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Conceitos em cristalografia estrutual: uma abordagem compreensiva da lei de Bragg e do fator de estrutura Concepts in structural crystallography: a comprehensive approach to Bragg’s law and the structure factor |
Rafael P. Machado; Antônio C. Doriguetto*
Instituto de Química, Universidade Federal de Alfenas, 37130-001 Alfenas – MG, Brasil Recebido: 20/02/2024 *e-mail: rafael.machado@unifal-mg.edu.br; doriguetto@unifal-mg.edu.br It is not uncommon that as a chemistry course progresses, along with the deepening of the content studied, the tendency of not carefully revisiting the foundations of the concepts covered and deepened also increases. The understanding of the structure of matter that develops throughout the course, starting from the first concepts of atomic theory, going through chemical bonds, molecules, intermolecular interactions to the study of how matter is aggregated in the solid state, is an example of knowledge that grows in depth and complexity. In this context, crystallography presents itself as a vast interdisciplinary area that contributes to understanding the matter. This article explores fundamental mathematical, historical, chemical, and physical concepts, connecting them to offer a more comprehensive and logically coherent understanding of key crystallography principles. INTRODUÇÃO Durante um curso de graduação ou pós-graduação em química, grande parte das dificuldades encontradas pelos alunos e que fazem rotular a química como uma ciência dura devem-se às dificuldades encontradas nas abstrações e argumentações matemáticas que fundamentam as teorias estudadas em praticamente todas as disciplinas. Como exemplos, podem ser citados o estudo dos modelos atômicos desde aqueles concebidos pelos filósofos gregos até a teoria quântica desenvolvida no século XX,1 as leis da termodinâmica que conduzem às interpretações dos equilíbrios químicos2 e as diversas técnicas de caracterização de substâncias e compostos que envolvem interações luz-matéria.3 Neste último aspecto, uma das interações luz-matéria que fornece informações de grande valor para os químicos são os experimentos de difração que acessam as informações estruturais de uma substância no estado sólido cristalino com precisão de centésimos de angstrons nos comprimentos de ligações e ângulos entre átomos em compostos metálicos, moleculares (incluindo as macromoléculas biológicas), covalentes, ou iônicos. A cristalografia é o ramo da ciência que estuda a estrutura da matéria em nível atômico por meio da técnica de difração de raios X (ou de elétrons ou de nêutrons) possibilitando a determinação da organização de átomos em sólidos cristalinos e assim compreender a natureza e as características de ligações químicas e forças intermoleculares.4,5 Apesar de muitos livros-texto e artigos científicos utilizados nessa disciplina apresentarem e utilizarem as equações e deduções de fórmulas ou leis que fundamentam a técnica, nem sempre são apresentados os princípios históricos, passos e obtenção de equações de suma importância nessa área. Na maioria dos casos, ou é dado como pressuposto o conhecimento necessário para compreensão das deduções e conclusões feitas a partir delas, ou o assunto é relegado a segundo plano por sua aridez. Entretanto, acredita-se que com uma ideia mais clara dos fundamentos pode-se construir um conhecimento mais sólido e com isso, a facilidade de sua aplicabilidade. Como exemplos de conceitos em cristalografia que se acredita que seriam melhor compreendidos e utilizados caso se dominassem sua gênese podem ser citados a dedução da Lei de Bragg,6-9 fundamento da difração de raios X e a forma complexa da função fator de estrutura.5,10 Portanto, no intuito de fornecer um caminho menos duro para tais conceitos e propriedades foi feita uma abordagem partindo de alguns aspectos históricos, conceitos de geometria e trigonometria básicas, passando por uma breve abordagem aos números complexos para servirem de conexão com fundamentos da cristalografia.
DESENVOLVIMENTO Da difração dos raios X à determinação de estrutura A determinação da estrutura de uma espécie química pode ser vista, talvez, como o cerne da cristalografia e sua contribuição mais revolucionária na ciência. Foi em 1914 que a Real Academia de Ciências da Suécia laureou Max von Laue com o Prêmio Nobel em Física por sua descoberta da difração de raios X por cristais.11 A importância da descoberta possibilitou a confirmação da natureza eletromagnética dos incógnitos raios “X” de Wilhelm Conrad Röntgen (Nobel em Física de 1901) e embasou o trabalho desenvolvido por Sir William Henry Bragg e William Lawrence Bragg, pai e filho, premiados, com a mesma honraria conferida a Max von Laue, no ano seguinte, 1915.12 Von Laue, com sua descoberta, marcou uma época ao fornecer a prova de que cristais se tratam de arranjos tridimensionais ordenados de átomos e propor o primeiro método matemático para elucidar tais arranjos.5,13 Cabe ressaltar que no início dos experimentos de difração de raios X somente sais inorgânicos simples eram analisados, sendo o primeiro deles analisado por Laue, o sulfeto de zinco.12 O método proposto era de alta complexidade por considerar nos cálculos redes tridimensionais e uma distribuição imprecisa de comprimentos de onda com intensidades variáveis da radiação utilizada. Entretanto, von Laue concluiu que pelo padrão de difração observado no filme fotográfico usado como anteparo, a rede cristalina do ZnS deveria ser cúbica, ou seja, o padrão de organização dos íons de zinco(II) e sulfeto, que se repetia ad infinitum nas três dimensões, ocupavam posições que delimitavam um cubo. Esse padrão organizacional observado por Laue é o que se denomina de cela unitária. A partir desses experimentos, pode-se complementar a definição dada a um cristal, o sólido que apresenta um arranjo definido e ordenado de seus constituintes (átomos, moléculas e/ou íons), com o conceito da união do motivo mais a rede, ou seja, o resultado da combinação do ente material que constitui a fase sólida (motivo) e seu padrão de organização espacial (rede).7,10 Uma outra observação feita por Max von Laue foi que, pelos seus cálculos, um número maior de direções dos feixes difratados deveriam ser observados no filme fotográfico, embora o experimento se mostrasse seletivo à algumas, somente. Ele mesmo especulou que os feixes só deveriam então serem difratados sob condições específicas. Com essa hipótese de Laue, W. L. Bragg em seu discurso na Universidade Técnica de Estocolmo, disse: “Ocorreu-me que talvez devêssemos buscar a origem dessa seleção de certas direções de difração nas peculiaridades da estrutura cristalina e não na constituição dos raios X”.12 Para tanto, os experimentos conduzidos por Bragg filho consistiram em incidir sobre uma rede de espaço regular, que não um cristal, pulsos irregulares de luz. Para tratar os resultados, ele admitiu que o fenômeno da difração poderia ser interpretado como sucessivas reflexões dos raios incidentes por planos formados pelos pontos de rede no interior da estrutura ordenada. Pela observação dos dados coletados no anteparo, tais planos deveriam ser equidistantes entre si para que houvesse interferência construtiva entre as ondas incidentes e as frentes de onda captadas tivessem intensidades aumentadas. Para que haja uma interferência construtiva das ondas difratadas, o caminho adicional percorrido por uma frente de onda, representada na Figura 1 pelos segmentos AD e DC, entre dois planos separados por uma distância d deve ser um número inteiro n de comprimentos de onda λ, caso contrário as interferências predominantes seriam destrutivas e não seria observada a difração. Da Figura 1, esse caminho adicional é dado pela soma dos segmentos AD + DC e θ é o ângulo de incidência dos raios X. Para que essa condição seja obedecida, tem-se que: Como e também Tem-se que Mas, como o segmento ED é a distância interplanar d e AD = DC, substituindo a Equação 4 na Equação 1, tem-se: que é a equação conhecida como Lei de Bragg (Equação 6) e tida como fundamento do experimento de difração por relacionar as distâncias entre planos atômicos em um cristal (d) com o ângulo de difração (θ) a um dado valor de comprimento de onda (λ). Como mencionado anteriormente, Max von Laue já havia elaborado um construto matemático mais complexo que explicava o fenômeno da difração e chegado a um conjunto de equações que ficaram conhecidas como Equações de Laue. Embora o tratamento de Bragg dado ao fenômeno da difração seja simplificado em relação ao de Laue, a Lei de Bragg é equivalente às equações de Laue.5,9,10 Ao relacionar as distâncias interplanares na Equação 6, é necessário que esses planos possam ser localizados numa cela unitária, que pode ser entendida como a menor unidade tridimensional de um cristal formada por três vetores de mesma origem, não necessariamente ortogonais entre si, delimitando um paralelepípedo que se repete por translação por toda extensão do cristal.9,10 Para isso lhes são atribuídos os denominados índices de Miller (hkl) que se relacionam, respectivamente, aos recíprocos das frações dos interceptos do plano com as dimensões a, b e c de uma cela unitária.5 Na Figura 2 são apresentados dois planos, (121) em vermelho e (020) em verde. O plano em vermelho intercepta a cela unitária em um inteiro de a, ½ de b e um inteiro de c, portanto h = 1, k = 2 e l = 1. Já o plano em verde intercepta a cela unitária no infinito pelo eixo a, em ½ de b e no infinito pelo eixo c, portanto h = 0, pois k = 2 e l = 0. Com isso, a distância interplanar expressa na Equação 6 se refere à distância entre planos de mesmo índice de Miller (hkl).10,14 Uma correlação direta dos índices de Miller com a Lei de Bragg é feita na interpretação dos difratogramas obtidos de amostras policristalinas ao correlacionar a posição dos picos de difração com os índices (hkl).15,16 A breve demonstração que conduziu à Equação 6 utiliza-se de conceitos de trigonometria básica, entretanto é a partir da clara ideia desses conceitos básicos que se pode construir uma espécie de mapa mental desde a Lei de Bragg até a obtenção do fator de estrutura, que servirá como a função base para determinação de uma estrutura. Da trigonometria ao fator de estrutura Dado um conjunto de n triângulos retângulos semelhantes (Figura 3) podem ser estabelecidas razões entre seus lados que serão sempre constantes. Tomado o ângulo agudo θ comum a todos os n triângulos, têm-se as seguintes relações que definem as principais funções trigonométricas: seno (Equação 7), cosseno (Equação 8) e tangente (Equação 9). Uma vez definidas as principais funções trigonométricas no triângulo retângulo podem-se expandir as suas aplicações para qualquer medida de θ, fazendo-se uma circunferência de raio unitário coincidente com a origem de um sistema de coordenadas cartesianas definindo-se assim o chamado ciclo trigonométrico apresentado na Figura 4 abaixo. Esse ciclo permite que se associem os valores das funções trigonométricas às medidas de segmentos na abcissa, ordenada e na reta das tangentes paralela ao eixo das ordenadas de acordo com as Equações 10-12, além de fornecer uma relação entre essas três funções como apresentado na Equação 12. Do triângulo retângulo OPB, ainda da Figura 4, tem-se pelo teorema de Pitágoras a relação fundamental da trigonometria. Associa-se ao ângulo θ com vértice no centro da circunferência o arco de mesma medida a partir do ponto A, caminhando no sentido anti-horário (sentido positivo por definição) até o ponto B e o mensurando em radianos, sendo que um radiano é definido como o arco de comprimento idêntico ao raio r de sua circunferência. Como o comprimento (C) de uma circunferência é calculado pela relação C = 2πr; dividindo-se ambos os membros por r tem-se a medida da circunferência em radianos, levando a relação de que uma volta completa considerando a medida do ângulo possui 360° e uma volta completa considerando a medida do arco possui 2π radianos. Cabe ressaltar que medidas de ângulos ou arcos são adimensionais e que na maior parte de todas as deduções e equações envolvendo funções trigonométricas trabalha-se com as medidas de arcos ao invés de ângulos. Percorrendo-se o sentido anti-horário a partir do ponto A chegam-se a medidas de arcos nos quatro quadrantes definidos pelos eixos cartesianos. Como pela Figura 4 e as Equações 10 e 11 os valores de seno e cosseno foram associados às medidas dos segmentos sobre a ordenada e abscissa, respectivamente, pode-se por simetria chegar aos valores dessas funções para os arcos além do primeiro quadrante, consideração que não era possível para análises restritas ao triângulo retângulo. A Figura 5 apresenta geometricamente as relações entre os valores de seno, cosseno e tangente para arcos dos quatro quadrantes em termos dos valores determinados para o arco de medida x no primeiro quadrante. Essa possibilidade, posteriormente expandida para qualquer valor real de arco ao se caminhar no sentido positivo (anti-horário) ou negativo (horário) do ciclo gerará um comportamento periódico para os valores das funções trigonométricas, o que permitirá utilizá-las para descrever o comportamento ondulatório das ondas eletromagnéticas, por exemplo. Pela Figura 5 verifica-se que os valores de seno e cosseno variam sempre de –1 a 1 e que os valores de tangente variam de –∞ a +∞ não sendo definidos para . A Figura 6 apresenta os gráficos das funções sen(x) e cos(x). Comparando-se os gráficos das duas funções observa-se que possuem a mesma forma, porém pode-se dizer que há um “atraso” de uma função para outra fazendo com que seus máximos e mínimos não coincidam. Esse “atraso” é o que se chama de defasagem entre as ondas, ou seja, como as funções não coincidem em seus máximos e mínimos para um valor comum de seus domínios, diz-se que estão fora de fase. Entre as funções sen(x) e cos(x), verifica-se que a defasagem é de , conforme a Equação 14. Esse conceito é fundamental para o tratamento do chamado problema das fases na determinação de estruturas por raios X, onde o dado experimental tratado depende diretamente das interações entre ondas e das diferenças de fases entre elas.5,17,18 Visto que as funções trigonométricas podem ser utilizadas para descrição matemática de ondas, podem-se associar essas funções às suas formas complexas que são o formato mais comum em que são apresentadas e tratadas na cristalografia. Para fazer-se essa reescrita pode-se partir de uma breve revisão do conjunto dos números complexos que segundo o físico Wolfgang Smith19 é o conjunto numérico onde a matemática chega a sua completude. Um número complexo pode ser escrito na forma algébrica como o binômio z = a + bi, onde a e b são, respectivamente, as partes real e imaginária de z e i é chamado de número imaginário que por vezes é definido como a raiz quadrada de –1 ou como o número que quando elevado ao quadrado resulta em –1. Apesar de algebricamente as duas maneiras de expressar a definição sejam equivalentes, a segunda fornece uma conexão para uma interpretação geométrica do número imaginário. Em uma reta real, tomando-se qualquer número sobre ela e o considerando como um vetor, ao se multiplicar esse número por –1, conserva-se seu módulo e direção, mas inverte-se o sentido do vetor fazendo com que ele rotacione 180° e ainda recaia sobre a reta real como ilustrado na Figura 7. Se considerar o número imaginário como i2 = –1, então i.i = –1 e com isso pode-se entender que multiplicar um número real x por –1 é o mesmo que multiplicá-lo duas vezes consecutivas por i. Se multiplicar um número real x por –1 o faz rotacionar 180°, multiplicá-lo por i o faz rotacionar 90° e dessa maneira o número não mais pertence à reta real, não pertencendo, por conseguinte ao conjunto dos números reais levando, pois, a um novo conjunto numérico, o conjunto dos números complexos (Figura 8). Dessa maneira, uma forma alternativa de representação desses números pode ser feita no denominado plano complexo ou plano de Argand-Gauss20 formado por um eixo real (Re) e um eixo imaginário (Im) mutuamente perpendiculares entre si, como apresentado Figura 9. Nesse plano, o número complexo z é representado como um afixo (a, b) semelhante a uma coordenada num sistema cartesiano e pode ainda ser representado como um vetor a partir da origem com extremidade nesse afixo formando um ângulo θ com o eixo real, denominado argumento de z, com sentido positivo de sua determinação definido como o sentido anti-horário à semelhança da definição feita para medida dos arcos no ciclo trigonométrico. Como z passa a ser tratado como um vetor, também é definido, além de sua direção e sentido, por seu módulo calculado por: A forma vetorial de z permite ainda que se represente esse número na chamada forma polar ou forma trigonométrica do número complexo da seguinte maneira: Substituindo-se a e b na forma algébrica de z, tem-se: A Equação 17 é chamada de forma polar ou trigonométrica do número complexo z. Considerando-se z na forma polar e que o módulo de z é sempre um número real (Equação 15) é possível chegar à forma geral do fator de estrutura calculado no processo de determinação de uma estrutura cristalina por difração de raios X. Uma relação de grande utilidade para o tratamento de grandezas complexas é a chamada relação de Euler em que se associa um número complexo na forma polar a uma exponencial complexa. Pela Figura 10, considera-se a rotação de um número z com módulo constante com uma das extremidades fixas na origem por um ângulo diferencial dθ fazendo-o variar de z a z + dz de modo que: Logo Integrando-se ambos os membros, Tem-se que Das propriedades dos logaritmos, Aplicando-se uma exponencial em ambos os membros se tem que: Como zinicial recaía sobre o eixo real, fazendo seu módulo constante e igual a unidade e zfinal expresso na forma polar (Equação 17), tem-se que é a chamada relação de Euler para os números complexos.21 A notação para grandezas complexas na forma exponencial é um facilitador para tratamento algébrico e computacional de problemas envolvendo interferência de ondas, por exemplo, como no caso da difração de raios X. Os fenômenos de interferência entre ondas são dependentes das fases entre elas e do ângulo de reflexão. A Figura 11 apresenta a variação da intensidade da onda resultante após a interferência dos feixes difratados dependente do ângulo de incidência e variações de fase devido as diferenças de percurso percorrido por cada onda. Para o tratamento da interferência entre ondas, pode-se considerar, por simplicidade, sua ocorrência entre duas ondas regidas pelas funções das Equações 26 e 27 em que α1 e α2 são as fases relativas de cada uma, c1 e c2 são suas amplitudes, e x1 e x2 são seus deslocamentos verticais (Figura 11). O fenômeno da interferência é resultado da soma das amplitudes das ondas, portanto, ao somarem-se as Equações 26 e 27, tem-se o deslocamento vertical resultante xr em função do ângulo de incidência θ e da fase relativa α. Aplicando-se a relação: cos(a + b) = cos(a)cos(b) – sen(a)sen(b), tem-se que Rearranjando-se e colocando em evidência o termo com argumento θ: A Equação 31 é obtida para soma de duas ondas interagentes. Repetindo-se o processo para j ondas interagentes definem-se: que carregam a informação das colaborações dos ângulos de fase na amplitude da onda resultante. Substituindo-se as Equações 32 e 33 na Equação 31, tem-se que: Logo, pela relação já aplicada, cos(a + b) = cos(a)cos(b) – sen(a)sen(b): em que cr é a amplitude resultante e αr é a fase resultante após a interferência de j ondas interagentes. Como sabe-se que o ente espalhador de raios X num cristal são os elétrons de cada átomo,5 j pode também ser associado aos átomos espalhadores que constituem uma cela unitária em que quanto maior o número atômico, maior a intensidade da radiação difratada. Dessa forma, cj das Equações 33 e 32 está associado a intensidade da radiação espalhada por cada átomo j de um cristal e sua magnitude, como mencionado acima, se relaciona ao número de entes espalhadores (elétrons) de cada um desses átomos, com isso define-se o fator de espalhamento atômico fj que guarda relação direta com seu número atômico e pode-se considerar cj= fj de modo que se associe uma abstração matemática que se relaciona a amplitude de uma onda regida por uma função trigonométrica (cj) à uma propriedade física intrínseca dos átomos constituintes do cristal, o fator de espalhamento atômico fj. Para o tratamento matemático de uma situação real, em que o número de entes espalhadores é muito elevado, o cálculo da amplitude resultante da onda difratada utilizando-se a Equação 35 se tornaria muito laborioso. Alternativamente, pode-se tratar a mesma situação na forma vetorial como apresentado na Figura 12, em que o módulo de F é associado à amplitude da onda de fase α. O tratamento vetorial é equivalente ao tratamento algébrico anterior fornecendo com maior clareza como ocorrem as combinações entre as ondas difratadas ao associá-las a soma de vetores com diferentes intensidades, direções e sentidos. Nesse caso, a direção e o sentido de cada vetor fj dependem de seus próprios ângulos de fase (α1, α2, ...) e suas intensidades (módulos) refletem a capacidade de espalhamento de cada átomo j, ou seja, o módulo de fj é, como mencionado, o denominado fator de espalhamento atômico. Com isso, pode-se dizer pela Figura 12B que como o tamanho do vetor f1 é maior do que o do vetor f3, o átomo j = 1, com fator de espalhamento atômico f1, possui um número atômico maior e por sua vez espalha mais radiação do que o átomo j = 3, contribuindo mais preponderantemente no espalhamento dos raios X pelo cristal analisado. Entretanto, para maior facilidade do tratamento algébrico pode-se associar F a uma grandeza complexa. Ao compararem-se as Figuras 12 e 9, transpõe-se F do plano cartesiano para o plano de Argand‑Gauss sem perda de sentido físico do problema, pois a grandeza mensurada pela difração de raios X é a intensidade da radiação espalhada que é proporcional a amplitude da onda espalhada, que em ambas representações é dada pelo módulo de F que sempre é um valor real, como dado pela Equação 36. Da Figura 12 tem-se que F pode ser escrito como: Desta maneira, considerando que F é resultado das interações da radiação espalhada por j átomos num cristal e que uma difração atende à Lei de Bragg, guardando relações com os índices hkl dos planos do cristal, pode-se escrever F na forma complexa da seguinte maneira: De maneira análoga, cada fj da Figura 12B também pode ser decomposto sobre os eixos do plano de Argand-Gauss de modo que: Como F(hkl) é o somatório de todos fj, tem-se que: E pela relação de Euler da Equação 25, chega-se ao fator de estrutura F(hkl): Chegou-se à Equação 42 considerando um somatório de vetores complexos fj. Entretanto, os dados que se obtêm num experimento de difração são as intensidades dos feixes difratados (I) que são proporcionais ao módulo de F(hkl) (I ∝ |F|2).5,10,17 Como |F| é um escalar (Equação 36), a intensidade do feixe não guarda informação sobre a fase α(hkl), portanto é necessária sua determinação para o cálculo da densidade eletrônica ρ(hkl) na cela unitária fornecendo as coordenadas de seus átomos.5 Ao final de uma sequência de refinamentos (ajustes), a estrutura cristalina será considerada determinada e estatisticamente validada com base nos dados coletados experimentalmente (F(hkl)experimental) e nos valores calculados do fator de estrutura (F(hkl)calculado).5,10,17,18 A partir do fator de estrutura também é possível a designação da rede de Bravais e do grupo espacial de uma estrutura cristalina pelas análises das chamadas ausências sistemáticas que envolvem a verificação de intensidades ausentes pelo do valor de F(hkl) = 0 para determinados h, k e l característicos para determinadas operações de simetria. Verifica-se ainda a chamada Lei de Friedel que diz que todo padrão de difração é centrossimétrico, ou seja, toda intensidade detectada com determinado índice (hkl) também é detectada em .
CONCLUSÕES Essa contribuição sobre educação em Química, focada no ensino de cristalografia estrutural em cursos de graduação e pós-graduação, abordou conceitos fundamentais revisando alguns aspectos históricos, matemáticos, químicos e físicos que envolvem a técnica de difração de raios X para determinar a estrutura de materiais cristalinos. Deduziu-se como a Lei de Bragg relaciona as distâncias entre planos atômicos em um cristal com o ângulo de difração e o comprimento de onda da radiação incidente. Mostrou-se como o fator de estrutura é uma função complexa que depende da amplitude e da fase das ondas espalhadas pelos átomos do cristal. Foram utilizados conceitos de trigonometria e números complexos para descrever o fenômeno da difração. Especificamente, apresentou-se as principais funções trigonométricas e suas propriedades no ciclo trigonométrico, bem como a representação dos números complexos no plano de Argand-Gauss. O artigo também mostrou a relação de Euler e a forma exponencial dos números complexos, que facilitam o tratamento algébrico e computacional da difração.
AGRADECIMENTOS Os autores agradecem a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG), a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Código de Financiamento 001), a Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP) e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pelo apoio financeiro e/ou bolsas de estudos/pesquisa recebidas. Agradecemos também as valiosas sugestões dos revisores anônimos. Todos os autores declaram que não há conflito de interesses.
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Editor responsável pelo artigo: Giovanna Machado |
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