva quanto ao uso indiscriminado de fármacos frente ao contexto do caso estudado. Dessa forma, os estudantes poderiam elaborar intervenções, como ações de extensão, capazes de incluir demais sujeitos na reflexão proposta pela ação educativa descrita, tornando-a ainda mais abrangente.
MATERIAL SUPLEMENTAR Os quatro casos empregados nesse estudo constam no material suplementar, disponível em http://quimicanova.sbq.org.br, na forma de arquivo PDF, com acesso livre.
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