JBCS



11:07, qui nov 21

Acesso Aberto/TP




Educação


Implicações formativas para a atuação de professores de química da educação básica em relação à temática radioatividade
Training implications for the performance of basic education chemistry teachers in relation to the topic of radioactivity

Luclécia D. NunesI; Nyuara A. S. MesquitaII,*

I. Departamento de Química, Centro de Ensino e Pesquisa Aplicada à Educação, Universidade Federal de Goiás, 74001-970 Goiânia - GO, Brasil
II. Instituto de Química, Universidade Federal de Goiás, 74690-900 Goiânia - GO, Brasil

Recebido: 13/11/2023
Aceito: 02/04/2024
Publicado online: 11/06/2024

RESUMO

The training of Chemistry teachers in Brazil has been researched for a few decades and studies point out to training gaps that reverberate in teaching, especially in basic education. One of the contents covered in this step and which is part of the high school curriculum is radioactivity, which is related, among other things, to radiological and radioactive accidents that occur around the world. Thus, this research sought to investigate how the training provided to Chemistry undergraduates in the state of Goiás is in relation to the subject of radioactivity, since in 1987 a radiological accident occurred in Goiânia with a Cesium 137 source. This is a qualitative research, data were collected via questionnaire and the analytical technique used was discursive textual analysis (ATD). The results showed that due importance was not given to the radiological accident, since there is evidence of training gaps in relation to the topic of radioactivity in Chemistry degree courses in the state of Goiás, where the accident occurred, and the contents on radioactivity are either not addressed, or the approach is superficial. This fact directly impacts the teacher's performance in basic education, when working on this content with their students.

Palavras-chave: teacher training; radioactivity; scientific literacy; basic education.

INTRODUÇÃO

Ao longo das últimas décadas, com o crescimento das pesquisas e publicações na área de Ensino de Química, a formação inicial dos professores vem sendo amplamente abordada e discutida. Os estudos apontam lacunas e fazem críticas à qualidade da formação propiciada aos licenciandos em Química em todo o Brasil.1 Tais críticas são direcionadas, dentre outros aspectos, à dicotomia entre a teoria e a prática, aos cursos com características bacharelizantes, pautados pela racionalidade técnica, no qual a ênfase é na pesquisa química, e não no ensino de química, em que a parte pedagógica fica em segundo plano, a uma formação de profissionais que não desenvolve a criticidade e a capacidade de refletir, impactando assim, de forma negativa, na atuação desse futuro docente, especialmente na Educação Básica.1-4

Nas palavras de Garcia e Kruger5 "O desconhecimento da realidade do professor de Química da escola, por parte dos professores das disciplinas específicas da graduação, ocasiona um ensino de Química na graduação desconectado da vivência do profissional". Essa falta de relações entre o saber abordado na academia e o saber a ser ensinado na escola contribui para que o futuro professor de Química não estabeleça, em seu processo formativo, conexões contextuais que se configuram muito importantes no processo de ensino e aprendizagem dos seus alunos da Educação Básica. O impacto da formação deficitária dos licenciandos em Química pode ser visto após a conclusão do curso durante a atuação profissional, pois, para Maldaner,6 os professores de química do ensino médio têm como prática "seguir uma sequência convencionada de conteúdos de química sem a preocupação com as inter-relações que se estabelecem entre esses conteúdos e, muito menos, com questões mais amplas da sociedade". Quando o esperado é que o ensino de Química no contexto escolar tenha como um dos objetivos "[...] relacionar conteúdos químicos com aspectos e temas da vida cotidiana a fim de que os alunos compreendam algumas importantes contribuições da ciência Química à sociedade e à vida das pessoas".7 Ainda nesse viés, Marcon et al.8 explicitam que é necessário adaptar os conhecimentos dos futuros professores à especificidade do contexto de ensino e aprendizagem, bem como às peculiaridades do grupo de alunos e às características do local onde o docente atua. Isso posto, despreza-se um fator importante no desenvolvimento do processo de formação, que é o contexto, o qual poderia se configurar como subsídio às discussões ocorridas durante as aulas, propiciando, entre outras coisas, o diálogo entre as disciplinas ditas específicas e as pedagógicas.

Em se tratando de contexto, a história recente do estado de Goiás é marcada por uma tragédia ocorrida em setembro de 1987, na cidade de Goiânia, o acidente com uma fonte radioativa de Césio 137 que vitimou quatro pessoas, deixou dezenas contaminadas e gerou toneladas de rejeitos radioativos. Logo, uma possibilidade para abordar o conteúdo radioatividade que está presente na matriz curricular do Ensino Médio, e que geralmente é ensinado de forma tradicional, baseado na transmissão e recepção de conteúdos,1 dificultando a aprendizagem dos alunos,9 é a partir do acidente, ou seja, de um fato ocorrido localmente. Tal conteúdo pode ser abordado de forma contextualizada, com a participação efetiva dos alunos, propiciando discussões envolvendo diversos aspectos, como ambiental, social, econômico e político, relacionados tanto ao acidente em si, quanto ao conteúdo radioatividade como um todo. Isso possibilitaria uma formação ampla aos alunos, nas palavras de Silva et al.10 "os processos formativos, como fruto de atividades individuais e coletivas, devem propiciar espaços de discussão, preparando o estudante para ter voz ativa na tomada de decisões e no agir no mundo".

Isto posto, este artigo, que é um recorte de uma pesquisa de doutorado, discorre sobre a formação dos licenciandos em Química do estado de Goiás em relação à temática radioatividade e as implicações dessa formação na atuação docente desses profissionais na Educação Básica.

 

METODOLOGIA

Essa é uma pesquisa de abordagem qualitativa, os dados foram coletados através de questionário.11 O questionário elaborado, utilizando o recurso Google Forms, foi aplicado aos professores de Química da Educação Básica, tanto da rede estadual de educação, quanto da rede privada de ensino, da cidade de Goiânia, estado de Goiás. A escolha dos professores somente da cidade de Goiânia, ocorreu devido à situação, a época da coleta de dados, da pandemia da COVID-19. O link do questionário foi enviado aos professores via e-mail, aplicativos de conversa e redes sociais, juntamente com do Termo de Consentimento Livre e Esclarecimento (TCLE), considerando-se que o projeto de pesquisa foi aprovado no Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Goiás. O questionário, composto por duas partes, foi aplicado aos professores atuantes na Educação Básica formados nas Instituições de Ensino Superior (IES) de Goiás nas décadas de 1980, 1990, 2000, 2010 e 2020. Entendemos que os cursos passam por várias atualizações durante os anos e que é importante ouvir os professores formados em diferentes épocas para acessar relatos que possam nos auxiliar a resgatar informações tanto sobre o contexto formativo, quanto sobre o contexto da ação docente em relação ao tema radioatividade na formação de professores de Química.

A aplicação do questionário teve como objetivos (i) saber se os professores estudaram radioatividade durante o curso de licenciatura em Química; (ii) compreender qual foi a abordagem dada a essa temática durante a sua formação; (iii) investigar se esses professores trabalham ou já trabalharam com o conteúdo de radioatividade durante sua vida profissional; (iv) entender qual foi a abordagem dada à temática radioatividade quando eles ministraram esse conteúdo aos alunos da Educação Básica; (v) identificar se os professores trabalharam o acidente com o Césio 137 ocorrido em Goiânia durante a abordagem desse conteúdo; (vi) relacionar as dificuldades que esses professores podem ter tido na abordagem do tema radioatividade e seu processo formativo na licenciatura em Química. Dessa forma, o questionário foi utilizado com o objetivo de ouvir os profissionais sobre a percepção/crítica/dicotomia entre a sua formação e sua atuação profissional.

Para analisar as informações coletadas com a aplicação do questionário, foi utilizada como técnica analítica a análise textual discursiva (ATD) que, de acordo com Moraes e Galiazzi12 "[...] pode ser entendida como o processo de desconstrução, seguido de reconstrução, de um conjunto de materiais linguísticos e discursivos produzindo-se a partir disso novos entendimentos sobre os fenômenos e discursos investigados". Assim, ao utilizarmos a ATD como metodologia de análise de dados, é possível extrair dos documentos informações por meio de leituras rigorosas e aprofundadas que, após o processo de interpretação e análise, são capazes de conduzir o pesquisador na compreensão do problema em questão. Os documentos analisados na ATD são denominados de corpus e podem tanto ser documentos já existentes, quanto serem produzidos especialmente para a pesquisa, como questionários. A ATD é organizada numa sequência recursiva de três etapas: unitarização, categorização e captação do novo emergente.12 Para fins de apresentação da discussão dos dados desse artigo, foram analisadas duas categorias definidas a priori, a primeira intitulada "Esboço do perfil dos professores de Química participantes da pesquisa" e a segunda "As influências da formação inicial em relação à temática radioatividade na atuação docente dos professores de Química da educação básica".

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Esboço do perfil dos professores de Química participantes da pesquisa

Responderam ao questionário 44 professores de Química da Educação Básica das redes pública e privada (identificados na análise de P1 a P44, de acordo com a ordem em que as respostas ao questionário foram recebidas, que não é a mesma do ano de formação do docente), todos licenciados, sendo que 27 atuam na rede pública, 6 na rede privada e 11 em ambas as redes. Nessa análise do perfil, faremos uma descrição das características desses professores identificadas nas respostas ao questionário.

A Tabela 1 apresenta o ano de formação dos participantes. Como o acidente com a fonte de Césio 137, que está relacionado a temática radioatividade, ocorreu há mais de 30 anos, entendemos ser importante a participação nesta pesquisa, de professores formados principalmente após a ocorrência do acidente.

Considerando a década de formação e o número de professores que responderam ao questionário, temos, em valores aproximados, que 2% formaram na década de 1980, 10% na década de 1990, 43% na década de 2000, 43% na década de 2010 e 2% na década de 2020. A Tabela 1 e os dados de porcentagem, mostram que o questionário foi respondido por professores formados em anos diferentes, sendo 98% deles após o acidente, somente um dos profissionais foi formado um pouco antes do ocorrido, justamente no ano em que a primeira turma de licenciados em Química do estado de Goiás se forma. Observamos também que a maioria dos participantes foram formados nas décadas de 2000 e 2010, 86% do total.

Além dessas informações, buscou-se saber qual foi a instituição de ensino em que o docente se formou, como mostra a Figura 1.

 


Figura 1. Instituição de Ensino Superior na qual o professor foi formado (fonte: dados da pesquisa - questionários)

 

Os dados nos mostram que a formação dos participantes ficou concentrada em algumas IES, vinte e seis (59,1%) professores foram formados pela Universidade Federal de Goiás (UFG), o que é coerente, uma vez que esta foi a primeira IES a ofertar o curso de licenciatura em Química no estado de Goiás e, por alguns anos, até 1996, foi a única IES a ofertar esse curso, além disso, ela está localizada na cidade de Goiânia, capital do estado de Goiás.13 As outras duas IES, com maiores números de formandos, são a Universidade Estadual de Goiás (UEG), com cinco (11,4%) e a Pontifícia Universidade Católica (PUC), com quatro (9,1%) do total dos participantes. Essas IES foram as primeiras que ofertaram o curso de licenciatura em Química no estado de Goiás depois da UFG, o que contribui, em parte, para esses números. Outro fator é a localização dessas IES, a PUC está localizada em Goiânia e a UEG em Anápolis, uma cidade próxima à capital.

Outros professores foram formados por IES que possuem cursos mais recentes de formação de professores, como os Institutos Federais (IF), os quais passaram a ofertar licenciatura em Química somente após a publicação do Decreto No. 6.095 de 2007 e, especificamente, os dois campi, Rio Verde e Iporá, pelos quais os professores participantes foram formados, começaram suas atividades em 2010 e 2011, respectivamente.14 Isso justifica, em parte, o número pequeno de formandos por essas IES; outro fator é a localização dos IF, pois estão localizados no interior do estado, embora a pesquisa fosse direcionada aos professores que atuam em Goiânia.

Dois professores foram formados por IES privadas, cujos cursos foram extintos nos últimos anos, a Uni-Anhanguera e a UniEvangélica. Outros quatro professores foram formados em IES que não estão localizadas no estado de Goiás e sim próximas, sendo duas no Distrito Federal e uma no estado de Minas Gerais. Importante destacar que nas análises dos questionários em relação à formação docente, as respostas dos quatro participantes formados em outros estados não foram consideradas, portanto, foram analisadas 40 respostas. No entanto, na análise da atuação docente, todas as 44 respostas foram consideradas.

Além da IES na qual o professor foi formado, procuramos saber, o tempo de atuação dos professores na Educação Básica e encontramos que 4 docentes atuam há menos de cinco anos, 8 entre cinco e dez anos, 24 entre dez e vinte anos e 8 a mais de vinte anos. Observamos que a maioria dos participantes atua na Educação Básica há muitos anos, principalmente entre 10 e 20 anos, são, portanto, professores experientes, que construíram suas carreiras após a ocorrência do acidente com o Césio 137. Isso reforça a importância e a necessidade deles terem tido uma formação inicial, durante a graduação, que abordasse a temática radioatividade, uma vez que, entre outras coisas, todos os professores também responderam que ministram ou já ministraram esse conteúdo em diversas séries da Educação Básica, sendo trabalhado desde o Ensino Fundamental, a partir do oitavo ano, até a terceira série do Ensino Médio, além de ser revisto nos cursos preparatórios para o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e processos seletivos. Ratificamos, assim, a relevância dessa temática para a formação dos professores de Química, especialmente no estado de Goiás.

As influências da formação inicial em relação à temática radioatividade na atuação docente dos professores de Química da Educação Básica

Para compreendermos a influência da formação inicial dos professores na ação docente em relação à radioatividade, primeiramente, vamos compreender como foi essa formação dos licenciados. De todos os respondentes do questionário, formados em Goiás, ou seja, 40 professores, 19 disseram que os conteúdos relacionados à temática radioatividade não foram abordados durante o curso de licenciatura em Química, e 21 responderam que foram abordados, porém estes últimos afirmaram que a abordagem ocorreu em disciplinas gerais, ou seja, os conteúdos foram trabalhados como um tópico, dentro de um universo maior de assuntos estudados. A Figura 2 apresenta os conteúdos citados pelos professores, em relação à temática radioatividade, abordados pelos docentes das IES.

 


Figura 2. Conteúdos sobre radioatividade abordados pelos professores da graduação (fonte: dados da pesquisa - questionários)

 

Como mostra a Figura 2, a maioria dos respondentes afirmou que foram trabalhados principalmente conteúdos básicos, como o núcleo atômico, emissões radioativas, decaimento, tempo de meia-vida dos radioisótopos, reações nucleares de fissão e fusão e aplicações da radioatividade, em detrimento de outras questões, como por exemplo, efeitos biológicos da radiação, impactos ambientais, discussões sobre acidentes nucleares e o acidente radiológico de Goiânia. Essas questões são importantes, principalmente quando se pretende propiciar ao aluno uma formação ampla, crítica, reflexiva, pautada pelo viés da alfabetização científica. Nas palavras de Rosa et al.15 o ensino de Química "[...] representa a caracterização de uma linguagem científica, construída socialmente para explicar as relações e os fenômenos do mundo, cujos conceitos são transpostos didaticamente em diferentes enfoques e metodologias", quando se pretende alfabetizar cientificamente os indivíduos.

Ensino este que, de acordo com nossas análises, não vem sendo desenvolvido na sua plenitude nos cursos de licenciatura em Química, no estado de Goiás. Uma dessas evidências é a abordagem do acidente com o Césio 137, pois, conforme mostra a Figura 2, somente dez (47,6%) dos respondentes que estudaram a temática radioatividade, afirmaram ter estudado sobre o acidente durante a sua graduação. Dessa forma, entendemos que, de modo geral, nesses cursos de licenciatura "[...] os conteúdos são desenvolvidos de forma descontextualizada da realidade do mundo cotidiano dos alunos",16 não cumprindo um dos seus objetivos que deveria ser o estabelecimento da relação entre o conhecimento químico e os fatos que fazem parte da história e da realidade local, afinal, o conteúdo programático deve ser buscado na realidade de quem se pretende ensinar,17 sendo importante que "[...] os professores selecionem e ensinem conteúdos significativos" aos alunos.18

Isto posto, concordamos com Almeida et al.19 que é "[...] importante que os conteúdos escolares estejam articulados à realidade objetiva dos estudantes e às possibilidades de entendimento do mundo em geral", logo, a compreensão dos fatos locais, como o acidente radiológico, contribui também com a compreensão dos fatos mundiais envolvendo conhecimentos científicos. Nas palavras de Freire20 "[...] o regional emerge do local tal qual o nacional surge do regional e o continental do nacional [...]. Assim como é errado ficar aderido ao local, perdendo-se a visão do todo, errado é também pairar sobre o todo, sem referência ao local de onde se veio".

Diante disso, ratificamos que a realidade local possui características que enriquecem a formação do licenciando por meio de discussões que inter-relacionam o conhecimento químico com o cotidiano sócio-histórico dos alunos, como é o caso do acidente radiológico ocorrido em Goiânia com uma fonte de Césio 137. Mas, aparentemente, essa realidade não vem sendo considerada no processo de formação dos licenciandos, pois somente quatro professores afirmaram que fizeram visita a Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), local onde estão armazenados os rejeitos do acidente radiológico com o Césio 137. Em relação à abordagem dada pelo professor ao ensinar o conteúdo durante a formação inicial, temos que quatorze professores, afirmaram que o conteúdo foi trabalhado somente com aulas expositivas de forma tradicional, cinco professores afirmaram que o conteúdo foi trabalhado de forma contextualizada, e outros cinco professores afirmaram que foram trabalhados filmes e documentários sobre radioatividade/radiação/Césio 137.

Ao analisarmos os dados, observamos que quatorze dos vinte e um participantes que estudaram conteúdos relacionados à temática radioatividade, durante a sua formação inicial, afirmaram que os professores formadores trabalharam estes conteúdos de forma tradicional e somente com aulas expositivas. Tal fato configura-se como um problema, pois essa forma de abordagem geralmente está relacionada a um ensino baseado no modelo transmissão-recepção, acrítico, no qual o professor expõe o conteúdo, sem problematizá-lo, sem discuti-lo, sem contextualizá-lo com os alunos e estes passivamente, como se fossem tábulas rasas, incorporam o que foi dito pelo professor sem refletir sobre os conceitos ensinados.1,17,21

Desse modo, concordamos com Freire22 quando ele diz que "[...] ensinar não se esgota no tratamento do objeto ou do conteúdo, superficialmente feito", e sim, deve ser aprofundado e propiciar ao aluno apreendê-lo para posteriormente ensiná-lo, uma vez que "[...] aprender precedeu ensinar".22 Importante considerarmos que no processo de ensino e aprendizagem um elemento importante é a seleção dos conteúdos e "a forma como são realizadas a seleção de conteúdos e as propostas e condução das atividades são determinantes na aprendizagem".23

Assim, o professor formador deve procurar trabalhar além dos conhecimentos científicos, também as questões sociais, econômicas, políticas, ambientais e a realidade local, imbricadas nesses conhecimentos e também abordá-los de uma forma problematizadora, na qual haja discussão, contextualização, propiciando ao aluno refletir sobre tais conteúdos, para que eles sejam capazes de se apropriarem do conhecimento científico, haja vista que "o aluno conhece na medida em que, apreendendo a compreensão profunda do conteúdo ensinado, o aprende. Aprender o conteúdo passa pela prévia apreensão do mesmo".24 Dessa forma, seria importante uma formação nessa perspectiva, nas palavras de Schnetzler e Souza1 "a docência, portanto, além da capacitação científica, exige o domínio de práticas de ensino e de aprendizagem consideradas no âmbito da ciência, da cultura e da sociedade", domínio esse que possibilitaria ao licenciado fazer uma discussão também problematizadora na Educação Básica, propiciando aos alunos a capacidade de utilizar o conhecimento científico para atuar na sociedade e transformá-la para melhor. Ainda nesse viés, Salgado25 compartilha uma experiência exitosa desenvolvida no curso de licenciatura em Química da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), ao trabalhar a disciplina Radioquímica, articulando os conhecimentos pedagógico e científico, propiciando ao licenciando uma formação que vai ao encontro da formação defendida pelos pesquisadores da área de Ensino de Química. A autora conduz a disciplina utilizando várias estratégias para o desenvolvimento das atividades didáticas, tanto individuais quanto coletivas, em que os conteúdos são trabalhados a partir de reportagens, artigos científicos, livros específicos sobre o assunto, aulas experimentais, construção de material didático, colocando sempre o licenciando como protagonista do processo.

Entretanto, a maioria dos professores formados pelas IES do estado de Goiás não teve essa formação almejada e sim, uma formação deficitária em relação à temática radioatividade, uma vez que esta foi trabalhada de forma tradicional, descontextualizada e focada em alguns conteúdos apenas, deixando de fazer discussões importantes. Isso evidencia que esses cursos deixam lacunas na formação do professor, tanto é que quatorze dos vinte e um professores que estudaram sobre radioatividade em sua formação inicial, ao serem questionados se a formação oferecida aos licenciados pela instituição na qual foram formados foi adequada em relação à temática radioatividade e ao acidente radiológico ocorrido em Goiânia, responderam conforme alguns excertos destacados a seguir.

P1 - "Não. Porque no meu caso, não tivemos informações além das apresentadas nos livros didáticos. Também, tivemos apenas informações sobre estes pontos e não um aprofundamento no assunto".

P27 - "Faltou destacar o contexto histórico e aprofundar na questão da ausência de conhecimento técnico na época".

P28 - "Não, pois, não há uma disciplina específica. Acredito que uma formação mínima deveria ser de pelo menos um semestre".

P30 - "Não, há um grande déficit sobre os conceitos de radioatividade na graduação. Os conceitos de transmutação atômica, leis de Soddy, emissões radioativas, não são abordados de forma satisfatória para suprir esse déficit".

P35 - "Não considerei adequada, pois faltou contextualizar, faltou abordagens sociais, políticas, econômicas e até mesmo questões ambientais e de saúde que poderia trabalhar de maneira interdisciplinar não foi trabalhado, lembro que tínhamos a disciplina Bioquímica que poderia trabalhar de forma interdisciplinar".

P38 - "Não. Quando o assunto foi abordado, na grande maioria das vezes fez referências aos conceitos básicos, sem contextualização".

P42 - "Nunca. Quando sai da universidade, eu estava crua em relação a esse conceito de radioatividade. Na universidade melhorou um pouco o conteúdo prévio que eu já possuía do ensino médio. Quando tive que ministrar a primeira vez, eu mal conseguia avançar do geral e tinha muita insegurança sobre o tema radioatividade, principalmente em relação ao próprio acidente do Césio".

P44 - "Não. Acredito que toda ementa do curso de Química, principalmente a licenciatura, deveria contemplar um módulo/semestre de história da ciência e especificamente da Química. O contexto histórico é crucial para que o entendimento dos conceitos seja melhor compreendido. Além é claro da história da Química, uma abordagem específica sobre química e física nuclear é de extrema necessidade, haja vista que no Ensino Médio, e não somente, a história dos acidentes radioativos é assunto de interesse não somente dos professores mas também dos alunos, sem contar que é um assunto que desperta curiosidade e em se tratando de Goiânia, somos "privilegiados" por termos um belíssimo laboratório de física nuclear na CNEN, que atende ao público tanto para estudo quanto para visitação".

Há diversos problemas de formação, como apontados pelos professores e eles vão ao encontro das críticas que vêm sendo feitas há alguns anos pelos pesquisadores da área de Ensino de Ciências, indicando que é necessário melhorar a formação inicial dos professores da Educação Básica.26 Segundo Miranda et al.27 "debates que se referem à formação inicial de professores de química [...] ressaltam a primordialidade e urgência em repensar esse processo, que parece não estar sendo suficiente para amparar os futuros professores com uma formação sólida e apropriada à realidade escolar".

Diante do exposto, é preciso que os docentes das IES compreendam que é importante mudar, melhorando o ensino que está posto em relação à formação de professores no que concerne à temática radioatividade, pois "[...] é mudando o presente que a gente fabrica o futuro, por isso, então, a história é possibilidade e não determinação".24 Em outras palavras, não é porque temos uma formação docente que apresenta lacunas que temos que continuar assim e, segundo Chassot28 é preciso que tenhamos "[...] um ensino que busque cada vez mais propiciar que os conteúdos que se emprega para fazê-lo sejam um instrumento de leitura da realidade e facilitadora da aquisição de uma visão crítica da mesma para modificá-la para melhor [...]", buscando assim, formar "cidadãs e cidadãos críticos", para que, dessa forma, se propicie uma formação capaz de, entre outras coisas, alfabetizar cientificamente os alunos.

Essa formação deficitária reverbera em diversas dificuldades apresentadas pelos professores durante a sua atuação docente, quando estes precisam ministrar aulas sobre a temática, como foi apontado por alguns dos participantes da pesquisa que estudaram radioatividade, durante a graduação, como mostrado nos trechos a seguir.

P7 - "Pouco material de divulgação para descarte de resíduos radiológicos no Brasil".

P28 - "Encontrar uma forma de torná-lo atrativo sem mantê-lo místico. Pois, o senso comum da temática é carregado de influências de filmes e histórias que nem sempre são pautados nos conceitos científicos".

P30 - "Devido à ausência da abordagem efetiva do conceito na graduação, exigiu estudo dos conceitos de forma paralela, não que estudar seja o problema, mas o estudo individual é distinto do estudo realizado em uma disciplina de um curso de graduação".

P34 - "Ter a vivência e a experiência prévia sobre o assunto, buscar tudo praticamente do zero é muito complicado, a visita a CNEN até hoje não consegui levar nenhuma turma, não sei como faz e nunca fui, aí está mais algo que deveria ocorrer no curso, a visita e a explicação de como levar suas turmas".

P35 - "Por incrível que pareça, a parte química".

Observamos que as dificuldades apontadas pelos professores da Educação Básica vão desde a compreensão do conteúdo até a melhor forma de abordá-lo com os alunos e compreendemos que tais questões poderiam ter sido sanadas, pelo menos em parte, na sua formação inicial no curso de graduação, se os conteúdos tivessem sido trabalhados de forma aprofundada, numa perspectiva problematizadora e abordados em diferentes aspectos pelos professores das IES e, como já discutimos, entendemos que isso não aconteceu.

Após essas análises, ousamos dizer que não há uma acentuada diferença, em termos de formação, entre os professores que não estudaram a radioatividade na graduação e aqueles que a estudaram de forma superficial e tradicional. Tal compreensão se justifica a partir das análises das respostas dos professores que não a estudaram, em relação às dificuldades apresentadas ao ministrar aulas sobre tal temática, pois são semelhantes às respostas daqueles que estudaram, como mostram os trechos a seguir.

P6 - "Explicar como as emissões podem atingir o ser humano e causar danos. Explicar a origem, o eleito que irá se transformar em radioativo e como esse processo é realizado".

P10 - "Estudantes com visões distorcidas sobre o fato".

P17 - "As maiores dificuldades foram encontrar materiais didáticos de Química com discussões aprofundadas sobre o ensino de radioatividade".

P21 - "Fontes confiáveis e a falta da disciplina na graduação".

P23 - "Precisei estudar pelos livros do Ensino Médio pois na literatura básica da graduação os assuntos eram muito pouco abordados".

P37 - "Explicar sobre detalhes do funcionamento de uma usina nuclear e consequências sociais e econômicas do acidente do césio".

A partir do exposto notamos que, independente se estudaram ou não a temática durante a sua formação inicial, os professores enfrentam dificuldades para ensinar tanto em relação ao conteúdo científico, quanto em relação aos outros aspectos envolvidos na temática. Torna-se necessário, então, que eles busquem uma formação complementar sozinhos, o que não é uma tarefa fácil, pois, como pontuado por eles, há falta de material didático que contemple o conteúdo e o acidente, de maneira satisfatória e aprofundada.

É importante destacarmos aqui que compreendemos que a formação inicial, que dura em média quatro anos, não consegue contemplar todos os conteúdos e abordá-los em diferentes aspectos, logo uma formação complementar é importante. No entanto, argumentamos que a abordagem sobre a temática radioatividade, contemplando o acidente radiológico, no caso específicos das IES do estado de Goiás, é relevante em dois sentidos. O primeiro refere-se à possibilidade de propiciar a compreensão de fatos ocorridos que têm relação com o contexto histórico e científico da Química o que, de certa forma, indica ao futuro professor caminhos para a contextualização do assunto. Em outro sentido, salientamos que o conteúdo relacionado à radioatividade não é apenas um conteúdo a contextualizar, mas também é componente da matriz curricular de Química na Educação Básica, estando presente nos documentos balizadores, como a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e, dessa forma, precisa ser componente formativo da licenciatura em Química.

Isto posto, vamos compreender como esses professores trabalham(ram) o conteúdo radioatividade com seus alunos da Educação Básica e as possíveis implicações da formação deficitária que receberam para sua atuação docente. A Figura 3 mostra quais os conteúdos/conceitos foram trabalhados pelos professores com os seus alunos.

 


Figura 3. Conteúdos/conceitos abordados pelos professores da Educação Básica sobre radioatividade (fonte: dados da pesquisa - questionários)

 

Analisando a Figura 3 percebemos que a maioria dos professores, ao trabalharem a temática, deram ênfase aos principais conceitos científicos presentes no tema, o que é positivo, pois propiciaram aos alunos a abordagem dos conceitos básicos presentes na temática. Entretanto, observamos que alguns aspectos importantes, como as questões ambientais, os efeitos biológicos da radiação e os resíduos radioativos, foram menos abordados, mostrando que a "[...] preocupação saliente é a formação nos conteúdos da química, não importando o contexto em que eles poderiam ser significativos [...]".6

Podemos inferir, em parte, que essa preferência por trabalhar os conceitos científicos, para os docentes que foram formados por IES do estado de Goiás, é reflexo da formação deficitária que esses professores tiveram, pois, ao não ter estudado as outras questões, o professor não se sente preparado para discuti-las com seus alunos, como evidenciado pela resposta de um professor (P4), o qual escreve que teve dificuldade na "explicação de interações biológicas", pois, como vimos, este aspecto foi negligenciado pelos professores das IES. Tal destaque se justifica, pois, essas interações não são abordadas nos livros de Química que geralmente são utilizados pelos professores como material didático, logo, se ele não teve uma formação que lhe dê embasamento teórico sobre tais interações, ele não se sente preparado para explicá-las na Educação Básica. Além disso, é muito importante que tais discussões sejam realizadas, pois as interações biológicas da radiação foram responsáveis pelas mortes e sequelas das vítimas do acidente ocorrido em Goiânia. Assim, concordamos com Mourão e Ghedin3 ao afirmarem que "o currículo para formar professores de química deve provir seus objetivos das necessidades dos estudantes e da sociedade".

Falando especificamente sobre o acidente com o Césio 137, dos 44 participantes, 43 responderam que discutiram o acidente durante as suas aulas abordando-o em diferentes aspectos, como econômico (12 participantes), político (16 participantes), ambiental (30 participantes), social (31 participantes) e químico/conhecimento científico (42 participantes).

Percebemos que, assim como na abordagem da temática, como um todo, ao falar do acidente, o professor também trabalhou apenas o conhecimento científico, sem relacioná-lo com outros aspectos, principalmente o político e o econômico, que também estão imbricados na ocorrência e nas consequências do acidente com o Césio 137, e se tivesse feito essa relação, poderia ter propiciado aos alunos uma melhor compreensão e entendimento do acidente ocorrido. Entendemos que a ênfase dada pelos professores também é reflexo (ou implicação) da (não)formação que tiveram durante a sua graduação em relação à temática radioatividade, uma vez que, para aqueles que a estudaram, somente dez, afirmaram ter estudado no curso de graduação sobre o acidente, sendo que o conteúdo foi trabalhado de forma tradicional e com foco no conhecimento científico e aqueles que não estudaram, procuraram aprender sozinhos sobre o acidente estudando em livros didáticos, assistindo filmes e documentários. Tal abordagem evidencia a importância de os professores disporem de "uma amplitude de saberes e fazeres docentes essenciais ao seu ofício".29

Os trechos a seguir são respostas dos professores quando perguntados se o fato de não terem estudado sobre radioatividade, na graduação, prejudicou a sua atuação docente e ratificam essa aprendizagem solitária dos professores.

P13 - "Sim, tive que estudar mais, e com certeza as primeiras aulas não foram tão boas".

P39 - "Eu imagino que, se eu tivesse estudado antes sobre o assunto, teria facilitado o aperfeiçoamento e não o início tardio sobre a aprendizagem de algo que nunca tinha visto antes. Esse tema deveria constar da matriz curricular de todas as escolas brasileiras e principalmente as goianas em razão da ocorrência do acidente radiológico na capital do estado de Goiás".

P15 - "Não! Pois fui atrás para aprender sozinho".

P19 - "Não, porque pesquisei o conteúdo, estudei por conta própria".

P6 - "Não, porque fui atrás do conhecimento sozinha".

P8 - "Não. Eu pesquisei, aprendi e passei para meus alunos".

P37 - "Não, porém se o assunto tivesse sido abordado na graduação, talvez eu adquirisse mais elementos que contribuíssem para a aprendizagem do meu aluno".

Pelos trechos destacados, fica evidente que os professores tiveram que aprender sozinhos os conteúdos para, posteriormente, ensiná-los. Embora alguns dos professores tenham afirmado que a sua atuação docente não foi prejudicada pelo fato de não ter estudado a radioatividade na graduação, já que eles estudaram, pesquisaram e aprenderam sozinhos, sabemos que é muito diferente você aprender determinado assunto sozinho em comparação a ter a oportunidade de discuti-lo sob diferentes aspectos com outras pessoas, como o professor da IES e os colegas de curso. Nas palavras de Freire e Shor,30 "através do diálogo crítico sobre um texto ou um momento da sociedade, tentamos penetrá-la, desvendá-la, ver as razões pelas quais ela é como é, o contexto político e histórico em que se insere. Isto é para mim um ato de conhecimento [...]".

Tais palavras mostram a importância das discussões realizadas durante a formação docente, principalmente neste caso que está relacionado com o acidente com o Césio 137, o qual está envolvido por uma série de questões que vão muito além do conhecimento científico, exigindo do professor uma reflexão crítica sobre os fatos que levaram à ocorrência do acidente, as providências tomadas e as consequências geradas em vários âmbitos, o que vai ao encontro também da resposta do professor P37.

Entendemos que, ao não terem a oportunidade de discutir e problematizar o acidente, durante a sua graduação, os professores também não o fazem na Educação Básica, ficando, assim, presos às mesmas questões que foram abordadas nos materiais que eles utilizaram. Dessa forma, compreendemos que nem o professor foi alfabetizado cientificamente em relação à temática radioatividade e nem foi capaz de propiciar essa alfabetização a seus alunos. Logo, concordamos com Maldaner6 ao afirmar que o círculo vicioso é mantido pelos professores, que usualmente recorrem aos materiais que eles estudaram quando cursaram o ensino médio, como livros didáticos, anotações e apostilas, quando "ao saírem dos cursos de licenciatura, sem terem problematizado o conhecimento científico em que vão atuar e nem o ensino desse conhecimento na escola [...].6

Após conhecermos os conteúdos/conceitos trabalhados e os aspectos abordados, vamos compreender quais recursos metodológicos foram utilizados pelos professores e a forma como o acidente radiológico de Goiânia foi trabalhado na Educação Básica. As respostas mostraram que os recursos utilizados foram: maquete, teatro e manifestação na rua (um), filme, livro e documentário (um), seminário (um), aula expositiva, quadro e giz (um), visita ao Centro Regional de Ciências Nucleares (CRCN)/CNEN (18), fotos que retratam o acidente (22), documentários (26), filmes (24) e slides (24).

A Figura 4 mostra a forma como o acidente foi abordado durante as aulas da Educação Básica.

 


Figura 4. A forma como o acidente com o Césio 137 foi abordado durante as aulas sobre radioatividade (fonte: dados da pesquisa - questionários)

 

Observamos que os professores afirmam que utilizaram diversos recursos para abordar o acidente, principalmente filmes, documentários, slides, fotos e visita à CNEN. Além disso, como mostra a Figura 4, quatorze professores responderam que abordaram o acidente de forma contextualizada, onze disseram que ele foi amplamente discutido com os alunos, um afirma que trabalhou o assunto por meio de um projeto e um disse que promoveu discussão sobre questões psíquicas e sociais. A utilização de tais recursos, juntamente com essas abordagens e discussões é positiva, pois tendem a despertar o interesse e a curiosidade dos alunos o que pode tornar as aulas mais atrativas, saindo de um ensino tradicional com aulas expositivas.

Entretanto, é preciso lembrarmos que estes mesmos professores afirmaram, ao responderem à questão "Sob quais aspectos você abordou o acidente?", que trabalharam principalmente o conhecimento científico, em detrimento de outros aspectos, como discutido anteriormente. Então, mesmo sendo ferramentas com potencial para contribuir com o processo de ensino e aprendizagem, esses recursos e essas abordagens só serão efetivas se o professor for além dos conceitos básicos, discutir o acidente sob diferentes perspectivas, bem como conduzir as suas aulas de forma problematizadora contribuindo para alfabetizar cientificamente os alunos da Educação Básica, uma vez que, segundo Chassot,28 "a nossa responsabilidade maior no ensinar Ciências é procurar que nossos alunos e alunas se transformem, com o ensino que fazemos, em homens e mulheres mais críticos", como se espera quando esse ensinar é pautado pelo viés da alfabetização científica.

Um outro reflexo de que essa formação não é propiciada aos alunos é mostrado na Figura 4, quando dez professores afirmaram que abordaram o acidente com o Césio 137 apenas como exemplo do uso inadequado de fontes radioativas. Tal abordagem evidencia que não houve problematização, contextualização e nem discussões amplas sobre o ocorrido. É importante destacarmos aqui que, de acordo com Chassot,28 o lócus para realizar a alfabetização científica é a Educação Básica e, para que essa alfabetização se concretize, segundo o autor, é essencial que os professores e professoras desse nível de ensino sejam sujeitos ativos na construção de um currículo diferenciado, com escolha criteriosa dos conteúdos e da forma como eles serão trabalhados com os alunos, para que realmente se consigam formar cidadãos e cidadãs críticos e atuantes na sociedade. O que só será possível se estes professores tiverem uma formação com esse viés.

Corroborando com essa discussão, na visão dos professores, os conhecimentos adquiridos durante a formação inicial, na graduação em Química não foram suficientes para balizar as suas aulas na Educação Básica, como mostram os trechos a seguir, que são respostas de alguns dos professores que estudaram sobre radioatividade em relação a esse questionamento feito em uma das questões do questionário.

P2 - "Não! Como disse anteriormente, foram bastante superficiais. O que mais aprendi sobre radioatividade, aprendi lendo e assistindo a documentários".

P20 - "Não, porém o estudo contínuo complementou a formação".

P41 - "Não foram suficientes".

P42 - "Os conhecimentos adquiridos durante minha graduação serviram como ferramentas importantes para que eu compreendesse melhor sobre o processo da radioatividade. Porém, se colocarmos em porcentagem 70% do que sei hoje, foi devido aos vários anos de docência e idas a CNEN".

P44 - "Jamais, nem de perto. O conhecimento não serviu para quase nada, foi necessário muito estudo posterior para poder falar com responsabilidade sobre o assunto".

Tais respostas denotam novamente que os professores, de modo geral, reconhecem que a formação inicial que receberam em relação à temática radioatividade não foi suficiente nem para eles próprios compreenderem os fatos que levaram à ocorrência e às consequências geradas pelo acidente e nem para balizar a sua atuação docente, pois deixam claro que tiveram que buscar uma formação complementar fora das IES.

Diante do exposto, é praticamente unânime entre os participantes da pesquisa a necessidade de as IES do estado de Goiás ofertarem disciplinas específicas sobre radioatividade que contemplem, dentre outras coisas, o acidente radiológico com o Césio 137, como afirmado por 39 dos 44 participantes. O Quadro 1 traz algumas dessas respostas.

 

 

Pelas respostas apresentadas, percebemos que, independentemente de o professor haver estudado ou não, durante a sua formação inicial, a temática Radioatividade, eles defendem e acreditam ser importante a presença de uma disciplina sobre tal temática nos cursos de formação de professores de Química. Apesar das justificativas serem diversas, todas apontam na mesma direção, o não silenciamento do acidente e da história do estado de Goiás, bem como a necessidade de acessar os conhecimentos, ainda na graduação, para ter condições de ministrar aulas sobre a temática para seus alunos. Ratifica-se tal perspectiva, uma vez que esse conteúdo está presente na matriz curricular da Educação Básica, o que comprova a necessidade e a importância de os professores compreenderem melhor tanto o conteúdo científico quanto o acidente ocorrido, tendo a oportunidade de refletir sobre eles e "desmitificar" a ideia dos alunos de que radioatividade é algo perigoso e maléfico para o ser humano.

 

CONCLUSÃO

A partir das análises das respostas ao questionário aplicado, as evidências mostram que, de modo geral, os professores formados em Química nas IES do estado de Goiás não têm oportunidades de aprender e discutir, durante a sua graduação, o conteúdo radioatividade e o acidente radiológico com o Césio 137. E, como foi apontado por vários professores, quando existe a abordagem sobre o tema, não necessariamente contempla os pilares de uma formação ampla e sólida, ficando focada apenas no conteúdo científico, e não abordando, ou abordando de forma superficial, outras questões inerentes à temática e que também são de suma importância para a formação de um profissional que irá atuar prioritariamente na Educação Básica. Logo, argumentamos que há lacunas formativas e que estas reverberam na atuação docente, pois entendemos que os professores formados a partir dessas propostas pedagógicas não se encontram preparados para desenvolver um ensino de Ciências contextualizado, reflexivo, crítico e capaz de alfabetizar cientificamente os alunos da Educação Básica em relação à temática radioatividade.

Embora a pesquisa tenha sido desenvolvida no âmbito do estado de Goiás, nossos resultados sinalizam aspectos que podem contribuir para ampliar a discussão, junto a outros pesquisadores, sobre a abordagem de radioatividade em cursos de licenciatura em Química, tanto na perspectiva de compor disciplinas e/ou projetos formativos quanto na perspectiva de ser abordada em disciplinas de caráter específico. A pesquisa aqui apresentada também denota um aspecto importante da história de Goiás, especificamente de Goiânia, que os jovens estudantes de todos os níveis desconhecem por não o terem vivenciado. A retomada de tal contexto é importante e necessária para que a Ciência, nesse caso a Ciência Química, possa contribuir na construção de conhecimentos que permitam rever o passado, viver o presente e projetar o futuro considerando evidências científicas, sociais e históricas já estabelecidas.

 

MATERIAL SUPLEMENTAR

O questionário utilizado nesta pesquisa está disponível em http://quimicanova.sbq.org.br, na forma de arquivo PDF, com acesso livre.

 

REFERÊNCIAS

1. Schnetzler, R. P.; Souza, T. A.; Quim. Nova 2019, 42, 947. [Crossref]

2. Silva; W. D. A.; Carneiro, C. C. B. S.; Revista Eletrônica Científica Ensino Interdisciplinar 2022, 8, 263. [Crossref]

3. Mourão, I. C.; Ghedin, E.; Educação em Perspectiva 2019, 10, 1. [Crossref]

4. Ghedin, E. L.; Maciel, C. C. M.; Silva, A. M.; Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação 2021, 16, 881. [Crossref]

5. Garcia, I. T. S.; Kruger, V.; Quim. Nova 2009, 32, 2218. [Link] acessado em Maio 2024

6. Maldaner, O. A.; A Formação Inicial e Continuada de Professores de Química Professor/Pesquisador, 4ª ed.; Unijuí: Ijuí, 2020.

7. Schnetzler, R. P.; Nieves, K.; Campos, T.; Resumos do 6º Encontro Nacional de Pesquisa em Educação em Ciência, Florianópolis, Brasil, 2007. [https://abrapec.com/atas_enpec/vienpec/orais0.html] acessado em Maio 2024

8. Marcon, D.; Graça, A. B. S.; Nascimento, J. V.; Revista Brasileira de Educação Física e Esporte 2013, 27, 633. [Crossref]

9. Dias, M. S.; Fernandes, L. S.; Campos, A. F.; Revista Dynamis 2023, 29, 192. [Link] acessado em Maio 2024

10. Silva, G. F.; Corrêa, R. G.; Quadros, A. L.; Quim. Nova 2022, 45, 466. [Crossref]

11. Marconi, M. A.; Lakatos, E. M.; Fundamentos da Metodologia Científica, 5ª ed.; Atlas: São Paulo, 2003.

12. Moraes, R.; Galiazzi, M. C.; Análise Textual Discursiva, 3ª ed.; Unijuí: Ijuí, 2020.

13. Mesquita, N. A. S.; Cardoso, T. M. G.; Soares, M. H. F. B.; Quim. Nova 2013, 36, 195. [Link] acessado em Maio 2024

14. Alves, D. A.; Mesquita, N. A. S.; Rev. Virtual Quim. 2020, 12, 1423. [Crossref]

15. Rosa, T. F.; Lorenzetti, L.; Lambach, M.; Educação Química en Punto de Vista 2019, 3, 1. [Crossref]

16. Gresczyscayn, M. C. C.; Camargo Filho, P. S.; Monteiro, E. L.; Revista Brasileira de Ensino de Ciência e Tecnologia 2018, 11, 192. [Crossref]

17. Freire, P.; Pedagogia do Oprimido, 50ª ed.; Paz e Terra: Rio de Janeiro, 2011.

18. Moreira, A. F. B.; Ensaio: Avaliação e Políticas Públicas em Educação 2021, 29, 35. [Crossref]

19. Almeida, C.; Boff, E. T. O.; Lopes, A. R. L. V.; Roteiro 2020, 45, 1. [Crossref]

20. Freire, P.; Pedagogia da Esperança: Um Reencontro com a Pedagogia do Oprimido, 4ª ed.; Paz e Terra: Rio de Janeiro, 1997.

21. Francisco Junior, W. E.; Ferreira, L. H.; Hartwig, D. R.; Quim. Nova Esc. 2008, 30, 34. [Link] acessado em Maio 2024

22. Freire, P.; Pedagogia da Autonomia: Saberes Necessários à Prática Educativa, 39ª ed.; Paz e Terra: São Paulo, 2011.

23. Teixeira, O. P. B.; Ciência & Educação(Bauru) 2019, 25, 851. [Crossref]

24. Freire, P.; A Educação na Cidade, 7ª ed.; Cortez: São Paulo, 2006.

25. Salgado, T. D. W.; Texto FCC 2015, 47, 47. [Link] acessado em Maio 2024

26. Oliveira, H. L. G.; Leiro, A. C. R.; Pro-Posições 2019, 30, 1. [Crossref]

27. Miranda, M. S.; Suart, R. C.; Marcondes, M. E. R.; Revista Ensaio 2015, 17, 555. [Crossref]

28. Chassot, A.; Alfabetização Científica: Questões e Desafios para a Educação, 8ª ed.; Unijuí: Ijuí, 2018.

29. Slaviero, A.; Ponzoni, A. S.; Pazinato, M. S.; Quim. Nova 2023, 46, 931. [Crossref]

30. Freire, P.; Shor, I.; Medo e Ousadia - O Cotidiano do Professor, 25ª ed.; Paz e Terra: Rio de Janeiro, 1986.

On-line version ISSN 1678-7064 Printed version ISSN 0100-4042
Qu�mica Nova
Publica��es da Sociedade Brasileira de Qu�mica
Caixa Postal: 26037 05513-970 S�o Paulo - SP
Tel/Fax: +55.11.3032.2299/+55.11.3814.3602
Free access

GN1