JBCS



11:35, qui nov 21

Acesso Aberto/TP




Revisão


Design bioinspirado de corantes
Bioinspired design of dyes

Paula Homem-de-MelloI,*; Ana Clara Gonzalez de SouzaI; Diêgo U. MeloI; Gabriel S. MolI; Jhonathan R. De SouzaI; Leonardo M. CarneiroI; Maíra G. NobregaI; Mateus ZanottoI; Raissa Lohanna G. Q. CorrêaI; Hueder P. M. de OliveiraI; Fernando H. BartoloniI; Yuri A. AotoII; Mauricio D. Coutinho-NetoI; Ednilsom OrestesI,III

I. Centro de Ciências Naturais e Humanas, Universidade Federal do ABC, 09210-580 Santo André - SP, Brasil
II. Centro de Matemática, Computação e Cognição (CMCC), Universidade Federal do ABC, 09210-580 Santo André - SP, Brasil
III. Departamento de Ciências Exatas, Escola de Engenharia Industrial Metalúrgica de Volta Redonda, Universidade Federal Fluminense, 27255-125 Volta Redonda - RJ, Brasil

Recebido: 13/03/2024
Aceito: 28/06/2024
Publicado online: 13/08/2024

Endereço para correspondência

*e-mail: paula.mello@ufabc.edu.br

RESUMO

The history of the discovery, use, and development of dyes is closely linked to the history of humanity itself. Among the first records of human civilization are cave paintings made from, e.g., fruits, plants, minerals, and insects. Over the centuries, using different techniques, colors have been given to all types of materials and products, from clothing to food. The chemicals responsible for colors are dyes - a vast collection of molecules of the most varied compositions, but which have in common the absorption of light within the visible window of the electromagnetic spectrum. This article aims not only to review the properties of some classes of natural dyes, their origins, and their applications but also to describe the various computational chemistry methods involved in designing new bio-inspired molecules.

Palavras-chave: natural dyes; bio-inspired design; computational chemistry; DFT; machine learning.

INTRODUÇÃO

Os corantes naturais têm diversas origens, tanto vegetal, quanto mineral e animal. Para além de dar cor, essas moléculas podem ter funções adicionais. Um exemplo clássico são as clorofilas, que participam do processo de conversão de luz solar em carboidratos nas plantas, processo conhecido como fotossíntese. As clorofilas contêm um cromóforo do tipo porfirinoide, que é responsável pela absorção de luz e fornecimento de elétron para o sistema fotossintético. Essa capacidade de transformar energia luminosa em energia química inspirou a utilização de porfirinas em células solares1,2 e como agentes em terapia fotodinâmica,3-5 por exemplo.

Além das porfirinas, a natureza se utiliza de diversos grupos cromofóricos, como veremos adiante. Assim, para desenvolver sistemas biomiméticos, i.e., inspirados em sistemas biológicos, seja em forma ou em função, é preciso entender os papéis desses diferentes corantes na natureza e seu mecanismo de ação. Esta é uma tarefa multidisciplinar, que exige aprofundar os conhecimentos de ciência básica sobre esses sistemas para desenvolver novas tecnologias. A área de química computacional tem ajudado nesse tipo de desenvolvimento, uma vez que permite explorar a estrutura e sua relação com as propriedades fotofísicas e fotoquímicas desses compostos, bem como desenhar novos compostos com propriedades mais adequadas à aplicação desejada.

A partir da composição química de uma molécula é possível obter a sua conformação espacial, a distribuição da densidade eletrônica e o momento de dipolo, propriedades importantes para prever a forma de interação com o meio (solvente, carreadores, membranas, eletrodos etc.). No caso dos corantes, é importante conhecer bem seu espectro de absorção eletrônica e como modificar a molécula para ajustar o espectro de forma que passe a absorver radiação em uma região desejada. Em princípio, todas essas propriedades podem ser obtidas a partir de cálculos baseados na Mecânica Quântica. No entanto, como pretendemos mostrar nessa revisão, a química computacional é em si uma área em pleno desenvolvimento e não existe um único caminho a ser trilhado no estudo de moléculas e materiais.

Uma vez que as limitações computacionais têm sido superadas dia a dia, novas estratégias vêm sendo desenvolvidas, seja para obter propriedades de maneira mais acurada, seja para estudar sistemas cada vez maiores. Assim, apresentamos aqui (i) uma perspectiva histórica dos métodos computacionais utilizados para obtenção dos espectros de absorção (dentre outras propriedades relevantes para o design de corantes); (ii) alguns estudos de caso para classes selecionadas de corantes naturais, visando mostrar como a química computacional tem complementado as demais áreas ao explorar as propriedades desses compostos; e, por fim, (iii) perspectivas de como essa sinergia pode levar ao desenvolvimento de novos corantes.

 

MÉTODOS COMPUTACIONAIS NA PREVISÃO DE PROPRIEDADES DE CORANTES

Moléculas orgânicas que possuem ligações químicas conjugadas podem apresentar absorção na região do UV-visível em decorrência de transições eletrônicas do tipo π-π* e n-π* envolvendo, majoritariamente, os orbitais de fronteira HOMO (do inglês, highest occupied molecular orbital) e LUMO (do inglês, lowest unoccupied molecular orbital), ou ainda entre orbitais moleculares próximos, como HOMO-1 e LUMO+1. A criação de modelos que descrevem essas transições eletrônicas remonta às primeiras décadas da mecânica quântica. O sistema de elétrons π serviu de base para que Erich Hückel desenvolvesse, na década de 1930, um modelo capaz de explicar propriedades únicas de moléculas com esta característica. Além de considerar somente os elétrons π deslocalizados, o método de Hückel também assume que seus orbitais moleculares (MO, da sigla em inglês, molecular orbital) são ortogonais àqueles dos elétrons σ, anulando as integrais de superposição, assim como são nulas as interações entre elétrons de carbonos não-adjacentes. Embora fosse um modelo bastante qualitativo, a resolução do sistema de equações lineares de tal método fornece as energias do HOMO e do LUMO, cuja diferença normalmente corresponde à transição eletrônica π-π*.6

Em 1963, Roald Hoffmann,7 no agora chamado método de Hückel estendido, os orbitais são representados por funções matemáticas específicas permitindo que seja calculada a interação entre átomos não-adjacentes. Esta complementação permitiu tratar moléculas não-planares e átomos diferentes do carbono indo até compostos inorgânicos.8 No entanto, apenas resultados qualitativos podem ser conseguidos incluindo aplicações diretas em corantes.9-11

Modelos desenvolvidos para a descrição de compostos específicos também foram criados, e um exemplo clássico é o modelo de Gouterman12 para a descrição do espectro eletrônico de absorção de uma porfirina livre (ou, em outras palavras, não complexada a um íon metálico). O espectro da porfirina livre possui duas bandas características, chamadas de banda de Soret e banda Q (detalhadas mais a frente), que estão relacionadas a uma forte transição ao segundo estado excitado e uma fraca transição ao primeiro estado excitado, respectivamente (Figura 1).

 


Figura 1. Níveis de energia e transições eletrônicas da porfirina livre

 

O entendimento dessas bandas proposto por Gouterman et al.12 é dado via o modelo dos quatro orbitais, no qual as bandas estão associadas a transições eletrônicas que ocorrem entre os orbitais moleculares de fronteira. Segundo ele, os orbitais HOMO e HOMO-1 de simetria a1u e a2u e os orbitais LUMO e LUMO+1 de simetria eg são utilizados para transição de elétrons na região do visível, de modo a promover dois estados excitados. Assim, o estado excitado de maior energia está relacionado à banda de Soret (transições de HOMO e HOMO-1 para LUMO+1), enquanto o estado excitado de menor energia está relacionado à banda Q (transições de HOMO e HOMO-1 para LUMO), conforme ilustrado na Figura 1. Como as transições são associadas aos orbitais π, mudanças na conjugação e na simetria alteram o espectro de absorção. Para alcançar propriedades ópticas desejadas é possível propor mudanças na estrutura eletrônica, como redução de um ou mais anéis pirrólicos, substituição do centro metálico e inserção de substituintes.

Um outro caminho tomado na primeira metade do século XX foi o método Hartree-Fock (HF) e diversos outros métodos de estrutura eletrônica, que buscam resolver, ainda que de forma aproximada, a Equação de Schrödinger. O Prof. Custódio13 apresenta uma forma simplificada de obter as equações de Hartree-Fock.

Apesar do sucesso, o método HF não está livre de limitações tanto químicas, como a ausência dos efeitos de correlação eletrônica, quanto práticas, como a dependência que o Hamiltoniano HF tem das funções de onda.14 Uma excelente revisão em português sobre funções de base foi publicada por Morgon e Custódio.15

Historicamente, duas vertentes teórico-metodológicas derivam do método HF, sendo mais apropriados para o estudo de corantes. Uma delas considera o método HF como ponto de partida para soluções mais acuradas da equação de Schrödinger ao incluir, de diferentes maneiras, parte dos efeitos de correlação eletrônica. São os chamados métodos pós-HF, como configuration interaction (CI), coupled cluster (CC), M ø ller-Plesset perturbation theory (MP) etc. Esses métodos se tornaram mais viáveis com o aumento da capacidade de processamento de supercomputadores.16

O método multi-configurational self-consistent field (MCSCF), em particular a variante CASSCF (complete active space self consistent field), é um método multiconfiguracional mais comumente aplicado nas simulações de química quântica, em situações de correlação forte, nas quais a aproximação do campo médio embutida no método Hartree-Fock não é apropriada. Ele apresenta custo computacional factível para sistemas de médio porte, sendo muitas vezes mais viável que métodos como o CC. Neste método, a função de onda total é construída como uma combinação linear de funções de onda mono-configuracionais (de configuração única). Essa combinação linear pode ser realizada usando-se determinantes de Slater diretamente, ou as chamadas de Funções de Configuração de Estado (configuration state functions, CSFs). Nestas funções, um conjunto de orbitais é selecionado para que configurações de excitação (arranjo/organização de elétrons) de um determinante de referência sejam formadas para compor a função de onda total. Para cada configuração, um coeficiente é associado, o qual indica qual o peso daquela configuração da função de onda total de um determinado estado eletrônico.

De maneira semelhante ao que é feito nos métodos pós-HF, pode-se partir de uma função de onda CASSCF e aprimorar a função de onda com método pós-CASSCF, como por exemplo, o CASPT2 (complete active space second order perturbation theory)17 e o NEVPT2 (N-electron valence perturbation theory).18 Estes métodos aplicam correções baseadas no método da perturbação na função de onda CAS a fim de melhorar seus resultados. Métodos como estes são denominados métodos multirreferenciais, pois constroem uma função de onda a partir de uma função de onda multiconfiguracional como referência. Uma vez que esses métodos são capazes de calcular propriedades de estados excitados (permitidos pela referência multiconfiguracional), tornam-se muito úteis no desenvolvimento dos estudos de fotofísica e fotoquímica molecular. Nos métodos multirreferenciais, a tarefa mais complexa e delicada é a escolha das configurações que irão compor a função de onda. Isso é realizado através da escolha de quais orbitais moleculares estarão presentes no espaço ativo e quais estarão envolvidos em configurações excitadas (veja o trabalho de Borin e de Araújo19 para mais detalhes e dicas).

Em outra vertente baseada em HF, estão os métodos semi-empíricos. Estes se baseiam na utilização de um conjunto mínimo de funções de base (STOs) e da substituição dos elétrons de caroço por funções parametrizadas com base em dados experimentais. O número de integrais de dois elétrons (4 índices) nos termos de Coulomb e Troca é drasticamente reduzido seguindo diferentes estratégias. John Pople e colaboradores,20 em 1965, propuseram ignorar completamente as integrais que representam a interação de dois elétrons em orbitais atômicos diferentes (complete neglect of differential overlap, CNDO). As integrais remanescentes, ou seja, de elétrons em orbitais iguais, tanto no mesmo átomo quanto em átomos diferentes, podem ser calculadas ou, como no modelo Parr-Pariser-Pople (PPP),21,22 parametrizadas com base em potenciais de ionização e afinidades eletrônicas. Com isso, o método CNDO assemelha-se ao Método de Hückel Estendido e encontra, portanto, aplicações em sistemas π-conjugados como os corantes.23 Foram, então, desenvolvidos diversos métodos semi-empíricos como, por exemplo, o intermediate neglect of differential overlap - INDO),24 parametrizado por Ridley e Zerner25 para aplicações espectroscópicas, o INDO/S, também conhecido como ZINDO. Cabe destacar a iniciativa brasileira, o Recife Model 1 (RM1),26 também implementado em vários programas e aplicável a problemas químicos, biológicos e de materiais.

Uma outra estratégia que teve grande impulso a partir dos anos 1960 foi a Teoria do Funcional da Densidade (density functional theory, DFT).27-30 Os teoremas que formam a base da DFT, formulados por Pierre Hohenberg e Walter Kohn31 em 1964, elevam o status da densidade eletrônica, n, antes uma propriedade como outra qualquer, para o nível de variável principal da qual todas as propriedades observáveis do sistema são funcionais. Isto significa não somente que a densidade passa a determinar univocamente o potencial, mas também que uma função de apenas 3 variáveis, n(r), contém as mesmas informações que a complexa função de onda multieletrônica, Ψ0(rN), de 3N variáveis (N é o número de elétrons). Mais além, como a energia total também é um funcional da densidade, E[n0], é possível estabelecer um princípio variacional que forneça n0, a qual, junto com o potencial, determina todas as demais propriedades do sistema.31 Muitas referências sobre DFT apresentam a prova dos teoremas de Hohenberg e Kohn (HK), que é bastante simples e procede via reductio ad absurdum.27,32

A solução auto-consistente das Equações KS para determinar a densidade do estado fundamental, n0(r), constitui o caminho mais popular que leva do formalismo de HK à aplicação prática da DFT, na qual a única aproximação é a energia de troca e correlação (xc), Exc[n0], para a qual, portanto, boa parte da atenção ainda está voltada.33-37 A mais simples e historicamente mais importante aproximação para Exc é chamada de local density approximation (LDA)38 e está baseada na densidade do gás de elétrons homogêneo, considerada localmente. Portanto, os melhores resultados da LDA são esperados para sistemas cuja densidade varia pouco, ou não varia, em relação a posição. Entretanto, devido a um cancelamento sistemático de erros, a LDA mostrou-se surpreendentemente boa mesmo para sistemas cuja densidade apresenta variações consideráveis em relação a posição.39-42

Na busca por melhores resultados, considerou-se incluir na Exc, além da dependência com a densidade local, os gradientes de densidade e/ou suas derivadas em relação à posição, melhorando assim a descrição da densidade dando origem à segunda família de funcionais, chamada de generalized-gradient approximations (GGA). Entre os funcionais de xc da família GGA, estão o PW9143 e o PBE44 que, apesar de fornecerem resultados razoáveis para os principais tipos de ligações químicas e terem, de modo geral, contribuído enormemente para o aumento da precisão dos cálculos, falham, por exemplo, na descrição das interações de van der Waals.45

Propostas subsequentes de aproximações surgiram juntando funcionais do tipo GGA para a parte de correlação enquanto a parte de troca é formada por frações de funcionais da DFT e do termo de troca (K) do formalismo HF. Os funcionais assim construídos são chamados de híbridos, como resultado da mistura de funcionais diferentes.46,47 A contribuição de cada termo na aproximação final de um funcional híbrido é determinada por parâmetros empiricamente ajustados, fato que, entretanto, não impediu que tais funcionais alcançassem grande sucesso principalmente na Química devido aos bons resultados que apresentam mesmo para sistemas muitos distintos. O caso mais contundente é o do funcional B3LYP48-50 que é o mais popular funcional da DFT na área de química.35,51 Este funcional combina o funcional LYP e VWN para a correlação com os funcionais propostos por Becke e por Slater e uma fração do termo K do método HF para a parte de troca.

Apesar dos evidentes avanços da GGA e dos funcionais híbridos em relação à LDA, a precisão química de cerca de 1 kcal mol-1, necessária para fazer predições realísticas, ainda não havia sido alcançada. Os funcionais da família meta-generalized-gradiente aproximations (MGGA), como o TPSS52 e o mais recente SCAN53 por exemplo, dependem não só da densidade de carga e de seus gradientes, mas também da densidade de energia cinética.54 Na sequência, a família de funcionais chamada hyper-GGA (HGGA) inclui, além de todas as dependências dos anteriores, a densidade de troca exata do formalismo HF, mas aqui, não como um termo compondo a aproximação total tal qual acontece nos funcionais híbridos, mas sim na dependência do próprio funcional.55 Cabe ainda citar os funcionais com correção para longo alcance como o ωB97-XD,56 CAM-B3LYP57 e o LC-wPBE,58 por exemplo.

Com isso, o desenvolvimento de funcionais de troca e correlação capazes de reproduzir, com fidelidade cada vez maior, a densidade do sistema real de partículas interagentes no sistema auxiliar de partículas não-interagentes é fundamental para a qualidade dos resultados obtidos com a DFT. Muitos desafios ainda devem ser superados (veja a discussão entre grandes cientistas em Teale et al.),59 mas importantes avanços certamente permitiram que a DFT alcançasse o status de método computacional altamente aplicável tanto para sistemas grandes quanto complexos possibilitando estudar propriedades conformacionais, espectroscópicas, físicas e químicas como barreiras de energia, momento de dipolo, ligação química, afinidades eletrônicas e inúmeras outras.

A mesma capacidade que a DFT demonstra em encontrar o estado fundamental de sistemas quânticos e calcular suas propriedades neste estado está presente na time-dependent density-functional theory (TDDFT),60-62 usada quando se deseja investigar a estrutura eletrônica de estados excitados. Enquanto teoria, a TDDFT é formalmente exata e está fundamentada nos teoremas desenvolvidos por Erich Runge e Eberhard K. U. Gross (RG)63 em 1984. De maneira análoga ao que acontece para o estado fundamental, os teoremas de RG estabelecem um mapeamento unívoco entre potenciais e densidades, agora, dependentes do tempo. O mapeamento unívoco garante, portanto, que a evolução de uma dada densidade, n(r,t), corresponde à evolução de, no máximo, um único potencial dependente do tempo, v[n](r,t), o qual, uma vez determinado, fornece as propriedades observáveis do sistema. A prova dos teoremas de RG, assim como excelentes revisões que tratam de modo profundo e abrangente a TDDFT, podem ser encontrados em muitos textos, dentre os quais destacamos os trabalhos de Capaz,61 Casida e Huix-Rotllant64 e Burke et al.65

A formulação da TDDFT é feita com a versão dependente do tempo das Equações de KS. Assim como na DFT, a densidade do sistema real de partículas interagentes é reproduzida por um sistema fictício de partículas não-interagentes sob a ação de um potencial efetivo, vs[n](r,t). A diferença entre o potencial do sistema real, v[n](r,t), e do sistema fictício, vs[n](r,t), concentra os efeitos de muitos corpos, expressos pelo potencial de xc, vxc[n](r,t). Entretanto, vxc[n](r,t) é um funcional não-local e com ‘memória', ou seja, depende das densidades em todos os outros pontos do espaço e em todos os tempos pregressos, t' ≤ t, sendo, portanto, muito mais complexo do que seu análogo independente do tempo.66

Em muitas situações de interesse prático, no entanto, não é preciso buscar a solução completa das equações KS dependentes do tempo e a evolução temporal completa da densidade do sistema para um dado processo.55 Por ser a mais simples, a aproximação adiabática que ignora a não-localidade temporal ao utilizar densidades instantâneas no cálculo do potencial de xc, vxc[n](r,t)|n(r)=n(r,t), é, de longe, a mais utilizada, podendo ser aplicada tanto em funcionais locais do tipo LDA quanto em funcionais semi-locais do tipo GGA ou híbridos. Este é o caso dos fenômenos espectroscópicos resultantes de excitações eletrônicas, como aquelas que ocorrem nos corantes, por exemplo, e em inúmeras outras situações. Excitações como estas são encaradas pela TDDFT como processos dinâmicos nos quais o sistema quântico transita entre dois estados devido a aplicação de uma pequena perturbação, tal como um potencial dependente do tempo, vp(r,t). A perturbação causa um pequeno desvio das propriedades e dos observáveis do sistema com relação ao estado inicial, tal que, numa expansão, o termo de 1ª ordem (resposta linear) domina os termos de ordens mais altas. A resposta linear da densidade, n(r,t) - n0(r) = n1(r,t), é particularmente importante porque, segundo os teoremas de RG, pode ser definida usando o sistema KS, mais especificamente pela função resposta da densidade, χs(r,r',t-t'), à perturbação e pelo potencial efetivo, vs(r,t), que contém a própria perturbação vp(r,t).64

Quando a frequência da perturbação é igual à frequência que caracteriza uma dada transição eletrônica, ou seja, um dado rearranjo de densidades de probabilidade do sistema KS, a função resposta χs(r,r',t-t') apresenta um polo. Assim, χs(r,r',t-t'), uma medida da susceptibilidade da densidade à perturbação, fornece as energias e o espectro de excitações do sistema KS, ou seja, de partículas não-interagentes. Para obter o espectro de excitações do sistema real, de partículas interagentes, é preciso, entretanto, lembrar que a diferença entre o potencial real e aquele do sistema KS reside no potencial de xc, que também é um funcional da densidade, vxc[n](r,t). Com isso, vxc(r,t) também sofre um desvio linear que depende, naturalmente, do desvio da própria densidade n1(r,t) e também da resposta do potencial de xc ao desvio da densidade, chamado de kernel de xc, fxc(r,r',t-t'). Juntos, desvio linear da densidade, n1(r,t), e o kernel de xc, fxc(r,r',t-t'), formam a correção, em 1ª ordem, de χs(r,r',t-t') até χ(r,r',t-t'), ou seja, o espectro de suas excitações. Assim, paralelamente ao papel desempenhado pelo potencial de xc na DFT, o kernel de xc na TDDFT carrega, em 1ª ordem, toda a dinâmica dos efeitos de xc causada pela perturbação.62,64

Portanto, para realizar cálculos TDDFT é necessário, com orbitais KS de um cálculo DFT do estado fundamental, construir uma aproximação para χs(r,r',t-t'), cujos polos referentes ao sistema fictício devem ser corrigidos para aqueles do sistema real através de uma aproximação para fxc(r,r',t-t'). Como a resposta linear da densidade, n1(r,t), é obtida através de χs(r,r',t-t') e de vs(r,t) que, por sua vez, também depende de n1(r,t), estabelece-se um ciclo auto-consistente para resolver as equações. A implementação das equações da linear response TDDFT (LR-TDDFT) é normalmente feita em termos da frequência, ω, ao contrário do tempo, t-t', e no caso da aproximação adiabática para fxc(r,r',ω), a dependência de ω desaparece, fxcALDA[n0](r). Mais além, após a inclusão do spin, as equações podem ser expressas sob a forma de matrizes, chamadas equações de Casida.67-69 A solução completa das equações de Casida fornece não somente as frequências de excitação, mas também as frequências de deexcitação do sistema, que são ignoradas na aproximação de Tamm-Dancoff,70,71 comumente implementada nos programas de estrutura eletrônica. No entanto, devido ao seu caráter perturbativo, fenômenos cuja variação da densidade exige a inclusão de termos de segunda ordem na expansão podem ser difíceis de tratar com a LR-TDDFT. Este é o caso das excitações que envolvem estados de Rydberg (estados superexcitados) e transferência de carga, principalmente em sistemas estendidos ou periódicos.62

Na próxima seção, apresentamos alguns estudos de caso em que esses métodos têm sido empregados, incluindo outras estratégias computacionais importantes para construir modelos para os diversos processos fotofísicos e fotoquímicos relacionados aos corantes.

 

ESTUDOS DE CASO

Porfirinas, clorinas e bacterioclorinas

As porfirinas constituem uma classe de compostos que podem ser considerados os mais abundantes e conhecidos pigmentos naturais.72 Os pigmentos assumem diferentes funções em sistemas bioquímicos vitais, como animais, plantas, algas e bactérias. Nos animais, o grupo heme é um dos principais constituintes da hemoglobina, estrutura responsável pelo transporte de oxigênio no sangue. Em plantas, as clorofilas atuam na fotossíntese, o processo de conversão de energia solar em energia química.73,74 Alguns pigmentos semelhantes à clorofila desempenham outras funções na natureza: alguns exemplos são certos peixes de águas profundas que usam clorofilas como pigmentos visuais e o verme marinho Bonella viridis, em que um derivado da clorofila atua como determinante do sexo. As clorofilas são geralmente extraídas das folhas das plantas, como o espinafre, a hortelã e a urtiga, no entanto, outras partes das plantas também podem ser utilizadas, como frutas, raízes e flores.72 A importância desses compostos fez com que ficassem conhecidos como pigmentos da vida (Figura 2), sendo que os compostos mais conhecidos são a clorofila, o grupo heme e o citocromo c.75,76

 


Figura 2. Estruturas químicas de alguns porfirinoides encontrados na natureza, da esquerda para a direita: grupo heme, citocromo c e clorofila a

 

Esses compostos apresentam como característica em comum serem macrociclos (ou macrocíclicos) formados por quatro anéis pirrólicos que formam um sistema π-conjugado. Dependendo do estado de oxidação desses anéis, os compostos podem ser divididos em três classes de moléculas (Figura 3): as porfirinas, as clorinas e as bacterioclorinas.72,73 O macrociclo completamente insaturado sem substituintes é a porfina. Se tem substituintes, é utilizado o nome mais genérico de porfirinas (e muitas vezes porfina e porfirina são usados como sinônimos). A saturação de uma das ligações duplas dos anéis pirrólicos resulta em uma clorina (ou dihidroporfirina). Já a saturação de uma das ligações duplas em dois anéis pirrólicos opostos leva à formação da bacterioclorina (ou tetrahidroporfirina).77 As ftalocianinas, amplamente utilizadas no tingimento de jeans, e as naftalocianinas são compostos sintéticos bio-inspirados nas porfirinas e possuem características fotofísicas e fotoquímicas muito similares. Estruturalmente, a diferença em relação às porfirinas é que as ftalocianinas são formadas por grupos isoindólicos ligados por nitrogênio.

 


Figura 3. Macrociclos básicos da porfina (ou, genericamente, porfirina), clorina e bacterioclorina

 

As porfirinas que apresentam um íon metálico coordenado no centro recebem o nome de metaloporfirina, enquanto aquelas que possuem dois nitrogênios do centro do anel protonados são denominadas porfirinas de base livre.78 A descrição correta dos orbitais d em metaloporfirinas é essencial para elucidar processos de catálise, por exemplo. É demonstrado na literatura que nestes casos o uso de DFT com funcionais híbridos com correção para longo alcance como CAM-B3LYP e ωB97X prevê de forma acurada estes orbitais, porém podem fornecer a geometria incorreta do estado excitado. Métodos multirreferenciais como CASSCF são tidos como métodos de referência que fornecem geometrias e energias muito mais acuradas que DFT, porém com um custo computacional substancialmente maior.79

As estruturas químicas das porfirinas são rígidas e apresentam quatro meso-posições e oito β-posições que contêm átomos de hidrogênio, facilmente substituídos por grupos moleculares que possibilitam a funcionalização das porfirinas, diversificando suas propriedades e suas aplicações.80 A versatilidade das porfirinas também se relaciona à possibilidade de substituição do íon metálico Fe ou Mg por íons de Zn, Ni, Co, Ag ou Cu.72,81

Os porfirinoides em geral apresentam cores vivas. As clorofilas, cujo macrociclo consiste em um anel de clorina, absorvem nas regiões vermelha, azul e violeta do espectro, refletindo a cor verde característica das plantas.72,82 As porfirinas apresentam uma banda de absorção intensa na região de 400-450 nm que recebe o nome de banda de Soret (conhecida também por banda B) e bandas menos intensas entre 500 e 600 nm, chamadas de bandas Q (Figura 4). Entretanto, esse perfil do espectro de absorção varia de acordo com as modificações realizadas no macrociclo. Enquanto as porfirinas de base livre apresentam quatro bandas (By, Bx, Qy e Qx), as metaloporfirinas apresentam somente duas, justamente porque o sistema torna-se mais simétrico.78 Também foi demonstrado como os espectros de absorção estão intimamente ligados à agregação destas espécies usando DFT com funcionais híbridos como B3LYP e PBE.83,84

 


Figura 4. Espectros de absorção das três classes de moléculas porfirinoides: em vermelho, porfina (ou, mais genericamente, porfirina), em verde, clorofila a (que é uma clorina) e, em azul, bacterioclorofila a

 

Para avaliar a região do espectro em que esses compostos absorvem, são calculados os orbitais moleculares preenchidos e virtuais. Geralmente, as transições dos corantes naturais envolvem o HOMO e o LUMO, como mencionamos anteriormente. As transições da banda Q envolvem mais orbitais: HOMO-1, HOMO, LUMO e LUMO+1. Na metaloporfirina, HOMO-1 e HOMO são degenerados, ou seja, têm a mesma energia, assim como LUMO e LUMO+1.85,86

A conversão de porfirina à clorina e depois à bacterioclorina pela saturação de uma das ligações duplas resulta em uma diminuição da quantidade de elétrons π de 22 para 20 e depois 18, respectivamente. Embora a modificação no número de elétrons da porfirina para a clorina e depois para a bacteroclorina não afete significativamente o LUMO dos compostos, esta aumenta a energia do HOMO, de modo que as bandas Q sofrem um deslocamento batocrômico, ou seja, em direção à região vermelha do espectro.78,87 Assim, as clorinas apresentam bandas Q com comprimentos de onda entre 600-700 nm e as bacterioclorinas em aproximadamente 780 nm. As bandas de Soret também são afetadas pela mudança da ressonância dos macrociclos, de modo que nas clorinas e bacterioclorinas ocorre um efeito hipsocrômico, ou seja, a banda é deslocada em direção da região do azul, com a banda de Soret em regiões de comprimentos de onda menores que 400 nm.

As características químicas e fotofísicas das porfirinas incluem a alta absortividade molar, estabilidade química, moderado rendimento quântico de fluorescência, tempo de vida de fluorescência da ordem de nanosegundos, além da fosforescência com tempos de vida da ordem de milisegundos.78,88 Embora essas características chamem a atenção, algumas desvantagens dificultam a aplicação dos corantes naturais que costumam apresentar baixo rendimento quântico triplete, baixa solubilidade em água e as limitadas propriedades ADME (absorção, distribuição, metabolismo e excreção) que são importantes para utilização desses corantes como fármacos.76

Outras características desses compostos, como baixo custo de produção, atoxicidade, ampla disponibilidade, simplicidade de preparação, biodegradação completa e compatibilidade ambiental,88 fazem com que sejam corantes promissores nas mais diversas áreas tecnológicas. Em muitas aplicações, os corantes naturais têm sido empregados diretamente através da extração natural, porém a derivação sintética possibilita a obtenção de compostos que são imitações dos corantes naturais com propriedades melhoradas para determinadas aplicações.76

Diversas pesquisas89,90 têm sido desenvolvidas nos últimos anos com o intuito de propor compostos com aplicações como corantes, principalmente na área médica para a terapia fotodinâmica de câncer, fotodiagnóstico e inativação fotodinâmica de bactérias, vírus e fungos. Na terapia fotodinâmica, os fotossensibilizadores são utilizados para geração de espécies de oxigênio reativas (ROS) dentro das células cancerígenas, levando à morte celular. Extraído de plantas verdes, o feoforbídeo A, derivado da clorofila, teve seu desempenho como anti-tumor investigado em células de câncer de próstata por Gheewala et al.91 demonstrando boa eficiência sob radiação luminosa de 670 nm. O feoforbídeo A também apresentou alta eficiência na inativação do Trypanosoma cruzi, protozoário causador da Doenças de Chagas.92 Diferentemente das porfirinas e das clorinas, os altos comprimentos de onda das bacterioclorinas permitem tanto uma maior penetração nos tecidos como seu uso em fotodiagnóstico, visto que neste a janela óptica varia entre 700-900 nm.89 Noweski et al.93 empregaram um derivado da paládio-bacterioclorofila a, patenteado como TOOKAD, como fotossensibilizador no tratamento de câncer de próstata, de forma que 50% dos pacientes puderam ser considerados livres de câncer.

Nas células solares sensibilizadas por corantes (do inglês, dye-sensitized solar cells, DSSC), as porfirinas, clorinas e bacterioclorinas são utilizadas para absorver a energia solar e transformá-la em energia elétrica, imitando o processo de fotossíntese realizado pelas plantas. As DSSCs com corantes naturais são consideradas promissoras por serem uma fonte de energia renovável, além de ecologicamente mais sustentáveis.94,95 Kumara et al.96 listaram extratos de plantas como espinafre, romã e petúnia que foram empregados em DSSCs. Ainda existem muitos obstáculos que impedem a utilização de corantes naturais em células solares, sendo um deles a baixa eficiência de conversão (abaixo de 2%) e a alta taxa de degradação.81 Uma forma de aumentar a eficiência de conversão é otimizando o efeito de push-pull presente em compostos com grupos elétron-doadores (D) ligados a elétron-aceptores (A), conhecidos como compostos D-π-A (Figura 5) ou D-A-π-A. Esta caracterização pode ser feita utilizando DFT e TD-DFT.97,98

 


Figura 5. Esquema representando a geração de fluxo de elétrons em uma célula solar sensibilizada por corante a partir da radiação absorvida por um corante do tipo D-π-A adsorvido em um semicondutor

 

Por outro lado, os derivados sintéticos dos macrociclos tetrapirrólicos (Figura 6) apresentam valores mais significativos de eficiência, como 5,6% encontrado para P1 em 2005 e 7% para P2 em 2007.99 Números parecidos foram encontrados para um derivado da clorofila a, C1 (8%),100 e para uma oxo-bacterioclorina, B1 (6,6%).101 Outras aplicações também são descritas na literatura, como a utilização de nanoestruturas de porfirinas em fotocatálise,102 clorofilas a e b extraídas do espinafre em OLEDs (do inglês, organic light-emitting diodes)103 e derivados de bacterioclorinas em antenas e sensores químicos.89,104-106

 


Figura 6. Estruturas químicas de derivados de porfirina com potencial aplicação em células solares

 

Flavonoides: antocianinas e antocianidinas

Os flavonoides correspondem a uma importante classe de moléculas orgânicas naturais, sendo conhecidos por manifestar grande variedade de cores em organismos vegetais, como flores, frutas e legumes. Os flavonoides podem ser encontrados em todas as partes das plantas, que os utilizam não apenas para a pigmentação, mas também em seu crescimento, proteção à radiação ultravioleta, resistência à seca e ao congelamento e defesa contra microrganismos.107 Por possuírem efeitos antioxidantes, a classe de moléculas pode ser associada ao tratamento de doenças como aterosclerose, câncer e Alzheimer.108,109

Do ponto de vista químico, estas moléculas são metabólitos secundários, derivados da síntese de fenilalanina, com estrutura polifenólica de baixa massa molecular.108 Os flavonoides podem ser divididos em diferentes subgrupos, a depender do carbono do anel C ligado ao anel B (Figura 7), e do grau de insaturação e oxidação do anel C. Os principais grupos são: flavonas, flavonóis, flavononas, isoflavonoides, isoflavonas, neoflavonoides, catequinas, chalconas e antocianinas. Estima-se que existam mais de 6000 moléculas de diferentes flavonoides.110 A flora brasileira é rica em espécies que contêm esses compostos (bem como de outras classes de corantes naturais), como na flor-aranha (Tarenaya rósea),111 na acerola (Malphigia emarginata), no jambolão (Syzygium cumini), no guajiru (Chrysobalanus icaco),112 na copaíba (Copaifera multijuga Hayne)113 e na erva capitão (Hydrocotyle bonariensis Comm. ex Lam.),114 o que faz do país um grande expoente na área de pesquisa em produtos naturais.115-117

 


Figura 7. Classes e subclasses dos flavonoides, bem como sua origem na natureza (adaptado de Panche et al.)110

 

Antocianinas e antocianidinas formam um dos mais importantes grupos de corantes polifenólicos solúveis em água, que conferem as cores vermelha, azul e roxa (Tabela 1) a muitos vegetais e flores.118 Por exemplo, estão presentes em uvas,119 frutas vermelhas120 e berinjela.121 Esses compostos são encontrados principalmente nas cascas de frutas e em flores, sendo que não apresentam odor característico, mas contribuem para a sensação adstringente no paladar.122,123 Mais de 500 antocianinas e 23 antocianidinas diferentes foram identificadas,118 sendo que apenas seis dessas são as mais recorrentes em plantas vasculares: pelarginidina (morango, batata e banana), peonidina (manga), cianidina (maçã, pêssego, cereja), malvidina (uva), petunidina (uva) e delfinidina (maracujá, berinjela, romã).120

 

 

As antocianinas são derivados glicosilados polihidroxilados ou polimetoxilados do composto 2-fenilbenzopirílio, sendo facilmente identificadas pela estrutura central do cátion flavílio (Figura 8a). Apresentam dois anéis benzílicos (A e B), um anel contendo um átomo de oxigênio (C) (grupo pirano) e um grupo glicosídeo na posição C3 via ligação glicosídica (Figura 8b). Já as antocianidinas apresentam mesma estrutura das antocianinas, exceto pela unidade glicosídica, sendo também derivadas do íon flavílio (Figuras 8c e 8d). Geralmente, apresentam massa molecular entre 400 e 1200 Daltons e podem apresentar diferentes grupos químicos ligados à unidade glicosídica, como, por exemplo, o ácido malônico presente na molécula delfinidin-3-malonilglicosídeo (Figura 8b).118,122

 


Figura 8. (a) Estrutura molecular geral das antocianidinas com índices e numeração dos sítios moleculares; (b) estrutura molecular da 3-malonilglicosedefinidina; (c) estruturas das principais antocianidinas presentes em frutas; e (d) espécies químicas geradas direta ou indiretamente a partir do íon flavílio

 

As antocianinas isoladas apresentam alta instabilidade em meio aquoso e podem ser facilmente degradadas.123 A sua estabilidade química depende de várias condições, por exemplo, acidez do meio, temperatura, concentração, luz, presença de oxigênio, natureza do solvente, presença de biocompostos e íons metálicos.124 Em relação à estrutura química, sua estabilidade depende não só dos substituintes ligados ao anel B, mas também da presença de grupos hidroxilas e metoxilas extras, os quais podem tornar essas moléculas altamente reativas em meio neutro, levando à sua degradação.125 Por outro lado, a estabilização dessas moléculas pode ocorrer caso os grupos químicos mais reativos sejam protegidos. Neste sentido, a interação entre essas moléculas com outros derivados, a formação de dímeros e a complexação com íons metálicos podem preservar sua estrutura sem modificações relevantes. Não obstante, a auto-agregação é uma propriedade recorrente das antocianinas e seus derivados, sendo que pode ocorrer em baixas concentrações e afetar diretamente a constante de equilíbrio das reações que as envolvem. Essa auto-agregação também influencia dramaticamente a definição da cor.125,126

Uma vez que podem apresentar vários grupos hidroxilas, a cor dessas moléculas é diretamente influenciada pela acidez do meio. Essa alteração do pH e, consequentemente, o grau de protonação das espécies envolvidas no equilíbrio, possibilita a ocorrência de mudanças estruturais significativas, o que ocasiona também mudanças na região espectral de interação com a luz.127 Por exemplo, em soluções muito ácidas, pH ~ 1, é comum observar a cor roxa e a vermelha. Já em valores de pH maiores que 7, sua degradação leva à formação de outras espécies, por exemplo, os produtos hidroxibenzaldeído e ácido fenólico, e, portanto, a mudança de cor do meio. Além disso, os íons flavílicos apresentam cor vermelha em solventes próticos, enquanto nos apróticos a solução se torna amarela.125

Nesse caso e para muitos corantes, o solvente tem um papel muito relevante nas propriedades espectroscópicas. Alguns efeitos correspondem apenas à polarização da densidade eletrônica do soluto pelo solvente. Nesses casos, é observado que modelos de solvatação implícita (Pliego Jr.128 apresenta uma revisão sobre esse método de solvatação) como o PCM (polarizable continuum model) fornecem comprimentos de onda de absorção mais próximos dos experimentais se comparado a cálculos em fase gasosa (sem efeito do solvente).129-133 No entanto, para moléculas que podem fazer interações específicas com moléculas de solvente, como fortes ligações de hidrogênio, o modelo implícito pode ser insuficiente. É importante, então, incluir explicitamente moléculas do solvente para descrever adequadamente a estrutura eletrônica do corante e, consequentemente suas propriedades espectroscópicas. A inclusão de muitas moléculas torna os cálculos muito dispendiosos, então foram desenvolvidas algumas estratégias, como a técnica de microsolvatação, em que algumas moléculas de solvente são dispostas em posições estratégicas, como nas ligações de hidrogênio ou empilhamento,134-137 e o restante do ambiente pode ainda ser simulado com um método implícito. A estrutura desses clusteres de soluto e solvente pode ser obtida a partir de simulações de dinâmica molecular ou Monte Carlo, a partir de estratégias chamadas de QMMM sequencial (quantum mechanics molecular mechanics) discutidas mais adiante. Uma abordagem similar que vem se tornando popular para a geração de configurações do solvente é baseada no protocolo CREST (conformer-rotamer ensamble sampling tool), em que um Hamiltoniano aproximado é usado para gerar configurações do soluto e solvente baseadas em cálculos de dinâmica molecular e metadinâmica.138,139

Voltando à descrição da grande classe de moléculas, embora as antocianinas sejam as moléculas mais conhecidas, as piranoantocianinas e os cátions piranoflavílios também compõem esta grande família de corantes naturais. A principal diferença em relação às antocianinas consiste na presença de um anel pirano (anel D, Figura 9), ao qual um grupo químico pode estar ligado. As piranoantocianinas, como as vitisinas, são encontradas principalmente no vinho tinto, sendo produto de reações químicas que ocorrem durante a maturação dessa bebida e as responsáveis por sua coloração.123,126,140,141

 


Figura 9. (a) Estruturas de ressonância envolvidas na deslocalização da carga positiva das piranoantocianinas e (b) estruturas moleculares das vitisinas A e B

 

Estudos computacionais com DFT, usando diferentes funcionais, e métodos multirreferenciais para piranocianinas, indicaram que para estudar os fenômenos associados às transições que envolvem o primeiro estado singlete, o funcional B3LYP é o mais adequado; já as transições envolvendo o tripleto (fosforescência) são melhor descritas por funcionais do tipo range separated, como o ωB97XD.129,142-144 Essa dependência entre fenômeno a ser descrito e funcional a ser escolhido pode ser averiguada comparando com resultados de métodos baseados em função de onda, como métodos pertubartivos, coupled cluster e multirreferenciais,145 cada vez mais acessíveis tendo em vista o grande desenvolvimento computacional, mas ainda um desafio para sistemas grandes ou um conjunto grande de moléculas. No caso das piranocianinas, o método ab initio second- order algebraic diagrammatic construction (ADC(2)),146 um método equivalente à teoria da perturbação de Møller-Plesset mas para o estado excitado, foi capaz de prever não só o espectro de absorção em comprimentos de onda próximos do experimental, mas também foi adequado para o estudo de transições com caráter de transferência de carga (muitas vezes uma dificuldade para a DFT) e previu forças de oscilador comparáveis à intensidade das bandas experimentais, o que facilita a correlação entre experimento e teoria.147

Aspectos como a carga positiva, o número de grupos hidroxila ligados ao sistema aromático, a extensão da conjugação dos elétrons π e a presença de substituintes com caráter doador ou retirador de elétrons podem favorecer a doação de prótons a radicais livres.148,149 Inclusive, há correlação linear entre a quantidade de antocianinas nas frutas e sua atividade antioxidante, sendo que seu poder antioxidante é maior do que das vitaminas C e E.150,151 Esses fatores estão relacionados ao uso dessas moléculas como corantes alimentícios, porque além de promoverem cores são capazes de atuar na conservação dos alimentos. Sua capacidade de reagir com radicais livres também é a razão de sua atividade anticarcinogênica.152-154

A estrutura química com alto grau de insaturação e a presença de heteroátomos conferem propriedades espectroscópicas peculiares a essas moléculas. Na região do visível, apresentam uma intensa banda de absorção entre 465 e 550 nm, enquanto na região do ultravioleta, as principais bandas de absorção ocorrem entre 270 e 280 nm. A auto-agregação causa alterações significativas em suas propriedades fotofísicas, de modo que quanto maior o grau de agregação, maior a tendência de apresentar a cor vermelha.121,155-158

Essas propriedades fotofísicas são de suma importância para vários tipos de aplicações. Por exemplo, as antocianinas são destaques para coloração de diversos alimentos justamente por sua compatibilidade biológica com o organismo humano.159,160 Além disso, estudos recentes têm desenvolvido células solares sensibilizadas por piranoantocianinas e moléculas inspiradas no íon flavílio.161-165 Ainda, suas propriedades fotofísicas permitem indicar seu uso também em terapia fotodinâmica.141,166-169

Curcuminas

A curcumina é um composto natural, não-tóxico e que se deriva do turmérico (também conhecido popularmente como açafrão-da-terra). Extraída do rizoma (espécie de caule) da planta Curcuma longa - uma espécie endêmica da Índia, muito utilizada na Ásia, mas cujo uso está difundido atualmente por todo o globo - é triturado para fins de melhor conservação e uso como tempero culinário. Os registros de uso do turmérico datam desde a Antiguidade e apontam também para fins religiosos e medicinais. Posteriormente, com o avanço na ciência, descobriu-se que este composto de fato possui uma extensa lista de propriedades benéficas à saúde, como ação antioxidante, anti-inflamatória, antitumoral, digestiva, cicatrizante, dentre outras.170-174 Atualmente, o turmérico é investigado principalmente para uso no tratamento de alguns tipos de câncer171 e da doença de Alzheimer,174 bem como continua presente numa extensa lista de aplicações na medicina tradicional Ayurveda, da Índia.175

O turmérico possui diversos componentes químicos, dentre os quais a curcumina (CUR, Figura 10) é o composto majoritário. Outras moléculas de mesma estrutura, porém com distribuição diferente dos grupos funcionais laterais, também podem ser encontradas no turmérico em menores quantidades - são os curcuminoides. Os grupos funcionais podem ser hidroxilas (-OH) e grupos metoxilas (-OCH3), em variadas proporções e posições.

 


Figura 10. Estrutura geral dos curcuminoides e suas respectivas abreviações e combinações de substituintes

 

A curcumina (diferuloilmetano, C21H20O6) é formada por um grande sistema π-conjugado que existe em equilíbrio tautomérico entre as formas enol e dicetona (Figura 11). A primeira é considerada mais estável por possuir uma forma planar - o que permite uma melhor sobreposição dos orbitais π e conjugação eletrônica mais eficiente.174-181

 


Figura 11. Estruturas tautoméricas - dicetona (acima) e enol (inferior) - da molécula de curcumina

 

Como observamos as cores complementares àquelas que são absorvidas pelo material, a curcumina apresenta uma cor característica alaranjada. No entanto, seu espectro de absorção, e consequentemente a sua cor, pode sofrer modificações em função do solvente utilizado: para solventes mais polares, o máximo de absorção se desloca para comprimentos de onda maiores (deslocamento batocrômico) e vemos a curcumina mais avermelhada.175,181 As propriedades fotofísicas e fotoquímicas da curcumina a tornam uma candidata com potencial para aplicação em terapia fotodinâmica e imageamento óptico.172,173

Apesar de todas as propriedades biológicas vantajosas já mencionadas anteriormente, a curcumina apresenta limitações em sua biodisponibilidade, devido à baixa solubilidade em água e à alta labilidade dos grupos funcionais,175 tanto nos extremos da cadeia como na região central (nas carbonilas), o que a torna pouco estável frente a processos oxidativos, luminosos, enzimáticos e ao calor.173 Uma estratégia para contornar essas limitações é a complexação dos curcuminoides a metais de transição, em particular metais bivalentes (Zn2+, Mn2+, Cu2+, Ru2+, Fe2+) em proporções metal-ligante 1:1 e 1:2, e metais trivalentes (Co3+, Fe3+, Ga3+ e Ln3+) em proporção 1:3 metal-ligante. Essa complexação ocorre majoritariamente nas carbonilas (também conhecidas como sítio ceto-enólico da curcumina), conforme pode ser visto na Figura 12.176,177,179,180 De modo geral, os complexos metálicos de curcumina mantêm suas propriedades benéficas ao organismo humano, incluindo tratamento para depressão, diabetes, úlcera, processos microbianos, inflamatórios e oxidativos (que têm um papel em doenças como Alzheimer) e também podem ser empregados em imageamento molecular.172,178

 


Figura 12. Estrutura molecular dos complexos metálicos de curcumina com proporções metal-ligante 1:1 (esquerda) e 1:2 (direita)

 

Na Figura 13, por exemplo, é mostrado como o espectro eletrônico de absorção muda a depender da coordenação da curcumina. As diferenças são mais visíveis nos espectros calculados do que nos espectros experimentais, uma vez que a forte banda da curcumina livre se sobrepõe às bandas LMCT (ligand to metal charge transfer) e MLCT (metal to ligand charge transfer), que são as transições de interesse, especialmente para aplicações optoeletrônicas. A maior parte dos estudos computacionais,178-182 no entanto, se refere à estrutura e aplicações medicinais da curcumina. Mais recentemente,176 foi realizado um benchmark visando as propriedades eletrônicas que seriam interessantes para aplicações em dispositivos ópticos. Transições eletrônicas tanto intra-ligantes quanto dos dois tipos de transferência de carga com metal (cobre) foram calculadas com típicos funcionais de DFT e com o método multirreferencial NEVPT2. A comparação entre esses resultados e os valores experimentais mostrou que a precisão dos funcionais de DFT está correlacionada com a natureza da excitação da curcumina: o funcional B3LYP foi o mais adequado para descrição geral dos compostos, em particular para as transições intra-ligantes, para as quais valores experimentais de referência são conhecidos. Por outro lado, para as excitações com transferências de carga, a comparação com resultados NEVPT2 mostrou que o funcional M06-L apresenta melhor desempenho para a transição LMCT. No entanto, para a transição MLCT, nenhum funcional apresentou resultados próximos aos obtidos com o método multirreferencial.

 


Figura 13. Espectro de absorção obtido com cálculos TD-DFT (B3LYP/6-31G em fase gasosa) para a curcumina (Cur) livre e complexada com diferentes metais divalentes. O espectro de absorção obtido a partir de cálculos de mecânica quântica são linhas, pois representam transições entre estados eletrônicos para uma mesma conformação molecular

 

PERSPECTIVAS NO DESIGN DE NOVOS COMPOSTOS

Nas últimas décadas, a TD-DFT se tornou um dos métodos mais utilizados para descrever estruturas eletrônicas e obter propriedades como energias HOMO e LUMO, momentos de dipolo, cargas atômicas, frequências vibracionais harmônicas, potenciais de ionização, polarizabilidades, dureza, afinidades eletrônicas e várias outras.29,183-186 Sem dúvida, trabalhos interdisciplinares, envolvendo a colaboração entre grupos computacionais e experimentais de diferentes áreas, têm conseguido propor novas aplicações para os corantes já conhecidos bem como fazer o design de novas moléculas.90,98,187-191

No entanto, vários desafios, tanto metodológicos quanto fenomenológicos, ainda precisam ser vencidos para a proposta de novos corantes fotossensibilizadores. Uma discussão já abordada na seção “MÉTODOS COMPUTACIONAIS NA PREVISÃO DE PROPRIEDADES DE CORANTES" deste manuscrito é a escolha do funcional de troca e correlação. Embora tenham sido desenvolvidos vários tipos, estes ainda consistem de aproximações. Portanto, ainda são necessários benchmarks, ou seja, estudos em que são comparadas diversas metodologias na determinação de alguma propriedade de interesse, cujo valor é conhecido, para então selecionar uma abordagem mais correta na previsão de novos compostos. No caso dos corantes, diversos trabalhos têm sido dedicados à determinação do espectro de absorção, particularmente do gap óptico, e de outros espectros, como de fluorescência e fosforescência, na expectativa de encontrar métodos mais adequados para a predição dessas propriedades.37,176,192-198 O que temos encontrado no entanto, é que a metodologia mais exata depende muito do grupo cromofórico e da propriedade alvo. No caso da cobalto-porfirina,79 por exemplo, ocorrem as transições de Gouterman e transições entre metal e porfirina. A predição de cada tipo de transição eletrônica é mais adequada com diferentes funcionais: as transições do tipo π-π* são melhores descritas por funcionais puros, pois se trata de um sistema altamente conjugado, já as transições que envolvem o íon metálico são melhores descritas por funcionais com correção de longo alcance pois envolvem transferência de carga. Neste caso, o funcional mais adequado para a predição de cada tipo de transição eletrônica foi avaliado usando resultados NEVPT2 como referência, sendo agora possível estender cálculos DFT para derivados dessas porfirinas, mas escolhendo o funcional adequado para cada transição.

Transições baseadas em transferência de carga também ocorrem em moléculas orgânicas, influenciando em características fotofísicas como absortividade molar, rendimento quântico de fluorescência e deslocamentos batocrômicos ou hipsocrômicos. Tais efeitos são resultados de mecanismos fotofísicos como a Transferência Intramolecular de Carga (do inglês, intramolecular charge transfer, ICT),199 ICT por Torção (do inglês, twisted intramolecular charge transfer, TICT)200 e Transferência de Elétron Fotoinduzida (do inglês, photoinduced electron transfer, PET).201 Nestes casos, além de funcionais de correções de longo alcance, o funcional PBE0 também tem apresentado bons resultados.202 Dentre os mecanismos fotofísicos, a Transferência de Protón no Estado Excitado (do inglês, excited state intramolecular proton transfer, ESIPT), tem grande importância em áreas como sensores, corantes e LEDs. A transferência de próton pode ocorrer de maneira intermolecular ou intramolecular e sua caracterização computacional depende da determinação da superfície de energia potencial no estado excitado. Neste contexto, diversos estudos vêm aplicando métodos baseados em TD-DFT para a construção das curvas de energia potencial (PES) em diversos estados eletrônicos, fundamental e excitados, a fim de determinar barreiras de ativação para o mecanismo e comprimentos de onda de emissão a partir da varredura (scan) de diversas geometrias.203-205

Recentemente, nosso grupo206 se dedicou ao estudo de moléculas com multicanais de decaimento e, em colaboração com um grupo experimental, foi possível caracterizar um sistema fotofísico complexo, que pode passar por ESIPT e TICT, mas também pelos mecanismos de Emissão Induzida por Agregação (do inglês, aggregation-induced emission, AIE) e Interseção Cônica (do inglês, conical intersection, CI). Com a aplicação de um funcional com correção de longo alcance, CAM-B3LYP, para o cálculo de otimização de geometria e do funcional híbrido PBE0 para cálculo de energia, foi construído um diagrama que representa as transições eletrônicas de absorção e emissão, além dos caminhos de decaimento, como pode ser visto na Figura 14.

 


Figura 14. Diagrama com as curvas para os diversos estados eletrônicos calculados para os tautômeros nitrona (ES0 = enol no estado fundamental; CpS1 = cetona planar do primeiro estado excitado; CtS1 = cetona torcida do primeiro estado excitado), com os comprimentos de onda de transição calculados (TD-PBE0/6-31+G(d,p)//CAM-B3LYP/6-31+(d,p)) indicados ao lado das setas. Mecanismos fotofísicos envolvidos: Transferência de Protón no Estado Excitado (ESIPT), Transferência Intramolecular de Carga por Torção (TICT) e Interseção Cônica (CI) (adaptado de Carneiro et al.).206 Esferas vermelhas representam átomos de oxigênio, em azul nitrogênio, em cinza carbono e em branco hidrogênio

 

Dentre os mecanismos citados acima, a CI apresenta a maior dificuldade em ser determinado via métodos baseados em TD-DFT, pois o cruzamento entre estados de mesma multiplicidade configura um estado multi-referencial. Assim, por convenção, atribui-se uma diferença de energia máxima entre os estados eletrônicos para configurar uma situação de CI, como sendo de aproximadamente 3 kcal mol-1. Existem outros métodos mais adequados quando se trabalha com esse tipo de sistema, baseados em função de onda, como CASSCF/CASPT2, CCSD e ADQ,207 porém, há o aumento significativo do custo computacional, limitando suas aplicações, por exemplo, a apenas alguns cálculos single-point, como discutido para a molécula de curcumina.

Além da conversão interna, pode ocorrer uma conversão entre sistemas (do inglês, intersystem crossing, ISC). Para compostos orgânicos, seria uma transição entre um estado singleto e um estado tripleto, seguida de um decaimento não-radiativo ou por fosforescência (ou seja, um decaimento radiativo). A caracterização deste mecanismo pode ser realizada por métodos baseados em TD-DFT com a determinação do acoplamento spin orbital (do inglês, spin-orbit coupling, SOC), que é utilizado como um parâmetro de facilidade da ocorrência do ISC. Além do decaimento radiativo e não-radiativo a partir do estado tripleto, há a possibilidade de retorno ao estado singleto, em um fenômeno chamado de ISC reverso (do inglês, reverse intersystem crossing, rISC). Esse fenômeno é base para o mecanismo de fluorescência tardia termo-ativada (do inglês, thermally activated delayed fluorescence, TADF), recentemente estudado por Zobel et al.,208 em um sistema de complexo metálico utilizando funcional de correção de longo alcance CAM-B3LYP para descrever o sistema.

Para além da descrição das moléculas em si, no caso de muitos corantes, a interação com o meio afeta sobremaneira suas propriedades fotofísicas e químicas. Como mencionamos anteriormente, o espectro pode sofrer alterações com a mudança da polaridade do solvente, por interações específicas com moléculas de solvente ou, ainda, por efeitos de auto-agregação.84,130,155,209 Adicionalmente, o estudo de corantes em sistemas biológicos envolve diferentes estados de protonação, a depender da acidez do meio, e a interação com membranas e proteínas. Inclusive, uma estratégia de entrega de fármacos envolve a interação com nanopartículas, como ciclodextrinas. Por outro lado, o design para dispositivos ópticos e sensores envolve processos redox e adsorção em superfícies metálicas e semi-condutoras.59,195

Para esses estudos, como muitos átomos estão envolvidos, uma estratégia que tem se tornado cada vez mais comum é combinar a mecânica quântica com a mecânica clássica, o que chamamos de QMMM. Nesse caso, o fotossensibilizador é descrito com um método quântico, pois é necessário descrever os elétrons (transições e transferências eletrônicas) e o restante do sistema (solvente, proteína, membrana, nanoestrutura etc.), por envolver muitos átomos que não participam diretamente do processo, é descrito com dinâmica molecular210 ou Monte Carlo211 sendo que Coutinho e Canuto212-222 foram os pioneiros em estudos QMMM (com Monte Carlo) sobre propriedades espectroscópicas no Brasil.

Este tipo de abordagem tem se mostrado extremamente relevante para o estudo do sistema fotossintético.223 Para descrever mais precisamente os processos de fluorescência e fosforescência, o corante precisa se equilibrar com o sistema após a excitação. Em métodos de QMMM polarizável esta equilibração é feita com o sistema quântico agindo nas cargas do seu entorno, que por sua vez agem no sistema quântico. Ao considerar este efeito de polarização mútua é possível, por exemplo, estudar transferência de energia de ressonância por fluorescência (FRET) em sistemas complexos heterogêneos.210,224

Os métodos de solução da equação de Schrödinger tratados até aqui dependem da aproximação de Born-Oppenheimer (BO), onde há a separação do movimento dos núcleos dos elétrons. Porém, existem processos importantes na fotofísica e fotoquímica como o decaimento não-radioativo sem mudança de spin, chamado de conversão interna, bem como o ISC discutido acima (o qual envolve mudança de spin) em que o movimento dos núcleos e dos elétrons está acoplado.225,226 Para estudar estes sistemas ainda usando a aproximação de BO, é necessário construir as superfícies de energia potencial (PESs) dos diferentes estados eletrônicos, com seus mínimos locais e estados de transição e consequentemente as intersecções cônicas entre eles, como mencionamos anteriormente. A intersecção cônica é o mediador mais importante destes processos e conhecê-lo é essencial para tornar o problema factível de se estudar computacionalmente.227

Para além do scan mencionado anteriormente, existem diversas abordagens para construir as PESs, como o Modelo do Acoplamento Vibrônico Linear (do inglês LVC, linear vibronic coupling) que utiliza um Hamiltoniano aproximado e que pode ser parametrizado com poucos cálculos, obtendo uma descrição acurada das intersecções cônicas.228-230 Outras formas de construir a PES consistem na utilização de algoritmos de aprendizado de máquina231-233 ou interpolação de Hamiltonianos diabáticos.234 Uma vez que a PES do sistema é conhecida, a dinâmica não-adiabática também pode ser simulada com diferentes abordagens. No método de Hartree Multiconfiguracional Dependente do Tempo (MCTDH - multi-configuration time-dependent Hartree)235 os movimentos nucleares acoplado aos estados eletrônicos são obtidos propagando pacotes de onda pelas PESs. Esta abordagem unida com a LCV possibilita um tratamento totalmente quântico para o sistema, porém seu custo computacional escala exponencialmente com os graus de liberdade do sistema.

Outra abordagem muito popular para simular dinâmica não-adiabática é o salto de superfícies (do inglês, surface hopping) onde o movimento nuclear é descrito por uma trajetória de mecânica clássica que segue o gradiente do PES ativo e nos pontos de intersecção é calculada a probabilidade de transição entre ambas com base na energia obtida quanticamente.236-238 Esta abordagem é mais eficiente computacionalmente uma vez que calcula a estrutura eletrônica apenas das geometrias visitadas, além de ser escalável para sistemas grandes e ter resultados mais claros de se interpretar.233,239,240 Porém propriedades quânticas dos núcleos como a energia de ponto zero ou tunelamento não podem ser obtidas por este método. Além destes dois métodos há também o ab initio multiple spawning (AIMS),241-243 Gaussian wavepacket244-247 e coupled-trajectory.248,249

Todos esses métodos foram desenvolvidos a fim de se conhecer profundamente os mecanismos fotofísicos pelos quais os corantes podem passar. Agora invertendo um pouco a lógica, tendo em vista que há um gigantesco volume de dados experimentais disponíveis e um número relativamente alto de dados computacionais (ao menos para o estado fundamental e suas propriedades), ao invés de aprofundar o estudo de cada mecanismo para cada molécula, podemos usar inteligência artificial para correlacionar todos esses conhecimentos e tentar prever propriedades para moléculas ainda não caracterizadas.250 Assim, em princípio, tempo e recursos envolvidos nas pesquisas experimentais e computacionais que visam a proposição de novos materiais poderiam ser reduzidos, uma vez que não seria necessário estudar molécula a molécula.251

É nesse contexto que o machine learning (ML), ou Aprendizado de Máquina, surge para suprir a demanda de análise de dados, predição de propriedades e de novas moléculas e materiais. O ML consiste em algoritmos construídos com a função de varrer um conjunto de dados para aprender padrões e interpretar relações que possibilitem novas previsões.250,251 Esse campo de pesquisa já foi chamado de quimiometria e está inserido nas áreas de inteligência artificial e quimioinformática.252,253

Em um conjunto de dados de moléculas, o ML atua reconhecendo padrões e estabelecendo relações matemáticas que podem ser aplicadas a outras moléculas, prevendo suas propriedades químicas, biológicas e físicas. Ou ainda, propondo novos compostos que compartilhem desses mesmos padrões. Essa forma de investigação contrasta consideravelmente com os modelos convencionais que utilizam equações físicas explícitas para determinar as propriedades de apenas uma molécula por vez, enquanto no ML os algoritmos podem ser facilmente extrapolados para conjuntos maiores de dados sem que se necessite de recursos computacionais muito mais robustos.252

Existem diversos algoritmos de ML que podem ser empregados no design de novos compostos, a depender dos objetivos que se pretende alcançar. Os algoritmos podem ser supervisionados ou não supervisionados, cuja maior diferença entre eles é a rotulação dos dados (Figura 15). Isso porque, na técnica supervisionada, a máquina aprende em um conjunto para aplicar as relações em outro. Já na técnica não supervisionada, a máquina trabalha em um conjunto de dados sobre o qual não se tem informações e nem se sabe quais resultados são esperados. Os principais algoritmos supervisionados são: (i) de classificação, que prediz a categoria de um dado, e (ii) de regressão, que prediz um valor de saída de acordo com os valores de entrada que são fornecidos. Na técnica não supervisionada, destacam-se os algoritmos de (i) redução de dimensionalidade, ou seja, diminuição da quantidade de dados a partir da seleção das características mais importantes, e (ii) agrupamento, que atua estruturando os dados em grupos com determinada similaridade.

 


Figura 15. Principais técnicas de machine learning

 

No desenvolvimento de novos materiais, esses modelos de ML são aplicados seguindo algumas etapas. Na primeira delas, ocorre justamente o levantamento e agrupamento de propriedades químicas, sejam elas provenientes de cálculos teóricos ou da experimentação, e este grupo recebe o nome de base de dados. Uma das bases de dados mais utilizadas em pesquisas que empregam a modelagem ML de propriedades químicas se chama QM9.254 Esta base de dados contém propriedades geométricas, eletrônicas, energéticas e termodinâmicas de moléculas orgânicas estáveis que apresentam em sua estrutura até 9 átomos (sem contar átomos de hidrogênio). A QM9 conta com quase 134 mil moléculas que tiveram suas propriedades calculadas no nível de teoria B3LYP/6-31G(2df, p).255 Outra base de dados bastante utilizada é a PubChemQC que representa a base de dados pública mais extensa de moléculas descritas por química quântica, contendo mais de 3 milhões de moléculas otimizadas com o método DFT (usando o funcional B3LYP e conjunto de funções de bases 6-31G(d)). Essa base de dados apresenta ainda cálculos de TD-DFT dos estados excitados de mais de 2 milhões de moléculas.256

Na segunda etapa do ML, o algoritmo de redução de dimensionalidade é empregado com o objetivo de identificar as propriedades mais relevantes e, assim, diminuir a quantidade de variáveis. Na última etapa, um algoritmo supervisionado utiliza parte dos dados para estabelecer uma função que descreva padrões e relações observados entre as propriedades dos materiais e, na outra parte, essa função atua separando os dados em classes e/ou prevendo propriedades.

Uma vez que as estruturas mais promissoras são selecionadas, cálculos DFT, simulações QMMM ou experimentos podem ser empregados de forma a determinar dentre as moléculas selecionadas aquelas mais adequadas. Xu et al.,257 por exemplo, conseguiram selecionar com técnicas de ML 5357 potenciais fotossensibilizadores de alto desempenho a partir de um banco com mais de 7 milhões de moléculas. Foram, então, selecionados quatro compostos para serem sintetizados e esses mostraram desempenho comparável ou superior aos comerciais.

ML vem sendo também muito utilizado como forma de substituir os custosos cálculos de estrutura eletrônica através da construção de potenciais interatômicos, os machine learning potentials (MLP),258,259 e na previsão direta de propriedades de moléculas e de sólidos.260 Neste contexto, ML pode ser visto como uma ferramenta para acelerar cálculos de primeiros princípios. Mazouin et al.,261 por sua vez, conseguiram demonstrar como se utilizar de um grande banco de dados para prever o gap HOMO-LUMO de moléculas, sem perder a acurácia nos dados.

Outros trabalhos recentes, como McNaughton et al.262 e Urbina et al.,263 por exemplo, demonstram o crescente uso de técnicas de Aprendizagem Profunda (do inglês deep learning) para determinação de espectros de absorção de moléculas. Estes algoritmos são ainda mais complexos do que os apresentados aqui e são compostos por camadas de redes neurais - redes interconectadas, tais quais neurônios em um cérebro humano, que se comunicam entre si. Frequentemente, as redes neurais são alimentadas por grafos moleculares - representações matemáticas bidimensionais das moléculas, em que os nodos são os átomos e as ligações químicas são as arestas do sistema.264 De fato, os métodos e algoritmos disponíveis dentro do âmbito de ML para predição de propriedades de estados excitados de moléculas têm crescido continuamente ao longo das últimas décadas, como mostram Dral e Barbatti.265 Os desafios, no entanto, continuam surgindo e algoritmos de Aprendizagem por Reforço, Não-Supervisionados e de Aprendizagem Profunda devem se tornar cada vez mais comuns e presentes nas descobertas científicas da área nos próximos anos.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Corantes são produzidos abundantemente na natureza para diferentes finalidades e têm inspirado diversos estudos, seja do ponto de vista de ciência básica, para entender em mais profundidade como estão relacionadas estrutura e propriedades fotofísicas e fotoquímicas, bem como aplicações tecnológicas, como células solares e tratamentos médicos à base de terapia fotodinâmica.

Em todos esses estudos, a química computacional pode fornecer subsídios para maior entendimento dos processos físicos e químicos, novas aplicações e novos compostos bioinspirados. Para tanto, buscamos apresentar em linhas gerais a evoluções dos principais métodos baseados em mecânica quântica, já que os processos que envolvem excitação eletrônica devem necessariamente ser descritos por esse tipo de abordagem. A seguir, apresentamos alguns estudos de caso, em que algumas classes de corantes naturais são apresentadas juntamente com discussões sobre os modelos e métodos empregados no aprofundamento do conhecimento sobre sua estrutura eletrônica e os processos fotofísicos associados.

Por fim, exploramos estratégias mais recentes de desenvolvimento de novos corantes bioinspirados, em que é possível explorar diversos processos no estado excitado e o efeito do meio (seja solvente ou o meio em que o corante será aplicado, como células e semi-condutores). Dentre as estratégias mais recentes estão aquelas baseadas em QMMM e métodos multirreferenciais bem como as técnicas baseadas em aprendizado de máquina. Com base em todas essas estratégias, aliada ao alto poder computacional, a química computacional atingiu um patamar preditivo que deve fazer com que o design de novos corantes seja muito acelerado, contribuindo para o desenvolvimento prático de novas tecnologias.

 

AGRADECIMENTOS

Os autores agradecem o apoio financeiro das agências de fomento CNPq (INCT - Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Materials Informatics No. 371610/2023-0, bolsa de produtividade No. 305381/2022-9 e bolsa de doutorado No. 01/2019), FINEP (Nos. 0038/21, 0288/22) e FAPESP (Nos. 2018/25576-6, 2022/13192-4). O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

 

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Editor responsável pelo artigo: Nelson H. Morgon

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